CAPÍTULO 48
A rebelião que efervesceu no Baronato de Fannel contra o novo regime Lacorês fora esmagada, entretanto, o pensamento disseminado pelos rebeldes e a noção de que houvera, de fato, um golpe de estado contra o Rei Corélius IV espalhou-se por todo o reino de Lacoresh. Parte da fofoca comum de tabernas, portos e mercados, é que havia bruxos aqui e ali. Assim, figuras como o Barão Calisto de Wuri eram temidas. Rumores corriam dizendo que o Duque de Kamanesh, outros nobres e até membros da Real Santa Igreja teriam feito pactos macabros com espíritos, demônios e demais forças sobrenaturais em troca de poder. Todo tipo de histórias corria solto, umas verdadeiras, outras muitas exageradas, e isto compunha um novo clima sobre todo o reino.
O próprio conselho dos necromantes havia aceitado o fato de que não conseguiriam ocultar a manobra, por outro lado, oficialmente, qualquer um que proferisse publicamente estas ideias, passou a ser capturado, e em muitos casos, executado. Tal rigidez teceu um novo equilíbrio nas estruturas de poder, fortemente baseado no medo. Lacoresh, nestes dias em especial, após a morte da Rainha Alena, era um reino mais sombrio que outrora, governado e dominado por leis rígidas e temor. Os hábitos agora eram outros e era bastante incomum que pessoas se submetessem ao risco de um passeio noturno, ou mesmo andarem, durante o dia, desacompanhadas. Diziam que pessoas sozinhas poderiam sumir, e de fato, elas sumiam, pois a quantidade de redutos necromantes apinhados de mortos-vivos e sombras malignas sedentas de sangue era algo cada vez maior. A sensação de ruína iminente era compartilhada pelo povo e uma tragédia era prevista por muitos pessimistas em todo reino, ao menos um em cada bar.
Do outro lado desta percepção, a doutrina cada vez mais agressiva da Real Santa Igreja, fazia muitos fieis se tornarem fanáticos que acreditavam com fervor no destino glorioso do povo lacorês. Acreditavam ser o povo escolhido pelos deuses e abençoados por receberem as Crianças do Eclipse, e em breve, seriam o reino mais poderoso, rico e influente de todo o mundo. A guerra sagrada da Real Santa Igreja estava para começar. O primeiro alvo era o reino vizinho, Homenase. Todos barões de Lacoresh receberam ordens para erguer milícias e o treinamento para combate. Lacoresh já detinha forte influência sobre este vizinho, mas nem todos estariam dispostos a aliar-se para uma campanha militar mais longa. Assim, se fazia necessário operar uma conquista militar para garantir-lhes uma aliança mais sólida. Ao mesmo tempo, na costa lacoresa um grande número de navios de guerra estavam em construção, talvez, em dez anos teriam a maior frota marítima de todo o mundo, com poderio superior à dos Silfos do Mar e dos dacsinianos juntos.
Apesar de todas as dificuldades, imenso poder dos bruxos e opressão, e a perspectiva de uma guerra santa, uns poucos sustentavam ativamente a luta contra o destino infeliz do reino. Era o caso daquele homem. Uma que sombra saltava de telhado em telhado na região nobre de Liont, capital do Baronato de Fannel. Perseguindo-o abaixo, na rua, um grupo de soldados disparava flechas em sua direção.
– Vamos! Se deixarmos que ele escape, o comandante vai nos fritar! – lembrou o sargento que acompanhava a pequena tropa em perseguição.
Lá no alto, Vekkardi, ou Gatuno, como era conhecido naquelas bandas, cumpria sua rotina de incursões em prol do movimento rebelde. Vestia uma roupa justa de tecido aveludado azul marinho profundo que se confundia com o negro. A tira colo, o tubo com o precioso mapa que roubou da torre do mago conselheiro do Barão Adam Fannel. Tratava-se de uma relíquia da antiga civilização que foi varrida da terra durante a guerra milenar pela fúria do Grande Elemental do Fogo. A segurança da torre era forte, além da segurança física, havia detectores de intrusão por magia, mas as defesas não contavam com a excepcional capacidade de Vekkardi de escalar paredes verticais de pedra nua vencendo os quinze andares da mais alta torre de Fannel. Neste ponto, não estava protegida contra a ousadia de um simples ladrão.
Vekkardi dominava as rotas de fuga. Seus perseguidores se aproximavam e havia o risco de um embate. No ponto planejado, havia uma corda enrolada e já amarrada em uma chaminé. Desceu dos telhados e removeu os dois caixotes que selavam aquele estreito beco sem saída. Em seguida, montou seu cavalo que estava esperando e ganhou as ruas de Liont. Ainda viu ao longe as tochas dos soldados. Se seguisse naquele ritmo não poderiam alcançá-lo. Trocaria de cavalo numa fazenda de um simpatizante, cujo filho havia sido salvo pela resistência. Logo, chegaria a uma das bases ao norte, em Vaomont. Mas antes que seus planos se concretizassem, seu cavalo enlouqueceu. Vekkardi perdeu o controle e a montaria tomou um novo rumo. O cavalo virou em ruas e becos, como se tivesse vontade própria e ignorando seus comandos. Vekkardi considerou saltar do cavalo, mas ainda precisava sair da cidade e escapar dos guardas. Ele viu a silhueta de um homem montado no alto da colina para onde seu cavalo cavalgava involuntariamente.
– Afinal, aí está você. Foi trabalhoso localizá-lo. – disse a figura.
– Ca-calisto? O que quer comigo?
– Não vim aqui para um confronto.
Os cavalos se emparelharam. Vekkardi controlou seu nervosismo. – A que veio então?
– Vim por que precisamos trabalhar juntos novamente. Deixe-me começar dizendo o seguinte: o inimigo de meu inimigo é meu aliado.
– Nosso último trabalho juntos foi desastroso o suficiente. Tivemos sorte de escapar com vida.
– Não foi sorte coisa alguma, foram os tisamirenses. Senti a energia deles antes de desmaiar. Você foi levado por eles, não é mesmo?
– Sim, eu e Radishi. Passamos alguns meses em Tisamir nos recuperando. Parece que nossa luta contra Arávner propiciou a eles uma porta de entrada. De algum modo, a missão foi bem sucedida, Radishi foi salvo.
– E em troca, aquele monstro ficou com o Orbe do Progresso. – Calisto esporeou o cavalo – Venha comigo.
Vekkardi o seguiu, agora com o controle de sua montaria recuperado – Isso não muda muito as coisas, o artefato estava nas mãos do silfo Rodevarsh antes, lembra-se?
– E o que os tisamirenses pretendem fazer quanto a guerra iminente?
– Se refere à incursão de Lacoresh sobre Homenase? Pois isto não é nada comparado com que está por vir.
– O que?
– Os necromantes chamam o evento de A Grande Eclosão.
– Grande Eclosão? Como ficou sabendo disto, Vekkardi?
– Radishi conseguiu penetrar a mente de Arávner quando lutou, antes de ser dominado. Ele é um dos antigos Vetmös, o povo que trouxe a guerra milenar que destruiu o mundo antigo, há muitas gerações. Talvez ele seja o último dos Vetmös. Lembra-se de Therd Fermen?
– Como poderia me esquecer de um demônio como aquele?
– Ele e muitos outros de sua estirpe ainda estão em nossa terra, os demais, foram expulsos ao fim da Guerra Milenar. Li sobre isso no Ermirak, a escola dos tisamirenses. Eles sabem sobre o que está para acontecer.
– E por que não tomam alguma atitude?
– Não acreditam na violência. Não querem se envolver. Dizem que se o mal voltar a tomar o mundo é por que está na hora de partirem. Estão se preparando para transmigrar para uma outra dimensão.
– E os rebeldes? O que estão a fazer?
– Alguns de nós continuamos a lutar na esperança de alguma forma depor os necromantes do poder, se o povo todo puder ser conscientizado, talvez...
– Acho difícil. O povo está cativo, principalmente de toda aquela ladainha proferida pela Real Santa Igreja.
A esta altura, cavalgavam pela estrada a sudeste de Liont rumo a Kamanesh. Apenas Pydera, a pequena lua avermelhada e disforme, pairava no céu sobre eles. Era uma noite bastante escura.
– Bem, há outras coisas que nós da rebelião estamos fazendo para evitar essa calamidade. Vários de nós partiram em missões ao exterior.
– Como assim?
– Foram enviados aos outros principais reinos do mundo para alertá-los sobre o perigo que Lacoresh poderá representar brevemente. No entanto, nossos inimigos estão atentos a isto e os missionários são perseguidos com rigor. Tivemos notícias de muitos que foram abatidos. Entretanto, ainda resta você e alguns nobres que ainda estariam em posição de nos favorecer numa retomada de poder. Não consideramos que tudo está perdido.
– Sei, os nobres de fato vão ajudar muito – Calisto foi irônico e piscava muito o olho direito – eu não contaria com qualquer nobre. Os que não foram mortos até hoje é por que foram corrompidos pelo novo regime.
– Nem mesmo o Duque de Kamanesh?
– É um sujeito enigmático... Já tentei ler sua mente umas duas vezes sem sucesso. Talvez de fato ele seja um coringa.
Calisto deu uma boa olhada na bolsa que Vekkardi carregava a tiracolo. Captou impressões e pensamentos do líder rebelde e comentou – Se arriscou muito para roubar isso aí, não é mesmo?
– Eu sempre me arrisco. De certa forma é o que ainda me dá motivação para viver.
– Este mapa deve indicar alguma coisa importante.
– Como sabe que é um mapa?
– Esquece-se Vekkardi? Posso ler mentes... Não precisei de uma leitura profunda para descobrir isto. Mas também não quero fazê-lo, algo assim seria desconfortável para você. Não vamos forçar a amizade, certo?
– Detesto esses seus modos, Calisto.
Calisto riu-se e sua mão iniciou um fluxo de tremedeiras.
– Mas já que vamos trabalhar juntos, vou dizer do que se trata. É um mapa das torres dos antigos Vetmös. Um de nossos espiões descobriu que os cabeças do movimento necromante andaram visitando essas torres e coletando material dos antigos. Porém, uma destas torres possuía um guardião que impediu que entrassem e capturassem seus segredos.
– E vocês planejam assaltar essa torre?
– Sim, estamos reunindo voluntários.
– Me parece uma boa empreitada. Acho que consigo convencer alguns de meus aliados a ir até esta torre.
– Essa ajuda não vem em má hora, visto que somos poucos remanescentes. De quanto tempo precisa?
– Alguns dias. Derek e Ryan estão aqui em Fannel, mas o Barão Dagon está numa cripta nas proximidades da capital.
– Quando reunir os seus venha até as proximidades de Vaomont, um de nossos batedores irá ao seu encontro.
– E quanto ao destino das crianças do Eclipse? O que os seus descobriram?
– Bem, quanto a isso, temos algumas teorias. Uma bastante aceita sustenta que serão instrumentos dos necromantes para a realização de algum tipo de ritual. Esse ritual deverá ocorrer na oportunidade do alinhamento das luas, daqui a oito anos.
– Oito anos? Tanto tempo assim?
– Bem, é apenas uma teoria. Alguns pensam que estão marcados e serão preparados para um sacrifício coletivo. Você sabe, são mais de duzentas crianças nesta condição.
– Eu um adulto. Mas não se preocupe, antes disso iremos derrotá-los. Oito anos é tempo mais que suficiente para isto.
Vekkardi forçou um sorriso e concordou – Espero que sim.
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