CAPÍTULO 42

O efeito do feitiço de Kiorina não durou tanto quanto Kyle gostaria, mas ajudou a superar alguns obstáculos difíceis no caminho. O último trecho de subida possuía diversas falhas, mas nenhum buraco tão grande como o que havia saltado após se despedir da ruiva.

Aquela subida solitária fez a mente do rapaz viajar para o passado até sua infância, quando ele e Archibald conheceram Kiorina. Eles pensaram que a menina se tratava de uma nobre, princesa, ou algo assim. O vestido era muito bonito e seus cabelos ruivos eram compridos e cuidadosamente penteados. Kyle e Archibald perguntaram a Gorum o que uma princesa estava fazendo ali, fora dos palácios. Ele explicara que ela não era nobre, mas que se vestia bem por que era filha do alfaiate que fazia as roupas do duque. Não demorou muito até que o pai de Kiorina surgisse e que Gorum fosse cumprimentá-lo. Os pequenos Kyle e Archibald seguiram o gigante.

– Olá Gálius!

– Cavaleiro Gorum! Há quanto tempo. – direcionou os olhos para Kyle – É o filho de Blackwing?

– Sim.

O pai de Kiorina passou a mão na cabeça de Kyle e comentou sobre como se parecia com o pai. Kyle sempre detestou isso. Para disfarçar a cara feia do garoto, Gorum comentou – Os garotos aqui pensavam que sua filha era um princesa.

Gálius sorriu. – Esta é Kiorina meninos. Como vocês se chamam?

– Eu? Archibald! – como Kyle ficou mudo, Archibald o apresentou – Esse é o Kyle.

Gorum sugeriu – Por que não vão brincar garotos? Eu tenho assuntos a tratar com o senhor Gálius.

Kiorina logo pediu – Papai! Posso ir brincar com eles?

Gálius não pretendia deixar, mas Gorum acabou por convencê-lo, com toda sua simpatia, de que não haveria problemas.

– Pode ir, mas não vá sujar sua roupa!

Os três se divertiram um bocado, mas a ruiva tomou um grande castigo, pois depois das brincadeiras o vestido ficou tão imundo que teve que ser jogado fora.

Kyle recordava-se de como Kiorina sempre falava daquele castigo, mesmo anos depois.

Sua mente vagava entre vários acontecimentos. A viagem que fizeram juntos, ele Kiorina e Archibald. O confronto com os bestiais em Shind. A visita a Tisamir. A guerra contra os bestiais. O complô dos necromantes. A fuga de Lacoresh. As encrencas no arquipélago dos silfos. Aqueles que ficaram para trás. O silfo Modevarsh, Noran, Archibald, Claudine, An Lepard, entre outros. Acima de todos aqueles degraus, respostas para suas perguntas. E em toda aquela confusão de acontecimentos, uma nova pergunta surgia. O que era aquilo que sentia? Por que, mesmo ao recordar-se de tudo aquilo, as memórias que lhe pareciam mais fortes e importantes envolviam Kiorina. O que era aquele sentimento? Algo novo e diferente que nunca sentira antes, nem mesmo em relação a Claudine. Por que não conseguia parar de pensar em Kiorina?

***

O fim da escadaria, finalmente! Kyle apoiou-se sobre os joelhos e sua respiração ofegante formava baforadas de vapor que iam longe. Havia uma grande praça, e mais adiante, incrustado nas montanhas, delineado pela luz das luas, um antigo templo em ruínas.

Era hora de obter respostas. Mas que perguntas fazer? Que consequências teriam aquelas respostas? Será mesmo que apareceria ali, algum tipo de oráculo?

Àquela altura, a maior parte das luas estava alta no céu, acima de sua cabeça. Sentiu-se tão cansado que não suportou chegar até a entrada do templo. No meio daquela praça, sentou-se e depois, deitou-se olhando para o céu. Ficou a contemplar as luas e estrelas. Assim como muitas vezes no passado, imaginou que seus companheiros, Archibald e Kiorina, estivessem deitados ali ao lado e que conversariam longamente enquanto observassem o céu. Sua imaginação parecia ganhar um poder todo especial. Ao olhar para o lado, viu que a sua esquerda estava deitado Archibald, como um espectro transparente a contemplar as estrelas. Na direita, estava Kiorina, em pose que lhe era de costume. Com os braços cruzados atrás da cabeça, e uma dos joelhos levantados apoiando o tornozelo da outra perna. As imagens eram plásticas e ora Kyle enxergava Archibald e Kiorina como crianças de dez anos, ora como adolescentes e, mais tarde, como adultos.

Ele murmurou – puxa... queria que estivessem aqui comigo. – Seus olhos se encheram de lágrimas que escorreram silenciosas sob o véu daquela noite iluminada. Um grande peso caiu sobre seus olhos e, em poucos momentos, Kyle Blackwing mergulhou em sono profundo.

***

Novamente, Kyle enxergava com os olhos do silfo Örion. Mas algo era diferente. Sua mente observava calmamente. E seus pensamentos não se anuviavam. Ele soube que ele não era Örion e Örion não era ele. Possuíam uma estranha afinidade. Algo inexplicável que jamais sentira com outro ser. Uma ligação profunda e enigmática. Como se fossem carne da mesma carne, sangue do mesmo sangue.

Örion olhava para o céu, muito preocupado. A configuração das luas era exatamente a mesma que contemplara, um pouco antes de adormecer. Como isso seria possível? Seria o caso de que estivessem vivos agora, numa mesma época? Sob o mesmo céu? Será que o que pensava a respeito de Örion, que teria sido uma vida passada sua era uma hipótese totalmente falsa?

Kyle compartilhava os sentidos de Örion, sua visão, audição e tato. Uma brisa suave e fria tocava a pele do rapaz, mas este não sentia frio. Kyle escutou passos, instintivamente desejou virar-se para ver quem era, mas Örion, por sua vez, continuava a observar as luas e suspirar por ansiedade. Falavam a língua dos Silfos, e Kyle compreendia perfeitamente, apesar de seu domínio da língua ser limitado.

– Uma bela noite, não é meu jovem.

– Vovô? Mas o senhor...

– Não abandonarei meu lar. Nem nenhum dos anciãos assim fará.

– Mas não podemos confrontar o exército. Eles são muitos, não há chances.

– Evidente. Não haverá confronto. Nós realizaremos o ritual de passagem a fim de proteger nossa floresta da corrupção do rei maligno.

– O rito? Todos anciãos?

– Sim. Nós estamos velhos demais e ficaremos. Enquanto isso, os demais buscarão o antigo refúgio no pé dos picos gelados. Exceto aqueles que navegarão contigo.

– Navegar? Comigo?

– Sim jovem Örion. Foi o que determinou o espírito Aznevendor.

– O grande livro escreveu novamente?

– Sim, ele despertou. Uma grande ameaça paira sobre todos nós. Não é só o reino de Saubics que sucumbiu às trevas. Mas todos os povos correm risco de sofrer o mesmo destino. Nossos ancestrais devem ser avisados. Logo...

Kyle escutava atentamente à conversa e subitamente perdeu contato com toda aquela realidade. Acordou num sobressalto. Ainda era noite e ao seu redor, o chão tremia. Um ruído alto e assustador de rocha partindo ecoou ao longe. Tentou ficar de pé, porém sem sucesso. O terremoto era severo e assustador. Por uns instantes sentiu-se como sob tempestade a bordo de um navio.

Uma ventania fortíssima girou até formar um tornado. Magia forte pulsava em toda a parte e cores e luzes erráticas zuniam de lado a outro. Os olhos de Blackwing ardiam toda vez que tentava encarar o tornado, que emitia um pouco de luz.

Uma voz baixa, vibrou em todas as línguas faladas na terra. Falava na língua das antigas e esquecidas linhagens dos Hölmos e Vetmös. Falava na língua élfica, em sua derivação sílfica. Expressava passado presente e futuro. As palavras faziam saltar imagens. E projeções de cenas de tudo que aconteceu e do que poderá acontecer chegavam à mente de Kyle, porém, de forma confusa. Sua cabeça doía na medida em que via imagens estranhas. Umas poucas e que pode reconhecer, eram como memórias, mas memórias vistas de fora de si. Ele viu a si próprio e Archibald, ainda crianças, correndo nos pomares do duque de Kamanesh. Ele viu a si mesmo, velho em um estábulo, escovando um cavalo. Viu cenas estranhas de reinos distantes, batalhas gigantescas. Viu heróis do passado, tomando dragões como montaria e lutando contra demônios horrendos. Muito do que viu, de forma embaralhada, não fazia sentido. Quanto mais via, mas sentia sua cabeça doer. Ao mesmo tempo, uma mensagem se formava. Ele sabia então que estava diante do oráculo. Na realidade, estava agora dentro do oráculo. Passeava no interior de um ser além de sua compreensão.

E tudo foi tomado pelo silêncio e uma bela e confortável luz dourada.

"Você sou eu agora. Eu sou você. Sempre fomos como um. Tudo é uno. A separação é apenas uma ilusão. Você é o oráculo. Agora que sabe o que é, sabe também que todas suas perguntas tem respostas. Sabe que as perguntas são infinitas assim como as respostas. Sabe que se escolher perguntar demais nunca voltará para o mundo que deixou. Nunca mais será Kyle. Nunca mais verá aqueles que ficaram lá. A cada nova lua nos veremos. Sabemos que todos seus questionamentos são sobre o futuro. Suas visões do futuro mostrar-lhe-ão o resultado de suas escolhas. Se decidir abandonar os conflitos, da maneira que seu íntimo deseja, verá as consequências. Se decidir enfrentar a sombra que tomou sua terra natal verá as consequências. A cada escolha, um futuro. A cada futuro, poderá ver o que desejar, quando desejar. A cada visão, mais chances de perder o caminho de volta a seu corpo. Perguntar sobre o futuro vai provavelmente trazer-lhe a morte. Estamos prontos, não é mesmo?

Eu me vejo acordar e dizer: – Saubics! É isso! Temos que ir para Saubics!

Mas a primeira pergunta é: Como salvar nossa terra natal dos necromantes? E isso muda tudo!

Eu me vejo acordar e dizer: – Saubics! Não é isso! Não podemos ir para Saubics! Devemos voltar a Lacoresh!

Sim, em Lacoresh, será possível extirpar o mal pela raiz. Porém, com Lacoresh liberta, Saubics afundará em trevas. As trevas se expandirão. Possibilidades são muitas. Eu não posso controlar. Não há tempo de ver tudo. Impossível examinar tudo. Vou me perder. Vou me encontrar. Claro!

Eu me vejo acordar e dizer: – Saubics! Não posso decidir ainda. Preciso de mais tempo. Preciso de mais visões. Preciso contar para Kiorina e Gorum o que descobri".

Kyle acordou num sobressalto e disse: – Saubics! Não posso decidir ainda. Preciso de mais tempo. Preciso de mais visões. Preciso contar para Kiorina e Gorum o que descobri.

"Que estranho" pensou "Eu sabia exatamente o que iria dizer!" Foi tomado por um medo e calafrio gélidos. "Se dissesse diferente... Que consequências terríveis! Deuses me ajudem! Como posso decidir? Como minhas decisões podem mudar tudo. Minhas decisões mudam tudo. Que horror!"

O coração do rapaz estava disparado e ele correu, muito apreensivo, para encontrar seus companheiros. Só então que percebeu o alvorecer. Era quase dia. O tempo havia se passado como num piscar de olhos. A revelação do oráculo assumia peso de uma terrível maldição. Kyle agora sabia que a cada pico de luas cheias, seria capaz de ver o futuro. E ver o futuro era algo assustador e desagradável!

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