CAPÍTULO 4

Após a visita intrigante do menino dacsiniano, o capitão An Lepard, com ânimo renovado, coordenava os preparativos para a viagem. Teriam que atravessar o extenso mar que separava as terras de Dacs do continente conhecido como a Terra dos Nove Vales. Este nome vem justamente da forma do continente, que tem nove cadeias de montanhas que se encontram na região central, local no qual as lendas dizem haver um planalto. Porém, na atualidade não se conhece civilização, cidade ou povoado que esteja situado nesta região. Não há registros recentes, mesmo de exploradores hábeis de alguma jornada bem-sucedida através do planalto lendário. As crenças de alguns povos apontam esta região de altíssimas altitudes, como a morada dos Deuses.

Chegando ao continente antigo, a primeira destinação seria a milenar cidade-estado de Tchilla. An Lepard foi até a cidade apenas uma vez, há muitos anos. Acompanhava seu pai a bordo do Estrela do Crepúsculo. Os tchillianos não fazem muita questão de manter bons relacionamentos com povos estrangeiros, nem mesmo relações de comércio. Apesar de não serem inimigos dos dacsinianos, episódios históricos de conflitos e pequenas guerras chegavam a ser comuns.

Um pouco alheio à movimentação de cargas para dentro do navio, Kyle caminhava pelo cais, observando a água verde e transparente através das diversas frestas no chão de madeira. Cardumes de pequenos peixes movimentando-se distraiam seus pensamentos, mais serenos que o normal desde o encontro com Renè na noite anterior.

Foi uma bota delgada de um couro avermelhado e lustroso que, ao ocultar uma fresta maior, tirou Kyle de seus devaneios. Ao subir os olhos, foi tomado por uma surpresa acompanhada de sensações que não podia entender. Seu olhar fixou-se no olhar de uma mulher alta, quase de sua altura, mas talvez, alguns anos mais velha. Encarou-a nos olhos castanhos claros que reluziam sob o forte sol assumindo tonalidade âmbar. A íris de cor incomum era emoldurada por cílios fartos e compridos, muito femininos. Sua pele era bronzeada e tinha lábios grossos e carnudos. As feições eram bem diferentes das que costumava ver entre os lacoreses, dacsinianos e katorianos. Os cabelos escuros e levemente cacheados eram compridos e, comandados pela brisa, cobriram metade da face.

A mulher chicoteou a cabeça projetando as mechas para o lado e disse – É lacorrencian? – Tinha um forte sotaque dacsiniano e Kyle não teve certeza se entendeu a pergunta.

Kyle observou os dentes da moça, muito corretos, que sorria ao falar. Hesitou e não respondeu.

Nan me entendeun, ou um gatin comeu sua língua?

Kyle não compreendia bem o que lhe acontecia, mas achava a voz da moça macia e seu jeito de falar lhe parecia encantador.

– Sim. Não! Digo, sou lacorês.

– Ah que bon! Achei que fazia un papel de tola... – retrucou simpática. – Este entan deve ser o navio de capitan An Lepard? Certin?

– Sim, senhora.

– Mas que bonitin... – disse girando os olhos e tocando delicadamente a face Kyle – Nan precisa me chamar de senhora. Sou Claudine.

Kyle ficou vermelho como um pimentão com o toque da mulher e sentiu o estômago retorcer. Com a emoção tomando conta, não conseguiu evitar inspecionar o corpo da moça notando suas vestes um pouco masculinas. Calças escuras folgadas e uma camisa clara apertada e modificada na frente formando um decote bastante indecente mesmo para os padrões locais. O corpo era bastante atlético e os braços quase chegavam a ser musculosos. Kyle também não pode deixar de notar que tinha uma espada presa a um cinto grosso, do mesmo couro avermelhado das botas.

– Desculpe queridin. Nan pretendia lhe avexar.

Kyle ficou rígido, tentando controlar-se e disse. – Sou Kyle Blackwing.

Blequiuin? Muito prazer! – Abraçou o rapaz que novamente tomado pela surpresa ficou sem ação e ainda mais rubro.

"Que tipo de costume era aquele de abraçar alguém que acabou de conhecer?" pensava.

Após o abraço, Kyle mergulhou mais uma vez no silêncio e embaraço.

Claudine estudava-o com os olhos e, por instantes, Kyle teve a impressão de que era devorado por aquele olhar tão intenso. Ela lambeu os lábios e sorrindo, bastante descontraída e à vontade, disse – Você é mesmo muito tímido, nan é Blequiuin? – Em seguida desviou-se dele caminhando em direção à prancha de carga do navio. Kyle acompanhou a movimentação da mulher, um tanto abobado. A forma de caminhar era bastante livre e sinuosa, além de requebrar o quadril de forma acentuada.Em seguida, no convés do navio, An Lepard e Claudine trocavam os primeiros olhares depois de muito tempo. Lepard, incrédulo teve um pouco de dificuldades para reconhecer a moça.

– Claudine?! Não posso ocultar minha surpresa. – disse o capitão um tanto abalado em sua língua materna.

– An Lepard, An Lepard... – Claudine pressionava os olhos demonstrando uma expressão de certo descontentamento. – O mesmo canalha e sem educação de sempre! Pois não esteve em Porto Baltimore e sequer me cumprimentou?

A essa altura, diversos membros da tripulação acompanhavam a conversa que se sucedia numa tonalidade levemente exaltada. Kyle logo subiu apenas para observar a discussão, pois pouco entendia da língua dacsiniana.

Lepard coçou a cabeça e sorriu um pouco sem graça. – Devo minhas desculpas. – Aproximou-se tomando-a pela mão e beijando-a como uma forma de cumprimento galanteador.

Claudine observou-o movendo-se, fisicamente derrotado devido às mutilações e mascarou a pena que sentiu dele, sustentando o sentimento anterior de descontentamento.

– A que devo a honra de sua visita? – quis saber o capitão.

– Aceito suas desculpas.

– Muito bem.

Claudine cruzou os braços e declarou – An LePaul me contou sobre tudo.

Lepard engoliu seco. Seu irmão era detestável, mas seria tão baixo? Revelaria a ela que fora trocada por um navio? A simples ideia de que ela soubesse daquilo deixou-o desconcertado. Tossiu e replicou – Tudo o que?

Desconfiada respondeu – Sobre os silfos, as torturas, a traição de Erles, o que mais?

– Bem, posso dizer que tenho sorte. Ainda estou vivo e recuperei meu navio.

– Seu irmão pensa diferente.

– Eu sei, ele deve imaginar que seria melhor eu ter morrido a ter ficado deste jeito. – explicou o marujo indicando seus aleijões.

– Uma coisa é certa, não vim aqui para ver sua condição tão pouco para condoer-me com sua situação.

– Se não foi por isso, posso saber o motivo?

– Vim para pedir-lhe trabalho.

– Trabalho? Está louca? Por acaso quer cozinhar ou lavar pratos num navio cheio dessa corja? – disse Lepard indicando os marujos que faziam uma roda para assistir a discussão. Os marujos riram e uma série de comentários se sucedeu. – Contrata ela capitão! – disse um.– Ela é um arraso! – veio uma voz de trás. – Eu cozinho para ela! – manifestou-se outro engraçadinho.

Claudine fez uma cara feia para os marujos e desembainho sua espada. – Quero que me contrate como espadachim.

An Lepard deu uma gargalhada e foi acompanhado de muita zombaria por parte dos marujos. A essa altura os outros lacoreses, Gorum, Kiorina e Archibald também estavam no convés tentando entender o que se passava.

Claudine apontou a espada para o peito do capitão e desafiou – Por acaso está com medo de perder?

– Ah Claudine! Eu nunca lutaria com você. Isso não seria honesto. Afinal, desde quando você virou uma espadachim? É uma moça culta, sabe ler, escrever e fazer contas. Por que essa coisa de espadachim?

– Isso não é de sua conta! E então, se não é mais homem para me enfrentar, pelo menos algum de seus marujos é?

Houve um breve silêncio e os marujos vaiaram em coro. O capitão sinalizou para que parassem e disse. – Vou repetir, depois de tudo que passamos, não posso conceber que lutemos. Mas não aceitarei seu insulto. Se quiser mesmo lutar...

– Ei capitão! Posso lutar com ela? – pediu um dos marujos, de aparência truculenta. – Que tal uns beijos nela se eu ganhar? – sugeriu mostrando a língua e gesticulando obscenidades.

– Você concorda, Claudine?

Ela virou-se para o marujo e disse – Terei meu trabalho?

An Lepard concordou. No instante seguinte, a mulher partia para o ataque gritando com ferocidade – Defenda-se cachorro!

O marujo, um tanto surpreso, fez o que ela ordenou. Não pela qualidade das palavras, mas porque sentiu que sua pele dependia de suas ações defensivas. Foram um, dois, três, quatro ataques da mulher. O marujo era experiente e logo percebeu que a luta não seria um passatempo.

Ele contra-atacou. Claudine demonstrou que além de atacar, defendia-se muito bem. Mais cinco, seis, sete tilintadas e Claudine mostrou que tinha seus truques. Acertou a canela do marujo com um forte chute. Arrancou gritos da torcida que acompanhava a luta com empolgação. Aproveitando-se do golpe, cruzou espadas e sacando uma adaga produziu um corte acima do pulso do marujo. Ele xingou com dor e soltou a espada. Antes que o marujo derrotado fosse vaiado, humilhado e tomado pelo ressentimento, Claudine guardou as armas, aproximou-se dele e disse simpática – Você lutou muito bem, mas não foi sujo como eu! – Aproximou-se o beijando no rosto. – Obrigada pela boa luta.

O marujo corou e acabou sorrindo abobalhado. O coro de marujos gritou e assobiou diante da cena. Alguns pediam: – Ei moça, eu também quero!

A situação se prolongou até que o capitão gritou – Já chega!

Claudine caminhou até An Lepard com sorriso de satisfação estampado em seu rosto bronzeado. Lepard sorriu e disse – Se é isso mesmo que quer, está contratada.

Os marujos fizeram muito barulho e o último dia do Estrela do Crepúsculo nos portos dacsinianos foi lembrado por todos com um saudosismo especial.

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