CAPÍTULO 18

Muitas bolhas, irritações e pus manifestavam-se ao redor da mordida recebida por Poul. Era um ferimento bem feioso. Ele suava sem parar e ardia de febre. Delirava.

- Adria! Adria!

Con e Eskallurè ajudavam o curandeiro de Pinnus com suas tarefas, recolher ervas frescas e preparar chás, ao mesmo tempo em que vigiavam os arredores da casa de Poul. Estavam preocupados. Poderiam ter sido seguidos. Con sabia que Cretàh saberia onde estariam. Mas tinha dúvidas sobre a criatura ser colaboradora da terrível Ardívilla. O clima em Pinnus não era nada bom, pois mais um rapto ocorreu, justamente na noite em que Rílkare esteve com o chefe da vila. Muitos ligavam o rapto à presença do nobre e seus companheiros forasteiros.

- Se aquela mulher não estiver envolvida nestes raptos, não sei quem estaria. - comentou Con.

O mercenário fez uma careta - Concordo Condarillo, aquilo foi muito sinistro.

- Será que as mulheres são raptadas para serem transformadas naquelas criaturas?

- Não sei. Se fossem apenas mulheres mortas lá no lago... Pensando bem, havia mais corpos de homens que de mulheres, não acha?

- É verdade.

- O Poul está mal mesmo. - comentou Eskallurè cabisbaixo. Con acenou concordando.

O mercenário prosseguiu - Ele foi muito bravo. Nos salvou daquelas coisas. Me salvou.

- Ele e o Örion.

Eskallurè balançava a cabeça negativamente. - Bah! Que nada! Se ele não tivesse caído, teríamos dado o fora.

- Não sei, os cavalos...

Eskallurè retrucou rancoroso - Deixe de bobagens Condarillo! Os cavalos só se assustaram um pouco, assim como todos nós. Aquele silfozinho fracote que nos colocou em problemas. Ficou enjoado e caiu. Depois, o nobre Krenov teve que ir a seu socorro. Nosso trabalho era proteger Krenov. Eu não caí. Eu desci, entendido? Um cavalo nervoso não me derruba assim tão fácil. No fim, era mais que a obrigação do moleque ajudar a reverter a situação, assim como todos nós fizemos.

Con suspirou e deu com os ombros. Levantou-se e disse - Vou ver se o curandeiro precisa de mais alguma coisa.

***

Os irmãos, Zitrehidel e Ferro-em-brasa, agora podiam cavalgar a todo pique. Eram cavalos mais velozes e robustos que os criados em Saubics. Para eles não havia prazer maior que cavalgar livremente pelas campinas, sentindo o vento e a simples alegria da velocidade. Em alguns momentos, Rílkare chegava a temer que caíssem, pois cavalgavam num galope muito veloz. Neste ritmo, chegariam à floresta de Adrastinn antes do anoitecer.

A velha fazenda dos Krenov estava no caminho e Rílkare queria ver seus parentes. Foram recebidos pelo encarregado, Jonas Ulik. Fizeram uma rápida refeição com sua cunhada, Senhora Alia, e seu sobrinho, Reesdi. Örion deixou a casa para fazer companhia aos cavalos e dar um tempo para Rílkare e sua família. Os três despediam-se, no rol de entrada. O menino estava bem vestido para alguém que vivia no campo, assim como sua mãe, que gostava de usar vestidos escuros e sóbrios.

- Eu já disse Reesdi, você está cansando seu tio com tantas perguntas.

- Mas mãe!

- Tudo bem Alia, eu entendo a curiosidade dele. Deixe-me responder mais esta pergunta, certo? - Voltou-se para o sobrinho que tinha apenas quatorze anos e disse - Quando houver mais tempo, voltarei para conversarmos por mais tempo, está bem Reesdi?

O menino deu com os ombros um pouco desapontado - certo.

- Então escute bem. Quero que entenda que a guerra não é nada bonita. Espero que, em breve, cheguemos a um termo com os aldancarianos, e que você tenha sorte de tornar-se adulto em tempos de paz.

- Mas eu queria poder ajudar...

- Por hora, você ajuda ficando aqui e protegendo sua mãe.

O menino cruzou os braços. E decepcionado disse. - Está bem...

- Ainda parece preocupado, Rílkare? Podemos ajudar em algo? - quis saber Alia.

- Já ajudaram. Vir até aqui já me fez melhorar um pouco. Estes dias tem sido muito difíceis. Agora, vamos até Adrastinn buscar ajuda.

- Para a guerra?

- Não. A questão dos raptos. Não temos certeza, mas acreditamos ter localizado os responsáveis.

- Verdade? Quem? - Alia segurou no braço de Rílkare, curiosa.

- Melhor não comentarmos a este respeito, sem haver certeza.

- Entendo. - Ela recuou.

- Quero lhe pedir um favor.

- Claro.

- Esta carta. Preciso que seja entregue ao príncipe Tarin, porém, somente no caso de acontecer-me algo.

- Acontecer algo? O que quer dizer?

- Alia, você sabe, estamos em guerra. Estamos correndo riscos...

Alia segurou a carta e as mãos de Rílkare - Combinado. Então guardo esta carta para devolver-lhe em mãos, tão logo os tempos melhorarem. 

Olhos de Alia se encheram de lágrimas e aproximou-se para falar-lhe sem que seu filho escutasse - Tome cuidado Rílkare, Reesdi precisa de você. Você é como um segundo pai para ele.

Rílkare beijou o rosto da viúva e disse - Vou me lembrar disso.

Abraçou o sobrinho erguendo no alto. - Até a próxima Reesdi!

- Tchau, tio Rilks!

***

A floresta de Adrastinn era esplendorosa. Suas paisagens deixavam Rílkare estonteado. Örion sentia-se aliviado de estar voltando ao lar, depois de tantas experiências difíceis. Estava ansioso para ver seu o avô e os demais. Apesar de gostar muito de todos de sua terra, sentia ligação especial com seu avô, que era para ele como pai e mãe. Muitos de sua aldeia mantinham certa distância dele. Seu avô explicava que era por causa de sua mãe ter morrido após o parto. Ela era muito querida por todos e de alguma forma, apesar de não admitirem, culpavam Örion pelo falecimento da mãe. Mas no fim, isso não era um grande problema, Örion já era um adulto agora e teve a vida toda para habituar-se ao comportamento às vezes, um pouco frio, de todos da aldeia em relação a ele.

Chegavam à aldeia que não era maior que uma pequena vila, como Pinnus. Rílkare se perguntava quantos silfos habitavam o local. Duzentos? Trezentos? As construções, se é que assim podiam ser chamadas, eram muito diferentes das humanas. Era possível reconhecer estruturas que lembravam casas... Acompanhavam os troncos das árvores, integradas de maneira quase natural. Algumas delas pareciam desequilibradas, sem sustentações suficientes, prontas para cair com o peso dos habitantes.

Enfim, estavam entre os silfos de Adrastinn.  Habitantes de cara fechada diziam coisas a Örion, mas Rílkare não podia compreender.

- Como pode trazer um humano até nossa aldeia sem nos consultar?

Outro disse - Típico! Que desrespeito à nossa segurança e privacidade. Quando é que você vai aprender a se comportar como um de nós?

- Tolo! Você é só problemas! - disse um velho silfo.

- Ele vai acabar trazendo problemas para nosso povo, pode saber disso.

- Se tivessem feito como eu disse, há anos, não teríamos esses problemas agora.

Örion baixava a cabeça e pedia desculpas, seguindo para a moradia de seu avô.

- O que estão dizendo? - quis saber Rílkare.

- São um tipo de boas-vindas... - mentiu Örion.

- Muito estranhas, eu diria. Mas vai entender? O comportamento dos silfos...

- Na realidade... - Örion sentia-se desconfortável mentindo, em especial para seu amigo - não estão muito felizes em me ver.

- Mesmo? Você fez algo de errado?

- Talvez, ir me misturar com os humanos seja uma boa explicação, mas às vezes acho que é algo que independe das minhas ações. Como se eu fosse errado. Errado por natureza.

- Sinto muito, eu não sabia...

- Mas não ligue para eles - disse enquanto cavalgavam calmamente entre dezenas de maus olhares, comentários rancorosos e algumas caras feias. - Espere só até conhecer meu avô!

Os comentários negativos cessaram com a chegada o ancião, Iot Evos Erendon.

- Örion! Örion! Meu rapaz!

- Vovô! - Örion pulou de Zitrehidel com a agilidade sílfica, quase acrobática, para dar um caloroso abraço em seu avô.

- Deixe-me ver seus olhos. - Iot Evos, ficou sério - Vejo que passou por muitas dificuldades. 

Örion apenas confirmou com um aceno. Rílkare desmontou e aproximou-se deles.

- Você trouxe seu amigo, não foi? - Olhou para o neto com olhar desaprovador, mas depois sorriu. - Tudo bem, eu confio em seu julgamento.

Örion sorriu e introduziu o amigo em saubiquense. - Vovô, este é Rílkare Krenov.

O ancião respondeu na língua humana, estendendo-lhe a mão, também conforme o costume humano - Então, enfim, estou a conhecer o famoso Rílkare Krenov. É mesmo muito parecido com seu pai, meu rapaz.

Rílkare sorriu com seus dentes separados, que causariam estranhamento entre os silfos, todos com dentição muito correta e sorrisos perfeitos. Mas logo ganhou a simpatia de Iot Erendon. - É muita honra conhecê-lo, senhor Erendon.

- Entendo porque Örion é seu amigo - revelou Iot Evos - Vejo pelo seu olhar que é um rapaz de bom coração.

Rílkare olhava para os olhos esverdeados de Iot Evos, reconhecendo neles serenidade e simpatia. O ancião vestia um manto branco por sobre as roupas que tinha uma branda luminescência, algo que deixou Rílkare surpreso.

Örion observou, com uma ponta de tristeza, enquanto todos os demais retornavam a seus afazeres. Alguns ainda demonstrando insatisfação com sua chegada. Pensando melhor no assunto, via que eles tinham razão. Ter trazido um humano era muito ruim no ponto de vista deles, mas, isso por que não conheciam Rílkare. Ao mesmo tempo, lembrou-se de tipos como Eskallurè, lembrou-se da guerra e sentiu que, no fundo, eles todos tinham a razão.

- Vamos Örion! - Ordenou o avô - Pare de sonhar acordado e vamos entrar. Há um bom chá nos esperando e temos muito que conversar.

***

A noite na aldeia de Örion era serena. Do alto, era possível observar as janelas aproximadamente ovais das demais moradias com suas luzes brancas e esverdeadas. Rílkare sentia-se muito bem na sala de Iot Evos. Era mais confortável que o castelo de seu pai, em Balish. Örion lia com avidez um livro emprestado de seu avô. Abaixo, Rílkare podia ver o velho Iot argumentando com dois outros silfos. Um deles parecia ser uma moça, mas não tinha certeza, pois vestia um manto que lhe cobria a face e boa parte do corpo. Poderia também ser um jovem imaturo.

Os argumentos eram em sílfico e mesmo que pudesse escutar com clareza, Rílkare não entenderia.

O ancião disse - Veja, meu caro Keledrel, não é pela razão que peço que construa seu julgamento.

- Desculpe-me Iot, mas tão pouco sinto que devemos ajudá-los.

- Vejamos por outro ângulo, Keledrel. A jovem Irscha já concordou que a doença que aflige o outro amigo de Örion, não poderá ser curada pelos meios dos humanos.

- Sim, mas não vejo relação com violarmos nossas tradições - disse o silfo Keledrel com o cenho levemente franzido. Não era alguém que mostrava pela expressão a totalidade de seus sentimentos e opiniões. Tinha feições delicadas como a grande maioria dos silfos, porém seu corpo era um tanto mais robusto, sendo possível observar os músculos delineados. Gostava de passar nos seus cabelos negros, uma seiva que o deixava lustroso e volumoso com pontas na parte posterior da cabeça. Algo que era um costume entre os guardiões da comunidade.

A jovem silfa, que tinha cabelos e olhos castanhos amarelados, argumentou com voz gentil - As tradições têm um motivo para existir, mas não devemos nos prender a elas. Ou seremos escravos destas? Será que não temos escolha?

Iot insistiu - Keledrel, Irscha já concordou em acompanhar Örion para acudir o enfermo.

- Muito bem, já disse que não me oponho.

Iot sorriu. - Ótimo, então, conforme seu dever de guardião, peço que escolte e proteja nossos familiares, Örion e Irscha em sua jornada até Pinnus.

- Se imagina que é necessário...

- Sim, não imagino meu rapaz, eu sei.

- Novamente peço desculpas por não ver e concordar com seu ponto de vista, mas continuo contra escoltá-los adentro da velha floresta. Além de ser fora de nossos limites é um lugar perigoso.

- Entenda, é justamente por causa de tais perigos que gostaria que os acompanhasse. Mas como não posso forçá-lo, quero pedir-lhe apenas como um favor.

- É claro.

- Acompanhe-os, observe, aprenda e depois, conforme seu julgamento, tome a decisão se os ajudará, ou não.

- Combinado. Posso lhe pedir um favor em troca?

Irscha riu e disse - Olha quem vem falando de tradições...

- Irscha, por favor. - Iot chamou a atenção da moça e voltou-se para Keledrel - Isso não é usual, mas aceito.

- Permita-me questionar as decisões que o conselho tomou em relação ao jovem Örion. E neste ponto, o favor. Que o senhor reveja se suas opiniões não estariam influenciadas pelos seus laços sanguíneos com o rapaz.

- Keledrel! - exclamou Irscha escandalizada.

- Está bem, Irscha. Não se preocupe. - pediu Iot Evos. - Apesar da indelicadeza do guardião Keledrel, eu compreendo o que se passa em sua mente. Já fui mais jovem e compreendo.

- Desculpe-me novamente, Iot, mas digo o que está na minha mente para libertar meu coração das dúvidas.

- Está desculpado, meu rapaz. Não devia, mas vou revelhar-lhes algo que não sabem. Algo que somente os membros do conselho estão cientes, porém devo advertir, o peso deste conhecimento poderá se depositar em vossos corações. É algo que poderá perturbá-los, portanto, pergunto aos dois, querem mesmo saber?

Keledrel respondeu com firmeza - Sem dúvida.

Irscha hesitou, demonstrando um pouco de nervosismo.

- Irscha - disse Keledrel - Não fique. Isso é um assunto que eu levantei, não quero que seu equilíbrio...

- Não Keledrel, considerando que acompanharei o jovem Örion, também desejo saber. Quanto a meu equilíbrio, apesar de não ser uma guardiã, sei bem me cuidar, assim como você.

- Muito bem, vocês dois e agora, não é um favor que lhes peço, convoco minha autoridade de conselheiro, sob pena de exílio, a não revelarem aos demais o que vou lhes contar.

- Aceito o encargo, conselheiro Iot Evos. - declarou Keledrel.

- Eu também aceito. - disse Irscha.

Iot Evos olhou-os com compaixão nos olhos e suspirou. - Enfim, acho que contar a mais alguém, fará bem ao meu coração envelhecido.

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