CAPÍTULO 12
Seguiam por uma trilha que levava a uma mina há muito abandonada. Porém, após algum tempo o guia desviou-os desta. Começava a parte mais difícil da travessia.
A tempestade era tão intensa que, para percorrer certos trechos naquela região montanhosa, tiveram de dispensar as montarias. Örion conversou com sua montaria, o belo Zitrehidel, pedindo que tomasse conta dos demais, incluindo seu irmão mais jovem a montaria de Rílkare, Ferro-em-brasa. Os cavalos desceram o monte abrigando-se sob frondosas árvores numa clareira próxima.
Deixando os animais para trás, seguiram morro acima seguindo o guia. A chuva forte e o vento gelado forçavam que se movimentassem sem cessar para manterem os corpos aquecidos. Não havia uma só parte dos corpos que já não estivesse encharcada. As botas em especial, pareciam ter o dobro do peso, exceto no caso de Örion, que contava com vestimentas e calçados de fibras vegetais cobertas por fino óleo, semelhante ao que protege as penas de aves. Assim o jovem silfo deslocava-se com relativa facilidade em relação aos demais.
O guia fornecido pelo príncipe Kel não falava muito. Possuía plena forma física, seu rosto mostrava uma expressão severa e quando falava usava palavras curtas, quase sempre numa comunicação monossilábica. O ritmo que impunha na caminhada era severo, deixando todos com pouco fôlego para conversações. No entanto, não iam muito longe. O desafio maior era superar era um monte íngreme, logo adiante. Ainda não era meio-dia, mas o guia sugeriu uma parada para rápida refeição: carne seca, queijo desidratado e algumas castanhas. Antes de juntar-se a eles, o guia afastou-se um pouco e se prostrou. Murmurava algo incompreensível para si mesmo. Örion quis saber o que ele fazia e Rílkare explicou que orava e que pelo fervor da oração, devia ser um homem de muita fé.
Do outro lado do monte, a tempestade parecia pior. Relâmpagos rasgavam o céu entre as nuvens escuras e tardiamente chegava o som diminuído dos trovões, como se o céu estivesse resmungando. Persistiu uma sensação ruim na boca do estômago de Örion, desde o encontro com o príncipe mais cedo. E toda aquela situação trazia ansiedade e uma ponta de arrependimento. Nesta hora, poderia bem estar no conforto de sua casa lendo e tomando chá. Mas ao invés disso, sentia seu corpo doer pelo esforço da caminhada e seu coração lhe alertava constantemente sobre um grande perigo. Tentava manter sua mente serena e impedir que o medo se instalasse em seu âmago, pois se isto ocorresse, seria sua ruína. Olhar para Poul e sua tristeza lhe traziam um pouco de ânimo, pois sabia que outros, assim como ele sofriam pela perda de entes queridos. A possibilidade de ajudar superava seus medos e fraquezas, por hora. Então, foi atingido como por um raio por um lampejo de compreensão. Lembrou-se com precisão das palavras de seu avô: "Sei que quer ajudar e que tem pressentido o mal se aproximar. Isto quer dizer que é seu destino confrontá-lo". Era exatamente o que ocorria, estava enjoado e ansioso por que se aproximava de seu destino: confrontar o mal.
Örion levantou-se de súbito segurando com firmeza o braço de Rílkare que se voltou para ele com atenção.
- Escute Rilks. Além daquele monte haverá uma luta, sei disso, posso sentir.
Rílkare engoliu seco e franziu o cenho. O jovem silfo prosseguiu, - apesar do que ouvimos hoje cedo do príncipe, há algo de errado. Ainda não sei bem... É preciso que fiquemos alerta para diferenciar o mal verdadeiro dos maus entendidos.
- Tenha calma Örion, vamos tentar resolver tudo sem a necessidade de violência, está certo?
Eskallurè intrometeu-se, - O franguinho já está apavorado, hem? Pode deixar que o titio te protege. Há há há!
Rílkare condenou o mercenário com um olhar, mas este apenas deu com os ombros e voltou-se para o monte. - Vamos de vez. Minha espada tem saudades do inimigo, em especial, de ratos aldancarianos!
Örion podia sentir a energia negativa vinda do mercenário, e de alguma forma, ele parecia estar em alinhamento com o confronto adiante. Emanava dele um desejo sanguinário.
Mais tarde, puderam visualizar o outro lado da montanha. A descida era mais suave. O pior do caminho já havia passado. A tempestade os impedia ver muito longe, além do pequeno vale entre altas montanhas. Os contornos das montanhas se empalideciam com a distância até sumirem na neblina leitosa. O guia explicou que por este vale havia uma grande estrada que ligava Saubics a Aldancara antes da guerra civil. Apesar de há muito abandonada, a estrada ainda era utilizada por mercadores. Fora o caminho seguido pelo príncipe Luvik e seus homens.
Após a descida, não custou muito a encontrarem a trilha de Luvik e seus homens. Como o guia imaginava, passaram por ali. As fezes das montarias estavam frescas e sugeriam bastante proximidade. Eventualmente, podiam identificar ao longo da trilha, estátuas de pedra escura, tomadas e integradas à vegetação. Eram marcos que ajudavam os viajantes a estimar o progresso nas viagens. A característica marcante das esculturas eram os queixos grandes dos guerreiros e seus cabelos encaracolados. Estilo semelhante ao que viram na antiga cidade de Edrevik.
Seguiram o rastro sem muito descanso para tentar alcançar o príncipe e seus cavaleiros. O crepúsculo se anunciava. Desanimados com uma longa subida à frente decidiram descansar um pouco.
Mais uma vez, o guia afastou-se para fazer suas orações. Ao mesmo tempo, Con verificava a trilha em busca de rastros. Örion comia e observava as orações do guia intrigado. Desta vez, o ângulo lhe permitia observar que além de murmurar fazia movimentos estranhos com os dedos. A oração parecia evocar bênçãos da mesma forma que algumas conjurações mágicas eram operadas. A análise levou seus pensamentos de volta a sua vila. Lembrava-se de sua infância, de quando começou a receber instruções sobre as energias invisíveis que mantinham o mundo e os seres. Energias que a sociedade humana chamava de magia.
Rílkare estava alerta e aproximou-se de Con para discutir sobre os rastros, enquanto Eskallurè e Poul comiam quietos sentados sobre os restos de uma estátua tombada.
Pouco depois, se reuniram todos para discutir as descobertas de Con e finalizar as refeições.
Con apontou o dedo para adiante e revelou - Estou certo de que estão muito próximos. Talvez possamos avistá-los além daquela elevação.
O guia concordou, encarando o nobre - É verdade senhor.
Örion encarava o guia, mas este evitava seu olhar.
Eskallurè definiu - Então vamos! Melhor que os encontremos ainda na luz do dia.
Puseram-se a caminhar ladeira acima. Apesar de todo ruído da tempestade, um som particular chamou a atenção de todos. Em seguida, o som se repetiu e logo souberam: metal contra metal. Poderia bem ser uma luta. Faltava pouco para o topo e logo estavam a correr, escutando, mais e mais, sons de uma batalha que se intensificava. O primeiro a atingir o topo foi Eskallurè.
- O príncipe está sob ataque! - Desembainhou sua espada e sem parar de correr elevou-a gritando - Malditos aldancarianos!
Logo, Örion e os demais puderam ver a batalha que ocorria adiante. O jovem silfo sentiu-se mal, temendo por sua vida e de seus companheiros. O que poderia fazer? Não estava preparado para enfrentar uma batalha. Concentrou-se em compreender a situação. Abaixo podiam ser vistos oito cavaleiros cercados por mais de vinte homens à pé portando lanças e em pleno ataque. Entre os que identificou como inimigos, havia um montado que tinha aparência aterradora. O líder dos opositores, como julgava, era combatido por dois dos cavaleiros que acompanhavam o príncipe. Vestia uma armadura de placas e o metal molhado reluzia tons vermelhos e alaranjados reagindo às luzes do crepúsculo. Era um homem grandalhão e parecia ser muito mais forte que os demais. O elmo dele tinha preso à face o crânio de uma crilha, uma espécie de cervo comum na região. Crilhas tinham chifres negros, alongados e contorcidos sob seu próprio eixo, como um agulhão de perfuração. Na mão esquerda empunhava uma espada de lâmina larga, maior e mais pesada que outras, enquanto tinha preso ao braço direito um escudo escuro com o desenho estilizado de um crânio de crilha.
Ele dividia a atenção entre os dois atacantes defendendo-se com o escudo ao mesmo tempo que golpeava e contra golpeava com a espada. Sua posição avançada indicava que teria liderado o ataque deixando seus homens para trás.
Apesar da atenção dividida no combate com os dois cavaleiros, o aterrador Cabeça de Crilha, pareceu por um momento encarar Örion, fazendo um calafrio percorrer sua coluna. No momento seguinte, desferiu golpe contra o pescoço da montaria de um dos cavaleiros. Örion sentiu seu coração apertar e seus olhos se encheram de lágrimas. Tal crueldade transformou seu ser num só instante. "Covarde! Covarde! Covarde!" Seus pensamentos ecoavam na mente.
Um pouco adiante, Rílkare ao observar o mesmo ataque desleal, encheu-se de raiva. Passou a correr ladeira abaixo com maior intensidade, ansioso para confrontar o inimigo.
Enquanto a montaria do cavaleiro empinava e relinchava tombando, o Cabeça da Crilha voltou-se para o outro cavaleiro penetrando suas defesas com um golpe certeiro da espada contra uma das frestas de sua couraça. Ambos cavaleiros tombaram quase simultaneamente. Livre de seus oponentes, o cruel opositor avançou contra os demais cavaleiros que formavam um semi-círculo para proteger o príncipe dos soldados à pé.
Algo impelia Örion a prosseguir, mas o choque de assistir uma batalha sangrenta o deixava para trás. Diante de si, assustou-se ao perceber o guia tombar e rolar por alguns instantes. Aproximou-se dele para verificar sua condição. Em seu rosto, uma expressão de dor enquanto segurava o tornozelo com ambas as mãos.
- Você está bem?
- Estou bem! - vociferou - Vá rapaz! Proteja o príncipe!
Örion voltou sua atenção novamente para o local da batalha e, neste momento, Rílkare, Eskallurè e Poul engajavam os inimigos. Rílkare cruzou espadas com um dos aldancarianos recuando sob seus ataques ferozes. Um pouco adiante, Eskallurè fazia o oposto, dominando a luta. Já Poul, sobrepujou as defesas do inimigo com seu ataque violento derrubando-o com um só golpe. Adiante, os cavaleiros derrubavam os aldancarianos, mas também caiam. Dos sete originais, restavam apenas quatro e a esta altura o próprio príncipe tinha espada empunhada a se defender.
Örion aprendera a manipular os elementos através da magia, porém nunca havia utilizado tais conhecimentos numa situação de combate. Sussurrou as palavras em concentração profunda passando a enxergar a realidade à sua volta de forma plena. O elemento água estava abundante no local, facilitando seu trabalho. Da lama empoçada sobre a velha estrada fez jorrar um jato com a força de um gêiser seguindo a inclinação perfeita para atingir a face do opositor de Rílkare. Com os olhos cobertos de lama, o soldado aldancariano não teve chance de se defender. Rílkare o derrubou sem querer matar.
- Obrigado! - disse ao olhar para trás e ver a expressão miserável no rosto de Örion. O jovem silfo detestava a situação em que se encontrava com todas suas forças, mas parecia não haver alternativas senão colaborar com seus companheiros, mesmo que isso significasse engajar-se em situações violentas e sangrentas.
Mais adiante, Poul lutava lado a lado com Eskallurè, que derrubava o segundo oponente e gritava furioso - Condarillo seu inútil! Faça alguma coisa!
Fervilhavam inimigos e talvez a contagem inicialmente feita de vinte pudesse chegar a vinte e cinco.
Con, atrás de todos, tinha as mãos nervosas e passava uma adaga pontiaguda de uma para a outra. Observava a batalha como se estivesse paralisado de medo.
Em dupla, Rílkare e Örion conseguiram eliminar mais um oponente. O Cabeça de Crilha derrubou mais um dos cavaleiros. Agora avançava contra o príncipe com toda velocidade.
Con, bastante concentrado, finalmente parou de passar a adaga de uma mão à outra. Segurou-a com intensidade na mão direita elevando-a acima da cabeça. Estava prestes a lançar quando o próprio príncipe posicionou-se entre ele e seu alvo: o Cabeça de Crilha. - Maldição! Vamos! Saia da frente!
O príncipe saiu da frente sim, conforme o desejo de Con, porém para o choque geral, o príncipe fora atingido pela pesada e poderosa espada do líder encouraçado. Um dos cavaleiros gritou - Meu príncipe!
Furioso e sedento de vingança, o cavaleiro avançou contra o Cabeça de Crilha e foi abatido com um golpe contra a garganta. O Cabeça de Crilha parecia um oponente invencível. Con lançou sua adaga. Esta cortou o ar e a chuva numa trajetória perfeita penetrando com precisão a órbita vazia da caveira que cobria o rosto do atroz oponente. O efeito foi imediato, o cavaleiro caiu do cavalo de costas no chão fazendo levantar a água enlameada ao seu redor como uma pesada pedra atirada em um lago.
Restava apenas um dos cavaleiros defensores ainda montados, este em especial, havia derrotado mais de cinco oponentes sozinho. Eskallurè derrotou o último oponente urrando irado. - Argh! Diabos! Madição! Perdemos o príncipe!
Caminhou irado na direção de Örion, que estava chocado e desnorteado.
- Seu inútil! Você não fez nada. O príncipe já era e é culpa sua! - Mesmo antes que outros pudessem intervir empurrou-o no chão com violência. - Seu grande idiota! Você foi o único que não matou ninguém!
- Isso não é verdade! - exclamou o guia que aproximava-se mancando. - Se alguém é inútil aqui sou eu. E se quer brigar com seus próprios conterrâneos, que tal começar comigo? Hã seu bufão!
O cavaleiro remanescente avisou - Parem já com isso, seja lá quem vocês forem! É hora de avaliar os prejuízos desta batalha e atender aos feridos, inclusive ao príncipe.
Desceu de sua montaria ao lado do corpo do príncipe.
Rílkare auxiliou o cavaleiro e aproveitou para apresentar-se - Sou Rílkare Krenov.
O cavaleiro acenou - Sir Adslay.
Era um nome famoso. Sim, agora pode reconhecer os olhos do cavaleiro através da fenda de seu elmo. Era um dos cavaleiros de maior status, subordinado diretamente ao rei Ludsfay.
Ambos aproximaram-se do príncipe. Ele estava com o rosto parcialmente afundado na lama e o cavaleiro virou-o. Havia um corte profundo na garganta que sangrava muito, porém o príncipe ainda não havia fenecido. Ao ser virado, tossiu vigorosamente.
Rílkare ajoelhou-se ao lado do nobre cujos olhos giravam enquanto tossia expelindo sangue pela boca. Finalmente os olhos do príncipe se afixaram em Rílkare demonstrando certa surpresa.
Falava com muita dificuldade - Filho de Krenov? Mas como? Cof! Cof!
Rílkare pressionava os lábios, sentindo um leve enjoo. Olhava os olhos verdes, agonizantes, de Luvik. Sir Adslay pressionava o corte com um tecido, que ficou encharcado e rubro.
- Alteza, nos perdoe... Chegamos tarde. O príncipe Kel nos envi...
A expressão do príncipe moribundo mudou. Olhou Rílkare com ódio no olhar tossiu muito e finalmente conseguiu falar - Kel? Escute-me Krenov... Cof! Cof! Não... cof! Confie em Kel. Ele e suas menti... cof, suas... cof... cof.. intri... cof! Maldito! Cof! Cof! Cof! Ele só quer... - engoliu e fez uma careta terrível de dor. Sua voz ficava mais fraca e não podia ser ouvido.
Rílkare aproximou-se encostando o ouvido na boca do príncipe.
- Poder... o trono não deve... não deve... acredite... não pode... reinar. - Respirou mais uma vez com dificuldade. Seu último suspiro foi - Ajude Tarin...
O cavaleiro Adslay percebeu que o coração parou de bater e ficou cabisbaixo. Rílkare, por sua vez, ficou confuso com as últimas palavras de Luvik. Ficou claro que Luvik odiava muito seu próprio irmão. Mas o contrário não parecia verdade. Se tivessem apenas chegado mais cedo poderiam ter evitado esta tragédia. Só então Rílkare percebeu que as consequências do que acabava de ocorrer podiam ser terríveis. A partir desta constatação, a expressão de Rílkare ficou severa e grave, e, em seu íntimo, passou a sentir que uma grande tragédia estava para cair sobre o povo saubiquense.
Con, Poul, Örion, Eskallurè e o guia se encarregaram dos demais. Dois outros cavaleiros feridos iriam sobreviver, quanto aos inimigos, apenas três não tinham ferimentos mortais, dois deles, justamente os que Rílkare havia poupado. A batalha sangrenta terminou. Mas muitas mais ainda estavam por vir.
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