CAPÍTULO 115
A situação do império lacorês era conturbada. Com conflitos atingindo o seu centro, não tardou para que chegassem notícias de rebeliões nos reinos anexados. A morte de Serin deixou Gris sem monarca e a moral das tropas que combatiam em Keldor e Tchilla também foi abalada.
Na capital, estava em vigor a lei marcial. As ruas estavam apinhadas de guardas para manutenção da ordem. Não teriam chegado ao Banquete do Monge sem serem questionados, se não fosse pela atuação de Calisto que por duas vezes ludibriou os guardas com sugestões psíquicas.
A taberna ainda estava fora de funcionamento. Foram recebidos por Felear, sócio de Meinard. Houve um misto de celebração e estranhamento no reencontro de Felear, Kyle e Kiorina. O ex-cavaleiro havia servido de escolta para Kiorina na ocasião em que ela fora feita prisioneira do governo necromante. Felear não desconfiava que os bruxos necromantes, assassinos do rei Corélius, estavam no poder.
– Kyle Blackwing? Mas não é possível, você não mudou nada! – exclamou Felear ao reconhecê-lo no salão vazio da taverna.
– Cavaleiro Felear? – ele o reconheceu, mas sua aparência havia mudado, estava mais maduro.
– Há muitos anos não sirvo a coroa, pode me chamar apenas de Felear.
Kiorina retirou o capuz, mas ele não a reconheceu.
– Lembra-se de Kiorina?
Felear espantou-se ao perceber que aquela mulher era a menina magrela que conheceu um dia – Senhorita – ele inclinou-se para uma exagerada vênia.
– Este lugar pertencia a Nasbit – observou Kiorina.
– Verdade. – Kyle recebeu instruções em sua mente para apresentar Calisto e Hana. – E estes são, err, Mitch e Isma, companheiros de viagem.
– Prazer em conhecê-los – Felear os cumprimentou, mas Calisto não olhou-o nos olhos.
Kiorina franziu o cenho para Kyle. Que história era aquela de Mitch e Isma?
Felear prosseguiu – Vamos até os fundos, Meinard vai gostar de vê-los.
No quintal, encontraram o gorducho tirando uma soneca deitado sobre uma esteira na sombra da grande árvore.
– Ô, Meinard! – ele o sacudiu – temos visitas!
– Hã? Mas quem? – Ele levantou-se coçando os olhos e tinha marcas da fibra da esteira estampadas na metade do rosto.
– Cavaleiro Blackwing? Jurava que nunca mais o veria... Mas estive errado quanto a Archibald também.
Kyle cumprimentou-o.
– Como é mesmo seu nome? – indagou Meinard.
– Kiorina.
– Ah, sim, me desculpe, Kiorina DeLars, agora me lembro. Estes dois?
– Cal... ah, hã, hã. Mitch e Isma – disse Kyle. – Procuramos por Nasbit, sabe como achá-lo?
Meinard fez uma careta. – Ora... Aquele... Felear, peça ao menino para trazer vinho e algo para comermos. Vamos, minha gente. Sejam bem vindos ao meu, hã, quintal. Sentem-se, por favor. Havia mesa e cadeiras ali perto.
Hana sorriu para Meinard, achou-o bastante simpático. O menino chegou trazendo um garrafão de vinho e canecos. Meinard pediu que Felear saísse à procura de Nasbit.
– Bom, Archibald me contou muita coisa. Já soube de muitas de suas aventuras até chegarem na cidade de Tchilla, fico imaginando o que aconteceu depois que vocês se separaram.
Kiorina e Kyle contaram um pouco do ocorrido omitindo muitos detalhes, pois não estavam à vontade em compartilhar informações com a princesa e Calisto.
O relato sobre Banzanac deixou Meinard curioso e impressionado. Fez à dupla muitas perguntas a respeito. Ele fez muitas perguntas a Calisto e Hana, mas arrancou muito pouco destes dois. A conversa foi longe, até a noite cair.
Meinard os convidou para entrar. Arrumou uma mesa no salão da taverna e acenderam velas em vários candelabros.
– Será que Nasbit vem? – indagou Kiorina.
Meinard deu com os ombros – Talvez...
Com toda a conversa, ficaram mais atualizados a respeito dos acontecimentos em Lacoresh. A porta da taverna se abriu e seis pessoas entraram: Felear, Nasbit, Gorum e outros três desconhecidos.
– Me deixariam de fora disto, não é? – Gorum resmungou jocoso.
– Mas como? – Kyle não compreendia.
Nasbit retirou o manto escuro revelando sua face, barba farta e grisalha cortada abaixo do queixo. Ficaram, mais atrás, duas figuras vestidas de negro encapuzadas.
– Kyle Blackwing e Kiorina DeLars, chegaram bem na hora – anunciou Nasbit.
– Hora de que? – indagou Meinard.
– Para assistirem a cerimônia de coroação. Agora isto, princesa Hana – Nasbit dirigiu-se a ela – Não é uma tremenda coincidência?
– Princesa? – Meinard cerrou as sobrancelhas.
– Entendo que não queira chamar atenção majestade, mas aqui estamos entre amigos.
Calisto ficou tenso e moveu o pescoço involuntariamente. Pôs-se a sondar os pensamentos de Nasbit e seus capangas. Surpreendeu-se ao perceber que nada emanava deles.
– Como achou Gorum? – Kyle demandou.
– Vamos lá, Blackwing, relaxe – retrucou Nasbit descontraído – A explicação é muito simples. A irmandade está sempre atenta a tudo que acontece nesta cidade. Nossa pista veio de um rapaz falador que fez questão de gastar uma rara moeda de ouro em um lugar onde estamos presentes. O que nos levou às imediações do farol. Houveram movimentações ali desde que a princesa, Radishi e outros utilizaram-no para escapar da fúria do regente. Quando encontramos Gorum, já tínhamos recebido notícias de Felear quanto a presença de vocês aqui. Enfim, não há nada a temer.
– De que coroação falava há pouco? – indagou Hana.
– A sua, é claro. Aí que está... O regente, não dá ponto sem nó. Ele certamente sabia de sua chegada. Há um alvoroço na cidade, estão todos na expectativa de sua aparição.
– Isto só pode ser uma armadilha! – disse Calisto.
– Mas certamente, Barão Calisto.
– Eu o conheço?
– Não, mas eu conheço todos vocês, muito bem.
Kiorina estava confusa – Pode explicar isso tudo melhor?
– Mas é claro, Srta. DeLars, tudo está acontecendo agora que o alinhamento dos astros está tão próximo. O líder dos necromantes zarpou de Lacoresh levando as crianças do eclipse. Arávner anuncia que a princesa Hana foi encontrada em que irá assumir o trono lacorês. Venho até aqui e quem encontro? A própria princesa e até o falecido Barão Calisto. Com quem estão? Kyle, Kiorina e Gorum, os últimos enviados do venerável silfo Modevarsh para buscar a salvação de Lacoresh. Ora meus caros, obviamente, nada disso é coincidência. Eu diria até que é o resultado de algum plano bem elaborado.
– Thoudervon... – quase sussurrou Calisto.
– Isto mesmo, Barão!
Calisto estranhou. Ninguém normal o teria ouvido.
– Isto mesmo o que? – indagou Kyle.
– Thoudervon, foi o que o Barão sussurrou, não é mesmo?
Calisto concordou com um aceno, agora mais desconfiado ainda em relação a Nasbit.
– Ainda acho que isto seja uma armadilha de Arávner – insistiu Calisto.
– Talvez sim, mas ele e uma pequena comitiva de cavaleiros deixou Lacoresh, no início desta tarde.
– Para onde foram?
– Tomaram a antiga estrada ocidental.
– Para Grey? – indagou Felear.
– Talvez – voltou Nasbit – O fato é que dada a gravidade da situação de Lacoresh, qualquer um que assuma o trono pode ficar em situação delicada, ou melhor, perigosa, possivelmente letal.
– Está me dizendo que não devo assumir?
– Não disse isto... Mas penso que se o fizer, será algo semelhante a penetrar num ninho de víboras.
– Entendo.
– O veneno virá de todos os lados, mas o que vossa majestade precisa, princesa, é de nossos serviços.
– Serviços?
– Tenho convicção de que podemos prover informações e segurança necessárias para que possa assumir o trono, e... Como é mesmo que foi sua promessa? Que vai consertar os crimes cometidos por seu pai e pelos necromantes. Não foi isso que disse?
– Como sabe disto?
– Ora, nada demais. Apenas tive a chance de conversar bastante com Gorum, não é?
Gorum deu com os ombros, pois bebia um gole de vinho.
– Agora Blackwing, enquanto a princesa estiver ocupada assumindo sua legítima posição, algo que precisa ser feito quanto ao velho louco.
– Velho louco?
– Maurícius e sua horda...
– O que sabe sobre isto?
– Ele está reunindo forças para um ataque derradeiro sobre a capital. Suspeito que isto venha a ocorrer dentro de poucas semanas, quando as luas e o sol estiverem alinhados.
– Ouvi dizer que são muitos...
– Então é hora de reunir as tropas de Lacoresh e Kamanesh e partir para o confronto.
– Como espera que eu faça isto?
– Bem, ao seu lado está a futura imperatriz de Lacoresh. O primeiro cavaleiro, General Fortrail partiu na escolta do regente. Não custará muito para a imperatriz nomear o filho do grande herói Armand Blackwing como o primeiro cavaleiro de Lacoresh.
Hana começava a sonhar com as coisas que poderia fazer quando assumisse o poder – Se pensa que com isso possamos deter meu pai...
– Sim princesa, mas não apenas isto. As tropas poderão levá-lo ao território do inimigo para um confronto, mas ainda precisarão de um aliado poderoso para derrotá-lo. Eu já testemunhei a destruição de que ele é capaz. Apenas a força de alguém como o Dragão de Fogo poderá balancear as coisas.
– Dragão de Fogo? – indagou Kyle.
Um dos homens que acompanhavam Nasbit deu um passo à frente e baixou o capuz. A visão de suas horríveis cicatrizes em todo rosto e na careca e de seu olho mutilado, causaram revulsão nos presentes.
– É como me chamaram na recente batalha contra os mortos-vivos de Maurícius.
– Vekkardi? – Kyle reconheceu a voz e o olhar do discípulo de Modevarsh. – O que houve com você?
– Fui atormentado por dois monstros: Yourdon e Necranxelfer.
– Yourdon está morto – Calisto jogou um olhar acusador para Kiorina – Mas quem é este Necranxelfer?
– Um demônio... Um maldito demônio que precisaremos cooptar antes de confrontar Maurícius.
– Chris Yourdon morreu? – indagou Nasbit.
Calisto estremeceu e torceu os lábios para falar – Foi incinerado pela Kiorina aqui... Já deixo meu aviso para não importunar esta aí... É capaz de matar um aliado de uma hora para outra.
– Seu moleque! Está querendo ter o mesmo destino? – provocou Kiorina irritada.
– Viram o que eu disse?
– Mas afinal – cortou Hana – Onde está o tal Necran... O tal demônio?
Nasbit falou – acreditamos que esteja escondido em Kamanesh.
– Escondido, como assim?
Nasbit prosseguiu – Thoudervon andou enviando seus bruxos em sua procura. Ele falhou, mas nós que vemos tudo que ocorre, aqui e ali, temos notícia de seu esconderijo.
Calisto riu olhando para sua mão, que tremia fora de controle. – O que espera que façamos? Que cheguemos para um demônio e simplesmente peçamos para ele nos ajudar?
– Não – retrucou Vekkardi. – Eu partilhei sua mente. Agora sei como ele pensa, sei o que ele quer. Há boas chances de que consigamos estabelecer uma barganha com ele.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top