CAPÍTULO 114

Gorum roncava ruidosamente na outra sala. Kiorina acordou cedo com a luz do sol penetrando as janelas do farol. Ela viu Kyle de pé ao lado de uma das janelas que davam para o mar. Levou as mãos, tocando a maçã do rosto com os dedos. Os arranhões feitos com as próprias unhas quando fora possuída pelo espectro já tinham formado fina casca que começava a sair deixando á vista linhas de pele nova branca e avermelhada.

Kyle disse – A princesa desceu para buscar provisões e alguns mantos.

– Humpf... – resmungou Kiorina. Os dois não se falavam muito desde que Kyle resolveu ficar em Banzanac com Lilástrata. Kiorina puxou a janela e deu uma olhada para fora.

– Cuidado! – Kyle puxou-a pelo ombro – Você vai ser vista assim!

Kiorina desvencilhou-se e rosnou, mau humorada – Não numa hora destas e deste lado... – e voltou a colocar sua cabeça para fora.

A torre era muito alta e Kyle não colocaria a cabeça para fora, pois sentia certa vertigem. O jeito que Kiorina se debruçou em seguida fez com que ele se lembrasse da ocasião em que visitaram aquele mesmo local quando eram crianças. Gorum tremia e a repreendia toda vez que Kiorina se debruçava daquela maneira.

– Lembra-se de quando viemos aqui?

Ela voltou a tocar os pés no chão e olhou para Kyle. O rosto dele estava parcialmente iluminado pela luz alaranjada do alvorecer. Tinha uma expressão cansada, talvez, um pouco envelhecida. Os cabelos curtos e barba por fazer faziam-no parecer mais velho.

– Sim, e de muitas outras coisas – Kiorina desviou o olhar ainda cheia de ressentimento.

Kyle sabia sobre o que ela estava falando. – Olha Kiorina, estamos de volta ao nosso lar, mas, ainda há coisas que precisamos fazer.

– Estou ciente disto – disse encarando o vai e vem do mar.

– O que eu quero dizer é que...

– Me poupe dos seus rodeios Kyle. É melhor deixar essa conversa para uma outra hora. Eu tenho muita coisa para pensar.

Kyle deu com os ombros e saiu. Estaria mesmo no caminho certo? Até onde poderia confiar nas revelações feitas pelo oráculo?

Voltar a Lacoresh deixou Kiorina com a mente fervilhando e com pensamentos pesados. Pensava em todos aqueles que haviam perdido suas vidas. Ector, Radishi, Noran... Mas um entre todos deixou nela uma marca profunda e terrível: Chris Yourdon. Começou com o surto de raiva que tomou conta de si quando tocou o Orbe do Progresso pela primeira vez. Em um átimo, a explosão veio e já não havia mais volta. Estava feito. A voz cheia de ressentimento de Calisto ecoava em sua mente "Você matou Yourdon? Como pode?". Kiorina olhava para suas mãos franzindo o cenho e pensava "Como pude? Como pude mudar tanto? Quem sou eu agora, depois disso tudo?" Lembrou-se de Chris na época da escola e como ele implicava com ela. Aquele mesmo homem magro e careca que queimou, em instantes, havia sido apenas um aprendiz, como ela. E sabe-se lá como, tornou-se um monstro insensível. Era aquilo também que estava acontecendo com ela? Um eco de uma voz maligna agora lhe falava como uma segunda consciência. "Está tudo perdido. Não há como salvar o mundo. Kyle também é um traidor. Ele traiu você uma vez. Trairá novamente. Não pode confiar em ninguém. No fim, todos só querem saber de seus interesses". Aquilo se misturava de forma quase indistinta com seus próprios pensamentos. "Para que arriscar a vida tentando ajudar alguém, se ninguém está me ajudando?"

***

Era um dia ensolarado em que a forte brisa marítima varria o mau cheiro da cidade. Hana desceu do farol deixando os demais para trás. Usou sobre si um encantamento de ilusão para tornar sua aparência pouco suspeita. Tomou o disfarce de uma mulher de mercador e foi direto ao mercado gastar algumas moedas de ouro lacorês que trazia consigo.

Comprou dois vestidos simples, um para si e outro para Kiorina. Para Calisto adquiriu uma blusa e calça cinzentas e para Kyle um par marrom. A verdade é que todos precisariam de roupas. Também comprou mantos e capuzes para todos.

Um rapaz da loja ajudou Hana a levar as roupas até as proximidades do farol. Era baixo e magro. Vestia roupas batidas e sorria para a princesa mostrando que faltavam alguns dentes na boca. Hana pressionou os lábios forçando um sorriso. Não era o tipo de pessoa com quem lidaria em sua vida na corte. Ela indagou – Diga-me rapaz, o que é esta movimentação no porto hoje?

– A sinhora num ouviu dizê não?

– Como disse? – ela não conseguiu entender seu modo de falar.

– São us menino dos zói de esclips... Dizem que tods'elis e tumbém us magu da iscola, vão tudo djunto.

– Para onde?

Num sei não sinhora... Mas deve di sê pra algum lugá importante, né?

Hana concordou com um aceno. Depois de avançar um pouco mais disse – Pode deixar o pacote aqui.

– Aqui sinhora? – indagou o rapaz surpreso. – Disculpa perguntá, mais a sinhora mora aqui?

– Não...

– Mais vai ficá aqui suzinha assim? Esse lugá é pirigussissimu

Ali havia um conjunto de casa rotas num canto deserto sob a torre do farol. De certo, um lugar próprio para mendigos ou mesmo ladrões.

– Tome aqui – Hana deu-lhe uma moeda de ouro – Vá logo e não me importune mais.

O rapaz arregalou os olhos e deu um largo sorriso banguelo, pois acabava de ganhar mais do que seu salário de um mês. – Obrigado! Obrigado! Se precisá, tamu sempe às ordi!

O rapaz sumiu de vista e Hana aplicou um feitiço de levitação sobre o pacote tornando-o leve como uma pluma. Ela contornou a torre do farol até o lado mais próximo do mar. Ficando bem próxima da parede voou rapidamente até penetrar uma das janelas, bem no alto.

Hana entrou e encontrou-se com Kyle.

– Olá, cavaleiro.

– Princesa. – Kyle fez uma vênia.

– Ajude-me com isto. – ela entregou o volumoso pacote para o rapaz.

Kyle removeu os nós do pano da trouxa colocando-a sobre o chão poeirento.

Hana pegou as peças de roupa e um dos mantos e disse – Isto é para você. E isto – pegou um manto – é para o grandalhão.

Kyle experimentou o seu manto e levou o restante nos braços.

Hana viu Kiorina numa pose tensa, agarrada ao beiral da janela como se fosse esmagá-lo.

– Ruiva, venha ver o vestido que lhe trouxe.

Kiorina ignorou o chamado. Ela insistiu – Kiorina! Por acaso está surda?

Calisto surgiu silenciosamente do meio das sombras e disse – Para que a gritaria, princesa?

– O que há com ela?

Calisto sondou-lhe a mente e percebeu um padrão de pensamentos pujantes na forma de uma barreira. Usando suas faculdades, direcionou o Jii que ao tocar a barreira fez com que se desfizesse como uma bolha de sabão tocada por uma agulha.

Kiorina disse meio zonza – Hã, o que foi?

– O vestido – disse Hana mostrando a peça de tecido verde – Combina com seus olhos.

Kiorina sorriu e veio inspecionar o vestido. Acostumada a usar roupas de fino acabamento e bom gosto feitas no negócio de seu pai, achou-o um tanto grosseiro – Dá para usar, obrigada.

Olhou para o outro vestido adquirido por Hana e comentou – O seu é mais bonito.

– Naturalmente, sou uma princesa e legítima herdeira ao trono.

– Os legítimos herdeiros ao trono de Lacoresh foram mortos por seu pai – Kiorina rebateu com acidez.

– Verdade, isto apenas torna minha herança ainda mais legítima. Se estivessem vivos, ou exilados, seria diferente. Não seja inocente, Kiorina, durante a história de Lacoresh, e mesmo de outros reinos, sempre houve guerras, embates e disputas pelo poder.

– Pois então lhe digo, princesa. Se as coisas lhe forem favoráveis e de fato ascender ao trono, cuide-se, pois há sempre alguém na espreita e disposto a trair para obter o poder.

– Obrigado pelo conselho. Vamos reunir os demais. Tenho novidades...

– Muito bem – Kiorina virou-se.

– E leve isto também – Hana entregou um manto.

– E isto aqui, filho, é para você.

Os olhos de Calisto tremiam, pois achava aquilo irritante.

– Será que dá para me chamar de filho?

– Vai se acostumar...

Ele estremeceu – Duvido!

– Agora, experimente a roupa!

– Certo.

– Agora! O que está esperando?

Calisto olhou-a quase indignado.

– Ora, você é meu filho e ademais, já o vi sem roupas antes.

Calisto suspirou e pensou "Nem me lembre!" Deixou a sala batendo os pés para vestir-se com privacidade, longe dela.

Quando Hana viu Gorum entrar com seu manto mal cobrindo sua volumosa armadura, resmungou – Ah, teremos problemas.

– Problemas, princesa? – indagou Gorum.

– Você não vai poder ir conosco, vai chamar muita atenção.

– E o que devo fazer? Ficar aqui mofando?

– Não sei, talvez pela noite... Vamos ver. Por hora é prudente que fique aqui.

– Mas então por que me acordaram? – Gorum saiu. Depois, pensou melhor e resmungou para si mesmo – Melhor assim. Ainda estou um caco. Preciso mesmo descansar muito, muito mais.

Hana trocou-se rapidamente. Estava impaciente e seguiu ansiosa para a outra sala. Parou na entrada e sorriu ao observar uma cena que a tomou de surpresa. Kyle estava se trocando, apenas com as roupas de baixo. Hana ainda sentia a perda de Derek, mas ver um jovem musculoso e belo como Kyle a balançou. Em sua vida na corte, foi uma mulher de muitos amantes. Ela pensava que o rapaz, Blackwing, poderia vir a ser um bom parceiro. Tinha desenvolvido uma queda pelos homens de armas.

Kyle notou a presença da princesa e vestiu-se rapidamente.

– Vamos, cavaleiro Blackwing – Hana veio buscá-lo puxando-o pelo braço – o tempo vai passando.

Kyle surpreendeu-se ao ver Kiorina novamente num vestido, há tempos ela usava apenas calças e blusas. Ela havia se tornado uma mulher madura e atraente. Hana invejou sua jovialidade e beleza natural, mas principalmente, a forma como Kyle olhava para ela. Kiorina não deixou de sentir uma pontada de ciúmes ao ver a princesa de braços dados com Kyle. A partir daquele momento, intensificou-se uma inimizade velada entre as duas mulheres.

Calisto chegou por último. Seu traje lhe conferia certa elegância. Ele percebeu o clima entre as duas e lamentou-se dizendo para si mesmo. "Eu mereço!"

– Acho que estamos em condições de partir – disse a nobre.

– E o Gorum? – indagou Kiorina.

– Ele fica, por enquanto.

– Quem disse?

– Eu! Algum problema?

– Ora, sim! – retrucou Kiorina apertando os lábios.

– Já basta, vocês duas! – Kyle elevou o tom de voz – Gorum é muito grande e um tanto famoso. A princesa está certa, nos arriscaremos se ele vier.

Hana apenas olhou para Kiorina com um sorriso vitorioso e sarcástico. A ruiva virou a cara, sentindo as orelhas quentes.

– A cidade parece muito agitada – observou Calisto.

– Soube que uma centenas de filhos do eclipse zarparam do porto ainda há pouco.

– Verdade? – Calisto surpreendeu-se – O que podemos pensar disto? Blackwing, alguma pista de suas visões?

– Sim. Estão sendo levados para um local distante, a leste.

– Devemos segui-los? – indagou Kiorina.

– Temo que já não possamos fazer nada por estas pobres crianças. Há uma ameaça maior ao futuro com a qual precisaremos lidar aqui mesmo, em Lacoresh: o bruxo Arávner.

– Sim, mas não devemos nos esquecer que a loucura de meu falecido pai e suas hordas de mortos-vivos constituem uma ameaça iminente.

Calisto tremia quando apreensivo – Sério, visões à parte, como esperam que nós cinco possamos ter alguma chance contra qualquer um destes oponentes? Se tivéssemos o orbe... Mas assim? De mãos vazias? Ainda me parece uma loucura.

– Deixe de ser um bebê chorão, filho! – Hana foi ríspida – Temos a Espada de Tarquis. Vimos bem o que ela fez às criaturas malignas.

Calisto torceu o nariz – Ora princesa! Não pensa direito! Estamos falando de hordas de mortos-vivos. Nós precisaremos é de necromantes do nosso lado.

– Ou de monges! – disse Kiorina – Você mencionou o irmão Meinard, não é verdade? Talvez ele possa localizar outras pessoas para nos ajudar.

– Não era este o plano, começar pelos contatos? – retrucou Hana.

Kyle concluiu – Então vamos, estou certo de que com mais informações teremos melhores condições para elaborar um plano.

Hana passou a mão na cicatriz na garganta e disse – O amigo de vocês, Archibald, contou-me sobre um homem chamado Klereon Nasbit.

– Sim, me lembro dele – assentiu Kyle.

– Ele foi um dos líderes que atuou contra o governo de meu pai. Archibald contou que depois que a rebelião foi desmantelada, ele envolveu-se com uma espécie de guilda, ou organização, chamada de Irmandade do Dragão Negro.

– Que nome dramático! – comentou Calisto.

– O fato é que Archibald disse que o tal Nasbit teria feito um contrato para que assassinasse meu pai, mas ele já havia se tornado um desmorto na ocasião. Nasbit pode ter meios e interesse para nos ajudar a dar cabo de meu pai.

– Sabe onde encontrá-lo?

– Tenho o nome de um lugar: O Banquete do Monge.

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