CAPÍTULO 105
Os músculos do corpo da bruxa Zeah eram levados a seu limite. O mais forte entre os espectros de Marlituk comandava seu corpo. O demônio chegara àquela terra há muitos milênios desejando conquistá-la, mas fora detido e aprisionado. Sua libertação estava próxima, mas entendendo os limites do corpo de Zeah, foi forçado a diminuir o ritmo da corrida para um trote. Ela suava e ofegava copiosamente despreparada para tal atividade física.
Kyle e os demais eram conduzidos por Ector num voo desajeitado. O objetivo era localizar a bruxa. Por entre as frondosas copas das árvores da floresta proibida, viam-se as muitas torres da antiga Ilm'taak, cobertas de vegetação. Procurar o alvo no solo não era uma tarefa fácil.
– Lá, acho que a vi! – indicou Kyle.
Ector ia adiante e olhou para trás para ver para onde ele apontava.
– Vi também – disse Ector.
– Aproxime-se! – ordenou Kyle.
Voar controlando a força dos ventos não era fácil, ainda mais levando a reboque seis outras pessoas. Ector ziguezagueava no ar tentando se aproximar da bruxa sem muito sucesso.
– Pelos deuses, Ector! Para lá! – gritou Kiorina.
Hana voava em separado e carregava Calisto. Ela reduziu a velocidade, pois era preciso manobrar para desviar-se de galhos aqui e ali. Ainda assim, conseguiu pousar entre a bruxa e o caminho para a cidade. Calisto disse mentalmente "Manteremos um elo mental daqui por diante".
– Sim. – Hana surpreendeu-se com a voz que falou em sua mente.
As pernas de Hana fraquejavam, pois voar conduzindo Calisto por tanto tempo minou suas forças. Mal podia ficar de pé e apoiou-se no tronco de uma árvore de menor porte.
Calisto sacou sua espada e estudou a oponente que se aproximava. Um ataque mental direto não havia funcionado, mas talvez uma leitura superficial de pensamentos e intenções pudesse favorecê-lo.
"Não se arrisque, Calisto" alertou Hana. "Precisamos apenas distraí-la até que os demais cheguem".
Calisto pode captar que a bruxa não estava para brincadeiras. Convocou um raio de energia esverdeada que o teria atingido não fosse sua capacidade de antecipar aquela ação. Ele rolou para o lado em meio ao terreno acidentado e buscou cobertura. Hana também escondeu-se atrás de um tronco. Zeah teve que se aproximar para tentar avistar um dos dois. A respiração ofegante de Hana denunciava sua posição. Zeah avançou em sua direção, mas antes que a atacasse, sons de galhos quebrando acima dela desviaram sua atenção.
O pouso de Ector e dos demais não foi nada elegante. O mago rolou alguns metros segurando-se firmemente ao orbe enquanto os demais se bateram contra galhos, antes de atingir o solo. Ao cair, Kiorina torceu o tornozelo e gritou de dor. Foi tomada pela ira novamente. Gorum ficou preso a um galho maior, a mais de cinco metros do chão, enquanto Örion e Kyle aterraram relativamente bem. Rílkare teve a queda mais azarada e teve severas contusões após bater-se contra vários galhos e cair de costas no chão. Radishi agarrou-se a um galho de outra árvore bem no alto, sem sofrer nada além de arranhões.
Hana aproveitou-se da ruidosa distração para se afastar de Zeah de novo. O espectro de Marlituk teve a atenção depositada em Kiorina, pois sua volatilidade de emoções favorecia sua atuação. Por pouco não obtivera êxito em assumir o corpo da feiticeira quando ela esteve com o Orbe do Progresso em mãos, mas agora...
Zeah saltou de maneira impossível para um humano e caiu perto de Kiorina. Kyle interpôs-se entre os dois assumindo sua postura de luta. Estava focalizado para o confronto.
Zeah, mesmo após vivenciar pouco tempo de possessão, já mostrava sinais da corrupção física que o demônio lhe impunha. Os olhos brilhavam vermelhos como brasas e o rosto estava deformado e alongado. A mandíbula havia se alargado e o sorriso enorme mostrou um arcada de dentes pontiagudos e tortos. Suas unhas estavam crescidas como pequenos punhais. Ela alargou as narinas numa sonora cheirada e disse.
– Vou devorá-lo cavaleiro e sua garota será minha sobremesa. – então saltou sobre Kyle como faria um predador faminto.
Kyle atirou-se no chão e ergueu as pernas colocando-as na barriga de Zeah. Usando força do impulso da oponente empurrou-a para trás para se chocar contra um grosso tronco de árvore. A bruxa estrebuchou no chão.
Örion advertiu – O espectro está deixando o corpo!
Antes que pudessem se dar conta, viram Kiorina se levantar com o mesmo brilho maligno nos olhos.
Kyle murmurou – Não... Ela não...
A ruiva encarou Kyle com o riso maligno nos lábios.
– Mudei de ideia – a voz dela soou pesada e carregada – primeiro a sobremesa, agora o jantar. Mwaháhá!
Ector aproximou-se com orbe em mãos disposto ajudar sua amiga imaginando algum modo de expulsar o espectro.
Kiorina, com uma força sobre-humana, arrancou um pedregulho do meio das raízes da árvore e arremessou-o contra Ector numa velocidade incrível. Este atingiu o rapaz em cheio. Um som de estalo partiu do peito do rapaz. Ele girou no ar e caiu no chão emitindo um fraco gemido. O orbe escapou de seus dedos e rolou para o lado para baixo de um monte de folhas secas.
– Idiota! O orbe não pode protegê-lo disto, Mwahhahá!
Calisto observou a cena escondido atrás de uma rocha e transmitiu pensamentos "Hana, o orbe, ali!"
A princesa captou a mensagem e iniciou uma aproximação cautelosa. Enquanto isso, Örion lançou um feitiço sobre Kiorina. Animou alguns cipós da árvore que se enroscaram no corpo dela. Como resposta, ela convocou fogo em torno de si e libertou-se em poucos instantes. Em seguida, projetou uma forte bola de fogo contra o silfo que mal escapou de ser diretamente atingido. O projétil explodiu em contato com o solo atrás dele atirando-o para diante. Kyle teve que proteger os olhos de estilhaços e sentiu a forte onda de calor da explosão.
O cavaleiro concentrou o Jii nos braços e no peito e desferiu um golpe distante. Kiorina foi atingida no ombro e a dor aguda fez com que perdesse a concentração para o próximo feitiço que já evocava contra Kyle.
Kyle percebeu a aproximação de Hana e correu para o outro lado na esperança de atrair a atenção do espectro. Isto funcionou, pois ele sentia um prazer especial em escutar Kiorina se manifestando. Gritava desesperada no pano de fundo de sua mente. Ela via o que seu corpo estava fazendo, mas não conseguira fazer nada além de gritar em seus pensamentos "Saia de mim! Seu maldito! Saia! Se fizer mal ao Kyle vou queimá-lo até que vire cinzas!"
A possuída atirou bolas de fogo contra Kyle que saltava e rolava com agilidade para escapar. A última não o atingiu, mas a explosão projetou-o no chão rolando.
Calisto transmitiu a Hana "O exorcismo! É o único jeito."
Hana pegou o orbe e disse – vou tentar.
Kiorina virou-se para encarar a herdeira do império lacorês. Hana começou a pronunciar as palavras sagradas na língua morta dos Holmös. Escutar aquela ladainha causou profunda irritação no espectro que convocou sua lâmina negra e golpeou o tronco de uma árvore. Um enorme estalo soou e, com um laço de energia negra, o espectro puxou o tronco na direção de Hana. Suas pernas bambearam e ela ficou paralisada vendo o tronco crescer em sua direção. Calisto correu e conseguiu salvar a mãe no último instante. Rolaram no chão escapando por um triz.
Hana levantou-se e retomou o ritual. Do alto de uma árvore próxima o tisamirense, Radishi, tentava encontrar uma maneira de ajudar seus companheiros lá embaixo. O espectro bem sabia das capacidades do orbe, mas Radishi conseguiu implantar uma sugestão sutil em sua mente. "O orbe está perdendo seu poder defensivo. Alguns ataques com magia serão suficientes..."
O espectro seguiu a sugestão e atacou Hana com uma bola de fogo, mas esta foi absorvida pelo objeto. Tentou seu chicote de energia negra, mas também foi repelido.
– Argh! Perda de tempo – gritou furioso.
Abaixou-se para pegar outro pedregulho, mas quando ia lançá-lo contra Hana, foi atingido por outro golpe distante de Kyle que fez com que o pedregulho caísse de lado. A voz de Hana aumentou e soava cada vez mais confiante e potente. Agonizando, o espectro resistia ao exorcismo, pois não queria abandonar aquele corpo. Cravou as unhas nas maças do próprio rosto rasgando a pele de Kiorina. Lágrimas rolaram nos olhos da feiticeira que após fortes convulsões caiu sentada, livre do espectro demoníaco. Fortes dores e cansaço extremo a dominaram. Desmaiou.
O espectro abandonou-a na forma de um grande ovo negro que se debatia em pleno ar. Uma voz horripilante e sussurrada que veio junto com o vento que se espelhava em todas as direções.
– Malditos! Malditos sejam! Eu os devorarei!
Hana avançou com o orbe sobre a bolha de energia negra em convulsão e um zumbido seguido de forte flash de luz azul fez com que a criatura desaparecesse dali
Örion se levantou. Estava chamuscado e ardido, mas não seriamente ferido. Indagou – O que fez com ele?
– Enviei-o para longe. Bem longe, assim espero.
Kyle foi até Kiorina e constatou que apesar de ferida, ainda respirava. Pegou-a no colo e foi para perto dos demais. Via todos, exceto Gorum. Calisto foi até Ector examinou-o e comentou em voz alta.
– Outra baixa... Se continuar assim estaremos todos mortos antes do fim do dia.
– Onde está a bruxa? – indagou Hana.
– Escapuliu – retrucou Kyle.
Não muito longe dali, Örion verificou que Rílkare estava inconsciente e parecia ter o braço quebrado.
– Ei silfo – Gorum chamou com sua voz possante, em sílfico – Aqui, aqui em cima!
Örion viu Gorum na copa da árvore cujo tronco alto e perpendicular era difícil de escalar.
Kyle alegrou-se ao ver que Gorum estava bem – saiu-se por cima nesta batalha, hã Gorum?
– Engraçadinho...
– Bah – Calisto rosnou tremendo as bochechas – você são retardados, ou o que?
Kyle examinava escoriações em suas mãos e braços e disse – Relaxe, ao menos sobrevivemos.
– É? Por quanto tempo, cavaleiro Blackwing? Me diga como retornaremos a Lacoresh agora que os dois magos que sabiam operar o portal sob as ruínas estão mortos?
Kyle ficou sério e encarou-o dizendo – daremos um jeito.
A mobilidade do grupo era bastante limitada devido aos ferimentos de Rílkare e de Kiorina. Procuraram se afastar o máximo possível de Ilm'taak. A noite se aproximava e Rílkare deu a ideia de buscarem refúgio na velha cabana de Poul, não muito longe, a sudeste. A cabana estava abandonada e seu derredor tomado pela vegetação, mas ainda assim, era um lugar razoável para passarem a noite. Abaixo podiam ver a vila de Pinnus, também abandonada.
Estava tudo empoeirado, mas ao menos Kiorina conseguiu estabelecer um fogo na lareira de pedras. O poço não estava seco e conseguiram colher algumas raízes nas imediações para preparar uma sopa. A princesa engoliu seu orgulho de nobreza e também comeu da única tigela que compartilharam. Amargava a perda de Derek e não estava para conversas.
Calisto estava ávido para saber notícias de Lacoresh e a única pessoa disposta a informá-lo era Radishi. Conversaram um pouco sobre isto durante a refeição.
Depois de comer, Kiorina adormeceu. Estava cansada e uma terrível culpa relativa às mortes de Yourdon e Ector a dominou. Teria terríveis pesadelos naquela noite e em muitas mais ainda.
Rílkare também remoía a respeito do período que esteve sob influência dos espectros de Marlituk. Pensava em todas as coisas terríveis que fez e viu na torre negra de Zeah.
Gorum comeu e foi dormir logo. O dia fora exaustivo, afinal.
Kyle anunciou – ficarei de guarda no primeiro turno – e deixou a casa.
Örion observou-o e resolveu segui-lo. Aos poucos reconheceu as figuras de Kiorina e Gorum das visões que tinha enquanto dormia. Era óbvio para ele que estava ligado a Kyle, mas de que modo?
Os dois reconheceram a presença um do outro, mas nada disseram. Örion sentou-se na escadaria da cabana e ao lembrar-se de Poul, chorou.
Kyle puxou assunto – Por que chora?
– Poul... Ele era uma pessoa de bom coração. Só queria salvar a esposa. E no final... – Örion soluçou – morreu sem conseguir fazer isto.
– Talvez, em sua próxima vida, possa se unir a ela novamente.
– Próxima vida? – Örion riu-se – A vida e o pós vida estão sendo todos consumidos pelas forças das trevas... Está tudo sendo destruído, Sr. cavaleiro.
– Pode me chamar de Kyle, mas diga-me, Örion Erendon, sabe algo sobre nossa ligação?
– Ligação?
– Sim, foi por isso que veio aqui fora, não é?
– Sim, mas não compreendo...
– É estranho dizer assim, mas vamos lá... Somos irmãos!
– Irmãos? – Örion riu para dentro como era o seu costume – Eu sou um silfo, você é humano. É impossível sermos irmãos.
– Será mesmo? O que sabe sobre seu pai?
– Ele era um viajante. Nunca o conheci.
– Nunca foi tratado de modo diferente pelas pessoas do seu povo?
– Na verdade, sim.
– Isto acontece por que você não é um silfo de puro sangue. É um mestiço, meio homem, meio silfo.
Örion queria e estava pronto para rejeitar tal ideia, mas aquilo fez sentido. Tornara-se adulto muito mais rápido que os demais membros de seu clã. Os anciãos, sempre estavam contra ele de algum modo, exceto por seu avô.
– E daí? O mundo está cheio de famílias com irmãos... Isto não faz com que eles troquem de lugar uns com os outros em sonho.
– É verdade – reconheceu Kyle. – Em minhas visões concedidas pelo Oráculo, nunca consegui saber com certeza por que passei a ter visões de sua vida. Sei apenas que isto começou depois de ser tocado por um garoto, um místico dacsiniano, chamado Renê L'amien.
Örion deu com os ombros – isso também não me diz nada... Talvez o livro de Aznevendor tivesse uma resposta para esta questão... Mas temo que nunca mais possa localizá-lo.
– Onde estava tal livro?
– Estava na fortaleza da torre negra, mas duvido que após tantos anos ainda esteja lá.
– Entendo.
– Este oráculo seu, o que lhe revelou?
Kyle gargalhou – Ah, coisa demais. Futuros e mais futuros.
– Mesmo?
– Sabe então o que vai nos acontecer?
– Nem tudo. Mas algumas coisas parecem inevitáveis.
– Como o que?
– Um período de trevas e a ascensão de forças do mal em todo o mundo.
– Se isto é tão certo, então por que lutar? Por que resistir?
– Penso que haja meios para tornar isto um período passageiro. O que mais temo é que as trevas vençam em definitivo e tomem este mundo, e os seus, para sempre.
– Que diferença faz? Estaremos todos mortos, cedo ou tarde.
– O problema é que estamos presos a este mundo. Morremos hoje e renasceremos amanhã para herdar o mesmo mundo e seus problemas.
Örion balançou a cabeça – Não sei... Já ouvi ideias assim, uma vez, mas não creio em nada disso.
– Não crê na vida após a morte?
– Há o pós vida, mas para meu povo, isto é simplesmente voltar a integrar-se à natureza, não como pessoas, mas como árvores e animais.
– Se podem retornar como bichos, o que os impediria de voltar como homens, ou silfos?
– Não faz sentido. E o que acontece com as lembranças? Se elas se perdem, sua identidade se perderia. Nunca conheci ninguém que disse ser um antepassado renascido.
Kyle deu com os ombros – Olha Örion, isso tudo pareceria meio maluco para mim até que há pouco tempo, tive experiências que me provaram o contrário.
– Como o que?
– Lembrei-me de vidas passadas. Apenas isto.
– E como sabe que isto não foi apenas um sonho? Alguma confusão mental?
– Como você sabe que você é você mesmo?
Örion riu-se – a última coisa que pensava de você é que fosse ligado à metafísica.
Kyle sorriu. – Me surpreendo com isso também. Se eu pudesse falar disso tudo com o Archibald...
– Quem é este?
– Um velho amigo, que não vejo há um bom tempo. Pensei que viria para libertar-nos, mas estava enganado.
– Parece que o futuro está constantemente nos enganando.
Kyle colocou a mão sobre o ombro de Örion – É verdade, meu irmão. É verdade.
Örion sorriu sentindo-se melhor.
Eram estranhos, mas tinham, afinal, uma afinidade real. Talvez tivessem sido irmãos em outras vidas.
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