CAPÍTULO 100

O Vale Verde era situado entre o Vale das Selvas de Krös e o Vale da Desolação de Drenzult, também conhecido como Vale da Morte. Chovia muito naquele largo vale que abrigava quatro reinos humanos. No passado, haviam florestas em abundância, mas foram derrubadas para suportar o crescimento das dezenas cidades e centenas de vilas. Tornou-se um território cheio de extensas plantações no qual os quatro reinos vizinhos, Saubics, Nevreth, Tradarnak e Aldancara conviviam com relativa paz. Entre estes, Saubics era o mais conhecido fora do vale devido à sua maior propensão para atividades comerciais.

A guerra entre os reinos desencadeada antes do desaparecimento do Rei Kel não chegou a um termo. Além disso, uma horda de inumanos, composta por bestiais, ogros e tardos, surgiu após o sumiço de Kel e espalhou-se pela região causando ainda mais conflitos, destruição e um horror antes desconhecido por aqueles povos.

Plantações e cidades foram queimadas e o Vale Verde tornou-se um lugar lúgubre com extensas porções de terras cinzentas e mortas. Criaturas das trevas conduziam ações dos inumanos no sentido de capturar e escravizar homens daqueles reinos.

O pequeno clã de silfos da Floresta de Adrastinn foi liquidado e apenas uns poucos conseguiram fugir. Alguns tomaram carona em navios que abandonaram Nevreth e outros buscaram refúgio nas montanhas a leste. Algumas cidades como Balish, em Saubics, a capital de Aldancara e poucas mais resistiram tornando-se fortificadas e lutavam, ano após ano, para sobreviver.

Derek foi o primeiro a sair do túnel netéreo e logo reconheceu o local. Estava no subterrâneo daquele antigo templo abandonado. O cavaleiro pensou "De volta aos túneis escuros... Como o mago magrelo chamou este lugar?"

– Ilm'tenak – disse Derek ao se recordar.

Youdon segurava o toco do braço que latejava de dor. – É Ilm'taak, cabeçudo...

Hana e Radishi caíram de joelhos no chão sentindo fortes náuseas. Era a primeira passagem deles pelo plano netéreo, algo que não podia se chamar de uma experiência agradável. Hana se recuperou e foi auxiliada por Derek, mas Radishi teve as náuseas potencializadas pela atmosfera psíquica que o envolveu e oprimiu. Depois de vomitar tudo o que podia conseguiu ficar de pé.

Radishi disse – Este lugar... É ainda... Ainda mais terrível que Lacoresh!

– Vamos tisamirense – a saída é por aqui – os olhos de Derek brilhavam esverdeados naquele local escuro. Com eles podia enxergar na escuridão, mas para os demais seguirem, Yourdon convocou uma pequena luz.

Yourdon estava mau humorado – Eu devia ter vindo com vocês, anos atrás, Derek. E não aquele incompetente do Ector.

– É mesmo – retrucou o gigante – ao menos ainda teria seu braço...

– Não foi o que queria dizer. Eu sei que em seu lugar poderia ter feito as coisas funcionarem e talvez, Calisto tivesse retornado. A missão teria sido um sucesso.

– Bah, mago... Não me venha com pensamentos inúteis.

O grupo viu uma luz ao longe, mas não esperavam por isto, havia também barulho, muito barulho.

Derek sussurrou – Da última vez que estive aqui, isto aqui estava quase abandonado.

– Quase? – Yourdon ergueu a sobrancelha.

– Encontramos uns brutos esquisitos do lado de fora, mas o interior do templo estava vazio. Pensando bem, é mesmo! Abrimos uma passagem para fora...

– Brutos? – indagou Hana.

– Umas criaturas grandes, peludas e bem feiosas.

– Ótimo – disse Hana – Saindo do fogo para a frigideira.

Seguiram adiante até que um terrível fedor os envolveu. – Esse cheiro – disse Derek – É merda de bestiais.

– Verdade – Yourdon concordou.

Derek empunhou seu machado e sorriu sadicamente – há muito tempo eu não fatio bestiais. – E correu para subir o último lance de escadas até o salão interno do templo.

– Ele é louco – observou Radishi.

– Melhor irmos ajudá-lo – disse Hana seguindo-o.

O grito de bestiais a morrer ecoou no interior do velho templo. Derek havia tomado-os desprevenidos, na verdade, era uma toca de bestiais cheia de fêmeas e crias. A maioria fugiu e uns poucos se dispuseram a confrontar o cavaleiro enfurecido. Quando Hana e os demais chegaram, não havia muito o que fazer. Radishi sentiu-se enjoado, e se pudesse, vomitaria ainda mais.

Derek tinha o rosto e o corpo cobertos por sangue escuro de bestiais e sorria com um brilho insano nos olhos. – Dei um jeito neles!

Do lado de fora do templo, Derek não reconheceu aquelas ruínas, agora habitadas e, de algum modo, recuperadas. A gritaria dos bestiais que fugiam atraiu inumanos daqui e dali. A velha Ilm'taak era novamente uma cidade habitada. Os quatro se viram cercados por uma centena de inumanos. O número cresceu para milhares deles e o sorriso de Derek se dissipou quando viu cerca de vinte ogros feiosos abrindo espaço entre os bestiais. Já era para terem sido trucidados, mas por alguma razão, todos aqueles oponentes mantinham a distância. Olhavam todos para Derek com assombro. Não demorou até que aquela multidão começasse a se ajoelhar diante deles colocando as mãos no chão em sinal de devoção.

– Ne kto zir. Ne kto zir. – eles diziam e isso passou a soar como um cântico – Ne kto zir!

– O que estão dizendo? – indagou Radishi.

– Não faço ideia – disse Yourdon – não se parece com a língua bestial. – Mas vejam! – indicou o machado de Derek que brilhava com luz verde e intensa e esta fluía numa espécie de cordão até chegar em Hana. Só então viram que o Orbe do Progresso, carregado na sacola da princesa também brilhava. Ela pegou-o nas mãos e ergueu-o. O cântico dos inumanos aumentou em seu fervor – Ne kto zir! Ne kto zir!

Hana sentiu um comichão no peito. Seu braço se aqueceu e sentiu fluir dentro de si imensa energia mágica.

Radishi avistou uma coisa voando e disse para Yourdon – Aquilo é um pássaro?

– Acha que se parece com um? – O mago retornou irônico.

– Ele voa... – Radishi deu com os ombros.

– Insetos voam, demônios voam...

– Sabe o que é?

– Não.

O pequeno pirilampo negro foi a única criatura que ousou chegar perto do quarteto.

– Ora, ora! Então a profecia se concretiza! – disse na língua de Saubibs, que pôde ser ligeiramente compreendida, devido às raízes comuns entre a língua lacoresa e os dialetos do Vale Verde.

– Profecia? – indagou Hana – Mas quem é você?

– O pirilampo das trevas compreendeu que falavam lacorês e ajustou sua fala – Meu nome é Cretàh, a seu dispor, senhora, senhores...

– E o que diz esta profecia? – indagou Yourdon curioso.

– Diz, Zé Maneta, que vocês virão comigo e farão como eu disser. Como eu disser, cá-cá-cá-cá!

– É mesmo? – retrucou Yourdon desafiador.

– Ou então... Eu posso dizer a eles que a vinda de vocês foi um falso sinal e serão trucidados em dois tempos. O tom da pele de Cretàh mudou de cinza pálido para cinza escuro.

– Acho melhor irmos com ele, mago – disse Derek.

– Falou e disse, ô do machado.

– Vamos então – concordou Hana – o que quer que façamos?

– Na verdade, é muito simples... Tudo que terão a fazer é ir até o altar do detestável templo iluminado. Lá o Olho irá anular a Luz e o machado irá quebrar a Pedra.

– Não sei se entendi – disse a princesa.

– Não precisa entender não, velhota. Basta seguir minhas instruções.

Hana fechou a cara para o monstrinho. Yourdon sentiu a malícia no olhar da criaturinha e sabia que se fizessem o jogo dele, seriam mortos, ou algo pior, assim que cumprissem o papel esperado. O mago indagou – Isto é sobre libertarmos seu mestre, Marlituk, não é mesmo, Cretàh?

– É sim! Muito bem, Zé Maneta! Tomei-os todos por ignorantes...

– Ele ficará grato a você, não é mesmo? – perguntou Radishi que se posicionou à frente de Hana. O tisamirense livrou-se do bloqueio causado pelo Orbe, mas não conseguiu ler os pensamentos de Cretàh. Entretanto, percebeu muito rancor nele.

Yourdon adiantou-se e recebeu pensamentos de Radishi "Percebi o que pensa. Temos que encontrar uma maneira de ganhar tempo".

"Ele está ansioso" Yourdon pensou para o outro captar.

– Libertá-lo é algo que espera há muito tempo, não é verdade? – Yourdon voltou à carga.

– É sim. Eu terei sucesso onde outros falharam. Inclusive aquela maldita, maldita prostituta! É sim. Se eu pudesse esfregar a falha miserável dela em sua cara suja! Eu bem ia querer ver a cara aquela puta humilhada... Ah sim! Eu gostaria!

– E por que não fazê-lo? – indagou Radishi.

– Não vai dar... Esta está na bolha. Ninguém entra e ninguém sai da bolha.

– A bolha de tempo paralisado, não é mesmo? – disse Yourdon.

– Sim, Zé Maneta! E é melhor que fiquem lá, todos eles lá!

– Mas ia ser bom se pudesse tirá-la de lá, só para ver sua cara quando for você que finalmente venha a libertar o grande Marlituk, não é?

– Ah – os olhinhos do miserável se derretiam com a perspectiva prazerosa – isso seria bom, sim, mas é impossível.

– Impossível? Ora não! Um pouco difícil, mas... – provocou Yourdon.

– Como assim?

– Temos o Orbe do Progresso conosco. Com ele, podemos entrar na bolha e tirar de lá quem bem entendermos.

– É verdade isso, Zé Maneta? – Cretàh voou para encarar o mago careca de perto – Não está tentando me enganar, não é?

– Sim, quero dizer, apenas um pouco.

– Um pouco? Explique-se!

– Pensei que poderíamos nos ajudar. O fato é que viemos de longe para libertar um amigo nosso que está na bolha. Então, se pudéssemos ir até lá libertá-lo, poderíamos trazer também sua inimiga. Então você poderia obter sua vingança, o que me diz?

Cretàh parou para pensar no assunto e teve uma ideia – Poderiam retirar outros também?

– Sim, mas é claro!

– Então isso seria perfeito! Ora, ora, Zé Maneta! Eu poderia fazer um serviço perfeito. Levar o próprio vaso escolhido pelo Mestre para sua ascensão. Oh sim, Kel já estava preparado para receber o Mestre. Ele ficará agradecido! Ora sim!

– Façamos um trato então. Nós libertamos esse tal Kel e quem mais você desejar. Depois vamos ao templo para quebrar a tal pedra e libertar seu mestre. Finalmente, você nos deixa retornar de onde viemos com nosso amigo. O que me diz?

Cretàh deu boas gargalhadas. Cumpriria o acordo até onde fosse conveniente... Talvez até pudesse libertar Rílkare para obter de volta seu precioso objeto roubado.

– Ótimo, combinado! Esta maldita profecia está me saindo melhor que eu esperava, ora, ora!

"Ele vai nos trair" Radishi enviou pensamentos a Yourdon.

"Eu sei. É simples, precisamos apenas traí-lo antes".

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