33 - Vislumbres e tons de fogo
Sinto que posso ruir o chão apenas com a força dos meus pés socando a madeira que recobre o concreto.
Caminhei pelo corredor do primeiro andar do palácio que dá acesso até o escritório do rei. Estranhamente, não havia guardas do lado de fora, ou alguém para anunciar uma visita repentina como a minha.
Ignorei esse detalhe, dei dois toques leves na porta, a abrindo no mesmo instante, fazendo o rei sentado em sua poltrona sobressaltar. Igualmente, ignoro suas feições exalando preocupação.
— Mentiu pra mim! — Esbravejo, entrando bruscamente na sala de paredes escuras com altos lambris de carvalho.
Bato a porta atrás de mim. Albert ajeita o seu corpo na poltrona e suspira fundo, somente assentindo como se não existisse nada a ser dito, mas existe.
— Mentiu! — Falo outra vez. — E, escondeu isso de mim! — Aponto na direção da porta, indicando o baile que acontecia. — Ele... Eles!
Ele engole em seco, assentindo devagar.
— Entendo que está chateada.
— Chateada? Chateada! — Minha voz sai dolorida quando eu me aproximo em alguns passos. — Chateada eu fiquei quando você desmarcou o nosso jantar de ação de graças para se enfiar numa reunião com aqueles conselheiros que cheiram a charuto ou quando eu tirei uma nota abaixo do que eu esperava em uma redação que eu demorei dias para terminar! — Bato as minhas mãos sobre a mesa, me apoiando nela. — Agora eu estou furiosa!
— E, eu lhe dei motivos, eu entendo. —A serenidade no seu tom de voz está me tirando do sério. Eu não sei como ele consegue, especialmente com os olhos fixos em mim, podendo ver que eu não estou aqui para ter uma conversa amigável.— Sinto muito por esconder a verdade...
— Sente muito? É claro que sente e deve sentir mesmo! Confiei no senhor cegamente e apesar de saber como eu detesto mentiras... Mentiu! — Prossigo falando, não posso me conter. — Por quê?
— Eu não tive escolha! — Ele se levanta da poltrona, e eu ergo meu queixo para encara-lo.
— Você é um rei, é claro que teve escolha!
— Exatamente. Sou um rei e tive que fazer escolhas difíceis, Isla. — Rebate, após uns segundos. — Acha que eu gostei de guardar segredos? Acha que eu gostei de precisar me afastar dos meus filhos?
— O plural muda tudo. — Resmungo entredentes. — Você não só escondeu sobre o Jac... — Paro, respiro e refaço. — Sobre o príncipe Jackson como também a existência de outro filho. Após o anúncio eu esperava muita coisa, mas isso?
— É complicado. — Ele leva o olhar para a sua mesa, seus ombros se mexem numa respiração pesada.
— O que é complicado, majestade? Se teve dois filhos por que nunca contou? Por que o escondeu do povo? E... O Aldrich? O que ele faz aqui? Por que o Thomas estava usando o brasão como o dele? Ele foi criado lá?
— São muitas perguntas. — Torna a me encarar.
— E eu tenho mais. — Arqueio as sobrancelhas.
Albert recolhe todo o ar que consegue e o solta devagar.
— O que você precisa saber agora, é que para todos os efeitos, todos estão bem, vivos.
— "O que eu preciso saber"? — Indago, meu tom não é amigável. — Eu preciso saber da verdade!
— Agora não é o momento, Isla.
— É o rei, mas não é o senhor que decide. — Balanço a cabeça negativamente, apontando para ele. — Eu fui empurrada a minha vida inteira para cima do príncipe de Verena. O meu nome é facilmente associado a realeza e a ideia de um casamento... Tanto que eu e quase morri algumas vezes, se é que o senhor me permite recordá-lo. Têm guardas ao seu pedido me levando até a porta do banheiro feminino do colégio! Eu mereço saber a verdade! Tenho merecido isso há anos, e vocês não tiveram a decência de me contar!
Não vou sair enquanto não souber pelo menos o contexto de toda a situação, da história que eu ainda não conheço.
Se bem que, me encontro tão angustiada e desesperada pelas dúvidas latentes, que aceito metade da história apenas para fazer minha mente parar de pulsar.
— Muito bem. — Diz, concordando com a cabeça ao respirar fundo. — Irei contar o necessário, o que é essencial saber, e em outro momento iremos voltar no assunto.
— De acordo. — Dou de ombros aguardando desesperadamente as respostas.
Há uma distinção de comportamento gritante entre eu e o rei. Enquanto eu mexo as mãos de maneira frenética, compulsiva, Albert está neutro, pacífico como o de costume, tanto que até parou para bebericar o café de sua xícara.
— Antes de mais nada precisa saber que o atentado que você sofreu veio de pessoas que se opõe ao reinado da minha família. — Começa a contar, ajeitando os botões do seu traje, tornando a se sentar na poltrona de couro. — Os reinos da Ilha têm os seus conflitos há centenas de anos. Não é de hoje.
— Por quê? Querem o poder? A coroa?
— É um dos porquês. Alguns se tratam de rixas pessoais, brigas que iniciaram pelo território. — Ele parece selecionar as palavras. — Muito antes de me tornar rei, lembro que minha mãe se preocupava com perigos, ameaças a coroa. — Ele mantem os olhos fixos nos meus. — E, depois que assumi o trono, pude sentir na pele. Recebi ameaças antes do meu casamento com Amelie e durante todos esses anos.
— Ameaças? Que tipo de ameaças? — Questiono baixo, me atentando ao momento em que Albert desvia o olhar. — A queda do avião... — Minha voz sai como um sussurro quando junto uma peça na outra.
Todas as teorias, os rumores de que não havia sido um mero acidente, uma mera fatalidade. Rumores que o próprio rei com a equipe de investigação descartaram para acalmar o povo. E, depois sumiu com o filho. Com os filhos.
— Não foi um acidente, foi? — Continuo com embargo. — Meu pai e a rainha foram mortos, assassinados e o senhor sabia. Sabia disso e fez o povo todo, inclusive eu acreditar que havia sido um acidente! Seus conselheiros chamaram de loucos e paranóicos quem questionava ou acreditava no contrário!
Albert ainda não olha para mim. Encara insistentemente a sua xícara com café em cima daquela maldita escrivaninha, mas não olha para mim.
Um nó se forma na minha garganta, a vida do meu pai e de Amelie foram tiradas como se não fossem nada.
— E, dizer isso ao povo ajudaria em quê? — Questiona, me encarando. — Iria apenas alarmar a todos, eles iriam achar que o governo estava enfraquecendo. Era uma questão de tempo até que estivéssemos abalados o bastante para que algo pior acontecesse.
— Então foi por isso que escondeu os seus filhos? Para proteger eles? — Busco algum sentido. — Disse que tinha um filho apenas, por quê? Tirou na sorte para saber quem ia ficar e assumir o seu lugar e quem teria uma vida normal?
— Está sendo injusta.
— Lamento não atender as suas expectativas como a pessoa que desejou que eu fosse. Sou praticamente menos da metade de quem eu deveria ser. Não dá pra consertar! Mas... Eu fui enganada esse tempo todo, então eu realmente discordo. Não estou sendo injusta!
— As coisas não são tão simples.
— Então me explica! — Deixo as minhas mãos baterem na lateral do meu corpo.
O rei Albert pressiona a mandíbula, pondo suas mãos juntas sobre a mesa antes de voltar a falar, quem sabe buscando manter a tranquilidade que tanto aparenta ter.
— Isla, quando Amelie soube da gravidez, ela soube também que se tratava de gêmeos e de uma gravidez de risco. — Ele conta e eu estou com toda a minha atenção nos seus olhos, quero me certificar de que ele não irá. mentir. — Nós não sabíamos se iria para frente, por isso eu e todo conselho decidimos anunciar somente a gravidez.
— Mas as duas crianças nasceram. — A confusão é evidente no meu rosto. — Nasceram bem.
— Um deles... — Albert engole em seco. — Thomas nasceu com uma cardiopatia, um problema grave no coração. Os médicos disseram que se ele sobrevivesse... Talvez não tivesse muito tempo. Nos garantiram que com a ajuda de equipamentos e algumas intervenções cirúrgicas a condição de vida poderia ser melhor.
— Não contou ao povo sobre o seu filho por que pensou que ele morreria? — Contraio o rosto indignada. Puta que pariu!
— Os médicos haviam nos dado três... Cinco anos. — Ele coça a garganta. — É pouco tempo para uma criança crescer com tanta pressão e... No contexto da realeza, com todaa as ameaças... — Sua voz embarga. — Além disso, os conselheiros acharam que seria melhor assim. Ele merecia ter uma vida minimamente boa.
— Mas ele está vivo. — Junto as sobrancelhas. — Ele parece incrivelmente bem...
— Sim. — Concorda, relaxando os ombros. — Ele cresceu como o Jackson. Forte, saudável... Mas depois da queda do avião eu percebi que não podia mais arriscar a vida de nenhum deles.
— Por isso os afastou, algo que ia muito além de protege-los da mídia.
Como tais teorias sobre a queda conspiravam.
— E, como não esperávamos que o Thomas chegasse a ser rei, pelas suas condições médicas, entrei em um acordo com a corte de Analea.
— Pensei que tinha problemas com o rei Aldrich. — É difícil de entender.
— Tinha, bom, tenho... Mas Aldrich nem sempre se declarou inimigo, as pessoas mudam, Isla. — Pontua, me fazendo lembrar do que Rosana havia dito. "Monstros não nascem do nada, eles são criados".
— Thomas cresceu lá? — Digo de maneira amarga. — E... — Umedeço os lábios. — Ele está bem agora?
— Está. Durante os anos diversos especialistas o ajudaram a resolver o problema e... A questão é que felizmente, agora Thomas está bem e atualmente está na corte como um dos conselheiros do rei Aldrich, por isso o brasão.
— Um príncipe verenense escondido na corte de Analea. — Falo em voz alta na intenção disso soar com algum sentindo no meu cérebro. Mas os fatos são bizarros, por isso rio com desdém. — Certo, e o príncipe Jackson?
O silêncio que se instalou no escritório após eu questionar acabou confirmando minhas deduções.
Emma disse que ele estudou com ela, sendo assim Jack esteve por perto.
— Ele sempre esteve por aqui. — Acabo respondendo a minha própria pergunta.
— Seria difícil governar um lugar que você não conhece.
— Não acha que irão comentar sobre? — Resolvo ponderar, movendo os dedos pela saia do vestido. — O Rei mentiu. Não acha que já notaram "a semelhança" entre o conselheiro de Analea e o príncipe de Verena?
— É possível, mas essa não é a minha preocupação no momento.
Meus olhos correm pelas beiradas do tapete azul marinho e dourado do chão.
Eu não posso acreditar que tudo isso está acontecendo.
— Quem fez isso? — Devolvo meu olhar para ele. — Por quê fizeram e...
— Eu não sei dizer.
— Está mentindo pra mim! — Eu sei que ele está.
— Por que acha isso? — Inquire franzindo o cenho da testa.
— Porque está com o mesmo olhar de quando me pegou andando de moto com um dos gêmeos. Está mascarando alguma coisa!
Retomo o fôlego, sentindo que o silêncio tomará conta da situação e que eu infelizmente não vou conseguir descobrir nada se depender dele.
— Eu cansei, majestade. — Torno a falar. — Se quer me esconder as coisas tudo bem, mas eu dispenso a guarda real de seus serviços — Ele abriu a boca para contrariar, mas eu o ignoro. — Se eu não tenho nada a temer, o senhor também não deveria.
Albert se levanta bruscamente.
— Isla, mantive todos seguros, é isso o que importa no momento.
É como se a minha cabeça estivesse dando voltas, eu acabara de descobrir tanta coisa, não parece ser verdade.
— Desse jeito vou começar a pensar que o senhor acha que os fins justificam os meios.
— Espero que entenda. Não posso perder mais ninguém. Como rei e como o seu tio Albert, peço que confie em mim. — Os olhos azuis suplicam.
Chega.
— Eu confiei. — Replico em desânimo. Definitivamente, a verdade é como um soco no estômago. — Confiei em você e usou da minha falta de memória para me controlar. Controlar os meus passos, a minha vida e até o que eu deveria saber ou não. — Dói. Isso dói. Eu não sei porquê. — Como eu poderia confiar em alguém que agiu de maneira tão baixa?
Não digo mais nada. Exausta, ando devagar até a porta, certa de que tudo não poderia ter dado mais errado.
Eu o escuro me chamar algumas vezes mas eu não retorno, deixando de escanteio todas as lições da Rosana, sobre jamais dar as costas para um monarca.
Andei em passos apressados até o salão, preciso chegar em uma das saídas. Não sei onde está o meu irmão, as gêmeas, a vovó, sequer sei onde está a Rosana. Também não vi o Jack, príncipe Jackson, ou a Emma.
Harper deve estar procurando por mim, talvez ela esteja com o Harry do lado de fora, próximo a Limusine.
Prefiro não prestar atenção nas pessoas me olhando enquanto eu atravesso o salão dourado. Curiosamente, assim que passo por uma das portas, avisto o rei Aldrich e o irmão do Jack descerem as escadarias, indo ao encontro dos carros pretos e luxuosos que os aguardam.
Fui covarde o bastante para não chamá-los, até porque não foi necessário.
— Lady Isla. — Um dos homens que andava ao lado do rei e do Thomas nota a minha presença, chamando a atenção de todos ao fazer isso. — Precisa de algo? — Ele é alto, magro e de longos cabelos tão loiros que eram quase brancos.
Thomas gira o corpo na minha direção, arrumando as abotoaduras do seu casaco.
— Nicolina. — Fala num tom foi receptivo, esboçando um sorriso.
Travo. Paro no mesmo segundo, querendo saber o que eu estava pensando ao fazer isso. Afinal, o que eu iria dizer? Que Albert acabara de me revelar a verdade ou uma parte dela?
Diferente da cópia do Jack, Aldrich não parou. Agiu como se a minha presença fosse insignificante e entrou no carro.
Estranho, se for ponderar que ele parecia mais do que interessado em conversar comigo no início no baile.
— Já... — Tento falar, mas respiro fundo ajeitando a minha postura. — Já está retornando para o seu país? — Sou direta e enfática.
— O rei precisa tratar de alguns assuntos e quanto antes regressar melhor. — Thomas esclarece.
— Parece ser importante. — Desço o último degrau.
— De fato, é. — Ele se aproxima em apenas um passo. — Mas, tudo bem, já presenciei a melhor parte do baile. — Seus olhos percorrem cada canto do meu rosto em quanto fala.
— E, eu aposto que se divertiu muito. — Cruzo os braços, olhando para o carro atrás dele, onde o rei Aldrich está.
— É um baile, não é esse o intuito? — Rebate, o que fez a minha atenção voltar para os olhos azuis com tons cinzentos.
Algo que eu pude notar de imediato, é que embora Thomas seja idêntico ao Jack, possuí grandes diferenças.
Nunca vi alguém com o olhar tão reverente, como se não pudesse deixar nenhum detalhe escapar. Além da maneira de falar, Thomas despeja as palavras de forma arrogante, numa presença indiscreta e invasiva.
— É, um baile em homenagem ao aniversário do príncipe, para apresentá-lo. — Replico após alguns átimos. — Mas tem um pequeno detalhe que não foi revelado junto, não acha?
O olho dos pés à cabeça dando a entender do que se tratava: Dele.
— Discordo. — Thomas prossegue com sarcasmo. — Eles exageraram nos detalhes anunciando todos os sobrenomes do Jackson. — Seu tom é tão cínico quanto o sorriso em seu rosto. — A monarquia e as suas formalidades. — Revira os olhos por fim.
Arqueio o olhar, mas antes de dizer algo, sou interrompida pelos convidados eufóricos descendo os cantos da escada.
— Fogo! — Gritam.
Thomas junta as sobrancelhas, com as íris fixas nas minhas.
— Na mansão dos Grants!
Um calafrio me corre pela espinha. Arregalo os meus olhos, observando as pessoas, mais especificamente jornalistas, correrem para seus veículos.
— Merda. — Praguejo em voz alta, passando pela vossa alteza ressurgida das trevas, correndo na direção dos grandes portões do castelo.
Eu o escuto me seguir, mas o ignoro completamente.
Dou passos lentos e arrastados, assistindo homens e mulheres barrados pelo portão dourado e reluzente, berrando furiosos, entre guardas tentando contê-los, e um corredor de flamas alaranjadas.
O cheiro de queimado é forte. Paparazzis que antes acastelaram a entrada do palácio, miram suas câmeras para a desordem, apesar do clima disforme e ardido por toda fumaça enevoando a paisagem.
"Fogo! Na mansão dos Grants! Fogo em Serinna!"
"Golpista". "Mentiroso". Consigo ouvir os protestantes com certa dificuldade.
O baile de apresentação do herdeiro se tornara um caos, como tudo o que constitui a monarquia. Algo que Albert deveria ter previsto, assim como eu já deveria saber que mentirosos governam o reino de desencantos.
Agora, as ruínas de uma vida que eu pensava conhecer queimam, e o fogo, ah, todo esse fogo. O fulgor das chamas me permitem vislumbrar seus tons, e são belas nuances.
Mas, me digam, o que acharam desse capítulo?
To meio que correndo pra variar, mas eu volto logo pra falar com vocês devidamente ♡♡♡♡
Beijocas e pipocas.
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