27 - Sobre criar monstros
Nunca pensei que ficaria tão aliviada pelos guardas estarem nos seguindo. Megan não tinha condições de dirigir, por isso eu pedi para que um deles o fizesse.
Ela me contou pouco, disse que um homem, chamado Roman, é o seu pai biológico, e fazia parte da corte do reino de Analea. Disse que a Rosana e ele namoraram e viviam um relacionamento conturbado; mencionou agressões, abusos por parte dele, descritos pela Clarice. O pouco que contou foi o suficiente para eu sentir minhas tripas darem nós.
Não quis perguntar muito, acho que uma parte de mim não quer ouvir.
Há inúmeros relatos de mulheres na internet, relatando o que enfrentaram em relações abusivas, e há casos onde muitas não estão vivas para contar.
Nas aulas de história, aprendemos que a maioria dos nomes dos condados de Verena são femininos por causa das vítimas do caça às bruxas na idade média. É cruel, e estranho pensar nisso agora.
Eu não sei o que pensar. Não consigo concluir a linha de raciocínio sem me lembrar da Megan socando o volante do carro. Não tenho ideia de como ela está se sentindo, não sei se ela vai contar para a Maya, e como a Maya vai reagir.
Continuo sem saber de tanta coisa, e nessa altura do campeonato já não sei se fiz bem indo atrás do passado da Rosana.
O fantasma quis que nós fossemos atrás da Clarice e nós fomos. Mas, para isso?
Megan adormeceu dentro do carro na volta para a casa e quando chegamos, Maya me fez muitas perguntas quanto ao que tinha acontecido, mas nada que eu soubesse responder.
— Ela não deu detalhes, disse que foi uma conversa difícil. — Falo para o Jack, esvaziando os meus pulmões, com os olhos fixos na xícara preta com café na minha frente.
Pedi para o Harry me deixar na pensão, onde Jack me esperava.
A intenção era conversar sobre o beijo e sobre o que será a partir de agora, porque não somos um casal de colegial. Não somos um casal, pelo menos, não ainda. Eu não sei. Nunca me relacionei com ninguém, mesmo estando noiva. Não sei como isso é feito.
Contudo, não tenho cabeça para tocar nesse assunto, não com o que eu sei.
Não contei para o ele sobre as agressões e os abusos. É difícil até de pensar. Jack não tem nada a ver com a minha madrasta, tampouco sei se consigo articular a minha boca para dizer em voz alta.
Vovó tinha razão sobre não poder falar da vida da própria filha. Sem sombra de dúvidas não deve ser fácil, as palavras custam a sair.
— Eu não tenho ideia de quem é a Rosana. — Murmuro e levanto os meus olhos até os do rapaz. — Essa é a verdade. Eu sei que ela me criou e que...
Não vai parar até que eu seja princesa.
— Nada faz sentido na minha cabeça agora. — Deixo as minhas costas baterem no apoio da cadeira. — Mas, parece que ela tem mais motivos para odiar Analea do que se juntar a um grupo de rebeldes ou terroristas de lá contra Verena e o tio Albert. Ele tem cuidado da gente todos esses anos, então... — Dou de ombros.
Estou falando baixo, Declan e Harry devem estar do lado de fora do apartamento, talvez consigam ouvir.
— Não sei o que realmente aconteceu, mas acha que ela pode estar tentando se proteger desse homem? Proteger vocês?
— Pode ser. — Engulo em seco. — Talvez ela o veja como uma ameaça, ou tenha medo dele.
É esquisito supor isso. Sempre achei que a Rosana não tinha medo de nada ou de ninguém. Ela se reveste com um olhar indiferente sobre tudo e todos, e o usa de armadura. Nada entra, nada sai.
Jack inclina o corpo para frente, colocando a sua mão por cima da minha, sobre a pequena mesa redonda. Ele acaricia a minha pele com o polegar e entrelaça os nossos dedos.
É diferente ter esse tipo de contato com alguém. É mais do que eu já tive com as pessoas ao meu redor. Esse garoto me provoca arrepios de origens desconhecidas, difíceis de esconder e de camuflar quando estou perto dele.
— Eu sinto muito. — Diz após alguns segundos.
— Pelo o quê? — Rio com ironia. — Por ter feito tudo isso e não ter dado em nada?
— Por estar se sentido assim.
— Eu estou bem. — Deixo o ar sair. — Acho que só preciso processar. E... Eu sei lá. É muita coisa.
— Queria poder ajudar. — Seus olhos vasculham os meus. — De algum jeito.
Arrumo a minha postura na cadeira e o direciono um sorriso.
— Já é bom poder falar com alguém. — Ainda não tive coragem de ligar para a Harper. — Acredite, eu estaria enlouquecendo.
— Ah... — Jack afasta a sua mão da minha e se levanta, parecendo lembrar de algo. — Eu comprei uma coisa. Sei que não vai resolver nada, mas... — Inclino o meu corpo para vê-lo caminhar até a geladeira branca da cozinha, com alguns imãs na porta e calendários bem feios.
Ele abre o congelador tirando um pequeno pote de sorvete de menta com chocolate, evidenciando em seguida.
— Como você vinha eu decidi comprar. — Ele também pega uma colher antes de voltar para a mesa. — A Lou me disse que é o seu favorito.
Ele anda jogando muito baixo e a senhorita Louisa é uma traidora.
Não demorei a voltar para casa. Anoiteceu e o Harry me apressou porque a Rosana ligou procurando por mim.
Ela estava de volta, oficialmente.
Não tenho certeza se foi um bom negócio ter saído do apartamento do Jack para voltar para a minha casa e dar de cara com a minha madrasta. Não tenho ideia de como irei conseguir olhar para ela.
Por outro lado, preciso ver como a Megan está, ver o que ela pensa em fazer com o que sabe e se vai contar para a Maya.
Vovó e Fred assistiam um seriado na televisão quando eu cheguei, pareciam normais, pessoas normais e de uma família normal.
Evitei fazer barulho e subi as escadas em silencio, caminhando até o meu quarto.
No entanto, sou pega de surpresa no segundo em que eu abro a porta e vejo a mulher ruiva usando um vestido de seda, mangas compridas e verde escuro.
Rosana está parada ao lado da minha escrivaninha, me analisando dos pés a cabeça. É difícil dizer se ela quer se certificar de que eu estou intacta ou se só quer me intimidar.
— Fico fora por menos de uma semana e você decide zanzar por aí? — Seu tom é autoritário e hostil como sempre.
— Eu só estava... — Em compensação, deixo meu cansaço evidente quando as palavras saem. — Estava na casa de um amigo.
— De um amigo? — Ela levanta as sobrancelhas. Rosana sabe, lá no fundo e eu não precisei dizer nada.
— Rosana, hoje não. — Peço levando uma mão até a minha testa. Acho que preciso dormir. Não consigo olhar para ela. — É eu estava zanzando por aí, mas posso explicar depois. Eu tive dias intensos. E, hoje foi um dia cheio... — Digo desamarrando os cadarços das minhas botas, as tirando. — Nada legal, foi péssimo! — Em seguida, caminho até a penteadeira tirando os anéis e os meus brincos. — Preciso de um banho e dormir, então...
— A Megan me contou. — Rosana revela e eu giro o meu corpo para olhá-la diretamente.
O ar parece pesado de repente.
— Contou? — A minha voz mal sai.
Eu congelo. Especialmente pela maneira que ela está me olhando agora. Reprovação ou desdém, é complicado decifrar.
— Eu disse que não queria vocês mexendo no passado. — Solta os braços, acompanhado de um suspiro de exaustão.
— Eu não sabia que você tinha motivos pra ter medo dele. — Estou rebatendo, mas sem alterar a minha voz. Minha cabeça ainda dói e eu não quero complicar mais a situação, mesmo sendo a número um em fazer isso. — Poderia ter me contado. Não em detalhes... Mas, só pra evitar e teria evitado tanta coisa.
Os ombros dela sobem e descem com a respiração pesada.
— Você parece o seu pai falando e ao mesmo tempo lembra tanto a sua mãe. — Dispara sem esboçar emoção alguma, e me acerta num tiro certeiro. — Os olhos...
Eu daria qualquer coisa para saber o que ela está pensando agora.
— Eram amigas, não eram? — Umedeço meus lábios ressecados pelo frio. — Você e a minha mãe?
— É complicado. — Responde com descaso.
Não tenho certeza se existe emoção por trás das suas palavras. A ruiva se mantém impassível, falando friamente quase como se fosse oca.
Ela engole em seco e eu a observo andar devagar em direção a minha cama, ficando de frente para mim.
— Conheci o pai das meninas no primeiro ano da universidade. — Diz com indiferença.
Ela está me contando, está me contando mesmo. Eu não posso espantar como eu faço com o resto das pessoas.
— No Reino de Analea? — Pergunto, sentindo o seu olhar ainda mais fixo no meu.
— Isso. — Assente. — Morei em Meridia, na capital por uns anos. — Comprime os lábios antes de prosseguir. — Éramos amigos no começo e só iniciamos um namoro dois anos depois. Ele era... Perfeito. — A mágoa que acompanha as suas palavras, rasgam o ar a cada sílaba. — Até um dia não ser mais.
Isso ressoa no meu cérebro.
— É exatamente assim... — Ela encara o carpete — Podem prometer o mundo a você, apenas para terem o gostinho de tirá-lo depois.
— Então... Ele machucou você? — Arrisco e pergunto.
A mulher de fios ruivos ri irônica e eu posso estar alucinando, mas acho que vi seus olhos marejarem.
— Eu não chamaria o que ele fez de machucar. — Devolve o seu olhar ao meu. — Foram anos tentando entender o que fazia de errado, porquê eu não conseguia agradar a ele. — Fala entre os dentes. — Eu ainda lembro do primeiro tapa. Lembro de me sentir impotente e culpada. Lembro dele me forçar a fazer coisas que... — Para de falar ao perceber o embargo na sua voz.
Eu desvio o olhar para os meus pés descalços. Não é só a história que ela está contando que me causa ânsia, é toda a fúria nos seus olhos. A raiva e dor.
Não bastou sofrer os anos de colegial, a minha madrasta não teve sossego nem depois dele.
— Somos mulheres, Isla. — Diz e eu consigo encará-la outra vez. — Nós somos a maioria, mas não importa, porque aos olhos de muitos somos fracas, incapazes, somos feitas para seguir ordens.
Há tanta angústia em suas palavras que é inevitável não sentir um nó formar na minha garganta, comprimindo a passagem do ar.
— Diante daquela situação eu me sem muitas escolhas: Esperava ser salva e morria à mercê do medo de estar sozinha, ou me salvava mesmo que isso significasse estar sozinha. — Sua voz falha um pouco.
— Sozinha? Não contou para as autoridades? — Finalmente consigo perguntar engolindo o nó entalado na garganta.
— Você realmente não faz ideia de como o mundo realmente é. — Rebate juntando as sobrancelhas. — Ele era um membro da corte! Em quem eles acreditariam? Nele ou na mulher que foi mandada para um hospital psiquiátrico por ser acusada de agredir o próprio marido?! Em quem você acreditaria?
— Ele fez isso? — A história piora à medida que ela fala.
Uma professora disse uma vez, em uma das aulas no Salgueiro, que para alguns homens se livrarem de suas esposas, as trancavam em manicômios afirmando que eram loucas e perigosas para a sociedade. Isso ainda acontece? Nos dias de hoje? Isso ainda é possível?
— Fez. Era a palavra dele contra a minha.
Recolho o máximo de ar que consigo e o levo até os meus pulmões. Eu não tinha ideia, eu não suspeitaria de algo assim, nem na pior das hipóteses.
—Tudo isso... — Respiro fundo. — Estava fugindo dele?
— Tudo ia bem até uns dias atrás, era como se ele não existisse. — Ela se refere ao que aconteceu no baile beneficente do Willow?
— Sabe quem está por trás dessas mensagens ou a queda do sino?
— Não sei ao certo se pode ser ele. — Sugere, seu tom é amorfo. — Devem estar procurando algum jeito de me atingir. Atingir ao rei. Eu não sei.
Será mesmo? Eu estou exausta e a dor de cabeça piora a cada segundo.
— Isso tudo é... — Me permito sentar na cadeira em frente a penteadeira. — Monstruoso.
— Eu me casei com um monstro. — Enuncia com pesar. — Mas, monstros não nascem do nada, eles são criados, Isla. — Conclui friamente.
Eu não imaginava. Não mesmo.
Se tudo o que a Rosana contou é verdade, se for a mais pura verdade, isso explica o porquê não queria que soubéssemos.
Ergo o meu queixo para encará-la.
— Eu sint...
— Não sinta. — Me interrompe e dá um passo na minha direção. — Já faz muito tempo.
Ainda não sei o que pensar, não sei o que falar, não sei o que fazer. Merda, eu não sei.
— Agora que sabe a verdade, pode fazer o favor de parar e não se meter em nenhuma confusão nos próximos dias?
Posso prometer isso? O fantasma desapareceu de vez, não é como se eu tivesse muito o que fazer.
No entanto, há uma coisa, só uma coisa que eu não compreendo por completo.
— Me tornar princesa de Verena, tem a ver com isso? — Questiono rápida. — Acha que vai garantir alguma coisa? O tio Albert sabe disso? Se contar ele pode resolver e você pode parar com essa ide...
— Chega! — Exclama autoritária. — De novo essa conversa?
— Não é justo! — Levanto da cadeira. — Fui prometida a alguém e nem tinha idade para entender o que essa palavra significava!
Será que era queria se vingar de algum modo?
— Por quê? — Inquiro frustrada.
— Já tivemos essa conversa tantas vezes. O que está esperando? Uma resposta diferente?
— Talvez eu queria uma que me convença! — Falo levando as duas mãos até o meu rosto, as deixando cair sobre ele. — Podemos dar um fim nesse acordo se você falar com o tio Albert. Eu não sou prisioneira da corte! A vida é minha!
— Isso enquanto estiver viva! — Ralha se aproximando em uns passos. — Se você morrer o que pensa que... — E então para, na intenção de recuperar o fôlego. — Pessoas matariam e morreriam para estar no seu lugar. — Diz entredentes. — Então pare com isso. E, não pense em estragar tudo. Fará dezoito anos daqui a alguns meses, mas o Fred ainda é o meu filho.
Paraliso.
— O que quer dizer?
— Você é esperta, eu preciso explicar? — Cruza os braços.
— Vai usar o Fred pra me chantagear? — Tento me levantar, mas de repente sinto as minhas pernas enfraquecidas.
— Chame como quiser, mas experimente sair da linha. — Sussurra áspera.
Rosana passa por mim sem dizer mais nada, saindo do meu quarto e batendo a porta com força.
Monstros não nascem do nada, eles são criados. Eu temo estar vivendo com um e não sei se preciso sentir compaixão ou raiva.
Postando tudo picado porque a Nay tá dodói ultimamente. ♡ mas vocês merecem porque estão sendo incríveis comigo.
Eu tô amando as teorias de vocês. Tem uma mais sensacional que a outra!!! O quê estão achando desses últimos capítulos?
Tem alguma opinião sobre a Rosana?
O quê acharam da história que ela contou?
O baile tá chegando e eu tô tão nervosa 🥴
♡♡♡♡♡♡♡♡.
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