23 - Retrógrada

Eu tive outro sonho macabro.

Dessa vez, estava correndo num campo de roseiras, arranhando a pele com os espinhos, pisoteando um rastro de corpos. Estava fugindo, só não lembro do que ou de quem.

Tudo isso está me estressando, não só os pesadelos em si, mas a dose extra de impedimentos para dormir direito. Os últimos dias têm sido agitados e terríveis, tenho me sentido um personagem de em "A volta dos mortos vivos".

As minhas tentativas de irritar a corte e afastar as chances de ser aceita pelo povo como princesa estão saindo pela culatra. Desde que colori o cabelo, metade do reino tem ido aos salões de beleza e até mesmo deixando os fios coloridos em casa. Deveria ter ficado careca.

Rosana está pior que os guardas, parece uma sombra. Tive que contar tudo o que eu descobri no Memoriam para a Megan por mensagens, sem correr o risco de ser ouvida, e exclui cada palavra do texto, por precaução.

O tio Albert pensou que seria uma boa ideia dar um jantar, convidando boa parte da corte, duas semanas antes do baile. Lordes, duques, condes, parentes distantes.

Eu estou exausta e entre eles.

Duque Leopoldo, e o tio Albert são primos. Leopoldo possui outros títulos além desse devido aos laços consanguíneos, mas pensar e calcular me confunde.

Árvores genealógicas tendem a ser complicadas, especialmente quando relacionadas a uma linha de sucessão ao trono.
Enfim, ele é cômico, algo raro para alguém que usa o brasão da família real enquanto fuma um charuto, mexendo o bigode avantajado sempre que abre a boca para falar.

Albert também tem uma tia. Sim, uma tia avó. Ela e o seu cachorro estão usando roupas combinando, ela parece animada com a festa.
Deve ter apertado as minhas bochechas, as das gêmeas e do Fred vezes demais para sermos capaz de lembrar.

O salto está esmagando os meus dedos, as luzes fritando as minhas retinas e o meu rosto está dolorido de tanto forjar sorrisos para cumprimentar os convidados.

Acabei de derrubar champanhe de propósito na barra do vestido verde claro que estou usando.
É o escape perfeito para me afastar de todo o rumorejo no salão dourado do palácio, de todos os comentários sobre o meu noivo.

Tirando as luvas que cobriam os meus braços até os cotovelos, caminho em um dos jardins dos fundos do castelo, não muito distante, mas de todos o mais privado.
É bem agradável aqui e bonito como as luzinhas das lamparinas acesas agem em harmonia sobre as flores dos arbustos.

A música está mais baixa e não há murmúrios por aqui. Melhor, muito melhor.

— Fugindo também? — A voz de uma garota, chama a minha atenção para os bancos cinzas de pedra do outro lado.

Consigo ver Ornella, sentada em um deles. Ela está diferente, usando um vestido azul, enquanto toda a claridade do poste evidencia o cabelo num tom cor de rosa.

— Gostei do cabelo. — Aponto para os fios ondulados, presos em um penteado.

A garota assente, curvando os lábios.

— Gostei muito do seu também. — Ri baixinho. — Você meio que me encorajou.

— Encorajei? — Arqueio o olhar.

Ela faz que sim e eu me aproximo, me sentando do seu lado.

— Sempre quis ter o cabelo cor de uma cor diferente, acho que você me deu um empurrãozinho.

— E eu devo dizer "de nada"? — Junto minhas sobrancelhas. — Suponho que o seu pai não tenha gostado da ideia.

Sei pouco sobre o Conde, costumam dizer que ele rígido na criação das suas filhas.

— Não muito. — Ela faz uma careta. — Ele se acostuma. No mais, não é como se estivesse apostando em mim para alguma coisa por causa da... — Ela ergue levemente a saia do vestido, mostrando a prótese da perna esquerda.

— Isso é bobeira. — Estou me contendo para não falar nenhum palavrão.

— Eu também acho. — Ornella concorda. — Mas, aparentemente meus pais acham que a minha lista de pretendentes na corte pode ser... — Ela aperta os lábios, respirando fundo. — Limitada. Como se eu precisasse de um marido aos dezesseis anos. Como se eu precisasse de um marido.

Faz sentido eu gostar dela.

— Tem razão, não precisa. — Coloco a mecha teimosa atrás da minha orelha. — Só que isso tudo não chateia você?

— Já me chateou mais. — Ela assente. — Hoje eu... Gosto de encarar como uma oportunidade.

— Oportunidade do quê?

— De provar para as pessoas que estão erradas sobre mim. — Explica, repousando as mãos em seu colo. — E, é muito bom ver os queixos caindo sempre que eu mostro que não ter uma das pernas, do modo convencional, não me atrapalha e nem me incapacita.

— Comigo não funcionou. — Digo e ela franze o olhar em confusão. — Eu já sabia de tudo isso, não estou surpresa. — Esclareço e ela gargalha. — Vai precisar de um pouco mais para me impressionar.

Ornella estreita os olhos como se pensasse em algo.

— Consigo descer escadas sem usar a prótese. — Ela revela.

— Essa é fraca, o saci também.

— Os meus sapatos nunca ficam gastos por iguais.

— Isso é previsível.

— Posso estacionar na vaga de deficiente.

— Você sabe dirigir? — Arregalo os meus olhos.

— Tirei a habilitação semana passada. — O sorriso da Ornella é largo. — Mas o meu pai está com medo de me dar um carro, ele diz que temos motoristas por uma razão. Eu sei que só está preocupado comigo. Posso entender.

Ela pode ser capaz de entender, no entanto parece um pouco chateada por causa disso.

— Eu li sobre o membro amputado, que as vezes dá pra sentir ele. — Comento, de repente. — Como é que chama...?

— A dor do membro fantasma. — Ela me lembra e eu concordo.

— Isso... Se importa em falar sobre essas coisas?

— Não. — Nega e ri. — Eu entendo que não é todo mundo que tem uma perna mecânica e não, eu não sinto mais a perna amputada, acho que sentia no começo. — Esclarece. — O cérebro é muito estranho.

Reviro os meus olhos por concordar de uma maneira absurda com isso.

— Eu que o diga. — Umedeço os meus lábios. — Tenho amnésia retrógrada. — Conto, não sei porquê. — Quando eu tinha sete anos, depois que o meu pai morreu... A vovó contou que eu fui no estábulo real, peguei um cavalo e sai correndo.

Não lembro disso. De nada disso. Não consigo e eu já tentei. Posso visualizar, mas não é como se tivesse acontecido, como se fosse real.

A boca da Ornella se abre.

— Sério?

— É. — Faço que sim, levando a minha nuca, subindo até uma parte da minha cabeça. — Eu caí e sofri uma concussão. Os médicos tiveram que fazer uma cirurgia, então... — Mostro uma cicatriz escondida entre os fios de cabelo. — Não lembro de acontecimentos antes de acordar no hospital.

Geralmente, não falo disso com as pessoas, não tenho a menor ideia do que me levou a falar agora. Sempre que posso, evito.

— Mas e a sua família, se lembrava de cada um?

— Sim, eu sabia quem era quem, até sabia do meu pai, mas... — Engulo em seco. — Não lembrava de momentos com eles. Meio que perdi meu pai duas vezes, eu sei lá.

Quando era mais nova, vovó me fazia ver fitas antigas de aniversários, mas era estranho, eu detestava. Parecia assistir um filme qualquer, espiar pela cortina a vida de outra pessoa, então paramos de fazer isso.

— Eu sinto muito. — A mão dela para em cima da minha. — Não imagino o que é perder alguém assim.

Ergo o canto dos lábios em resposta.

— Acho que nem eu. — Dou de ombros, rindo da afirmação e fazendo ela rir. — Não exatamente.

— Você tem um senso de humor interessante, milady. — Diz em meio a risada.

— Com licença, senhoritas. — Um jovem mordomo nos chama. — O jantar será servido.

Ornella e eu não entreolhamos antes de criarmos coragem para entrarmos.

Harper me ajudou a estudar para o teste de Álgebra e eu mal consegui prestar atenção no que a loirinha estava dizendo. Não é culpa dela. Harp seria uma ótima professora se ela quisesse. Acontece que, eu tenho dormido muito mal, e se eu continuar assim morrerei antes dos quarenta.

Primeiro, por causa dos sonhos estranhos, acordo cansada, como se não tivesse ido dormir.
Segundo, sei que Memoriam é uma funerária e estou aguardando impacientemente a Clarice voltar, contudo, o que são as outras palavras? O que elas significam?
Fiz inúmeras pesquisas no google e não existe lugares, ruas, nem endereços que tenham nomes parecidos.

Quem sabe, Jack tenha razão. São pistas soltas demais e desconexas, até porque não tenho um sinal do fantasma desde a foto no armário do vestiário.

E, eu estou ficando sem tempo. O baile de apresentação do herdeiro está mais perto a cada segundo, a cada minuto e eu não sei o que fazer.
Não irei me prender a alguém por razões que eu nem conheço, enquanto a minha mente é comida pelas traças da exaustão.

No momento, estou na aula de história, é a última antes do primeiro intervalo.
Não quero nem olhar para as notas das primeiras atividades em dupla, que entregues hoje.

Se a minha vida dependesse dessa nota, eu estaria à sete palmos do chão, e eu não estou sendo implicante. Apenas admitindo que as minhas primeiras desavenças com Jack Ahren podem ter prejudicado nosso desempenho.

— Oi. — O atrasado do Jack diz tomando o seu lugar ao meu lado. — Suponho que não tenha dormido bem. De novo.

Mantenho meus cotovelos apoiados na bancada, com as mãos no rosto, me atentando aos olhos azuis do rapaz passearem pelo meu rosto.

— Eu estou com olheiras? Cabelo bagunçado? — Me sobressalto, ajeitando a postura de alguém que já não dorme direito há dias.

Jack ri, com bom-humor. Acho que posso jogar ele pela janela, junto com o professor e as notas.

— Seu cabelo está ótimo. — Ele diz e minha vontade de arremessá-lo diminui. — E, não se preocupe com as olheiras.

— Então eu estou com olheiras. — Reviro os meus olhos ao perceber que deveria ter caprichado no corretivo antes de sair de casa.

Vou pedir uma ajudinha a Harp ou a Megan, elas vivem com o kit de maquiagem enfiado em suas bolsas.

— O aniversário da Harp e o baile estão se aproximando e eu estou com olheiras! — Razinzo. — Claro! Eu não consigo parar de me preocupar com um monte de coisa. — Encaro fixamente o rapaz que me olha como se eu fosse alguma maluca. — Sabe Jack, eu deveria estar pensando na minha roupa para o aniversário da minha melhor amiga, que na verdade nem é uma festa de aniversário. Deveria estar pensando no meu vestido de baile e eu estou pensando nisso? Não! Eu estou rodando feito uma barata tonta, agindo como uma paranoica, com olheiras e descabelada!

Jogo o meu corpo para frente, escondendo o meu rosto com os dois braços.
Pelo vão consigo ver as minhas botas, uma parte das meias ¾ e a minha saia. Xadrez. Xadrez. Xadrez.

— Não se preocupe com isso. Você não ficaria feia nem se quisesse. — Jack diz de repente. Do nada.

Ele precisa parar. Meus órgãos saltam dentro de mim e voltam para o lugar.
Ainda deitada nos meus próprios braços, viro o rosto para olhar o rapaz que sorri gentilmente.

— Que jeito engraçado de dizer que me acha bonita. — Eu não deveria ter dito isso.

Jack inclina o corpo para frente e assim como eu, deita a cabeça nos seus braços sobre a bancada, com o rosto virado para o meu.

— Conseguiu descobrir mais alguma coisa? — Indaga baixo.

— Ainda na estaca zero. Sei que a minha mãe atazanou a Rosana como um capiroto, sei que anos depois a Rosana foi para Analea, e, o tio Albert tem um problemão com esse reino e... Eu tento formular alguma coisa na minha cabeça, mas as vezes eu não sei se estou parecendo uma dessas pessoas malucas com teorias conspiratórias. Sabe?

Ele faz que sim.

— E, se perguntar pra ela, a sua madrasta ou... Talvez pro rei?

— Não acho que eu iria conseguir algo. Queria poder confrontar a Rosana, mas ela vai driblar todas as perguntas e... Ser tão detestável como sempre. — Esclareço, observando Jack erguer o corpo e abrir o meu estojo recoberto por lantejoulas pretas, para pegar uma das minhas canetas. — Cuidado com essa caneta, ela é de prata e eu ganhei no bingo.

Aponto para a caneta que ele escolheu, endireitando a minha coluna igualmente.

— Essa frase fez você envelhecer uns cinquenta anos em dois segundos. — O tom de ironia do rapaz voltou com força. — Joga bingo?

— Jogo, claro. — Dou de ombros. — Com o tio Albert.

— Tio Albert? — Alarga o sorriso ao perguntar.

— É, o Rei Albert. — Explico, arrumando os meus fios desgrenhados. — Quando eu era mais nova, um tempo depois que o meu pai morreu e a Rainha, acho que ele se sentia sozinho as vezes... Eu e o meu irmão íamos jogar bingo com ele e com a minha avó.

Jack para de responder os exercícios, e assente assimilando essas informações, maneando seus olhos aos meus, como se quisesse ler os meus pensamentos.

— Ele parece ser importante para você.

— Acho que é. — Escoro no apoio da cadeira. — E, é por isso que eu preciso saber qual é a da Rosana. Ele confia nela.

Não menciono a parte de que preciso escapar do meu compromisso com o príncipe. Não preciso dizer e ele não precisa saber disso.

— Ainda mais com a mídia levantando a hipótese de terroristas. — Fungo.

— Acha que é verdade? — Jack questiona, tornando a escrever.

— Há um mês atrás eu diria que com certeza não, mas, agora? Depois de tudo o que aconteceu nas últimas semanas? Estou até cogitando acreditar naquela teoria sobre a água da torneira.

— Como assim?

— É. — Tamborilo a bancada com a ponta dos dedos. — Algumas pessoas, principalmente há uns anos atrás, acreditavam que o flúor da água ajuda o governo a controlar a mente das pessoas. Dizem que tornam elas mais suscetíveis e manipuláveis.

— Certo. — Ele sacode a cabeça, pouco confuso. — Isso é bem esquisito... — E, então ri. — Talvez o rei não fosse precisar disso, afinal, ele é rei e só vai deixar de ser rei quando morrer.

— Eu não estou dizendo que acredito nisso. — Meus olhos rolam inevitavelmente. — Mas também não bebo água da torneira.

— Eu bebo. — Ele contrai suas feições. É engraçada a sua careta.

— Ah, isso explica muita coisa. — Digo lentamente, apertando os meus lábios numa linha reta para não rir.

Jack tira os olhos do quadro com as anotações, tornando a me encarar, estreitando as pálpebras.

— Você é cruel.

— Eu sou criativa. — Retruco baixo, e paro de falar quando o Sr. Colton se aproxima da nossa bancada.

— Parabéns Srta. Grant e Sr. Ahren. Tiraram a nota máxima. — O professor diz, entregando o relatório da nossa dupla e se distanciando em seguida.

Cabeças se inclinam na nossa direção, e os mexericos ganham força.
Não sei o que dizem, não dá pra ouvir, sequer estou preocupada com isso no momento.

Eu estou em choque.
Meus olhos quase saltam das órbitas quando miram no número cem muito bem colocado na nossa folha. Mas que bruxaria.

— Somos ótimos parceiros, milady. — Jack diz deslizando a folha sobre a mesa na minha direção.

— Quando não estamos quase nos matando. — Pontuo sem demora e ele concorda, balançando a cabeça.

— Bem observado. — Ri, segundo a minha caneta outra vez e dando atenção aos exercícios.

Capítulo tá de boas, mas é aquela coisa, né. Não se acostumem muito não kkkkkkkkkkkkk

O quê acharam da Ornella?

E, da Isla e do Jack?

Vocês bebem água da torneira?

Acreditam em alguma teoria conspiratória? Tipo, a Rainha da Inglaterra é reptiliana? Michael Jackson está vivo? Sobre a morte da princesa Diana?

Eu confesso que sempre fico meio desconfiada de umas coisas, enfim. Kkkkkkkkkkk.

Gente, olha esse desenho:

Nossa Isla impossível desenhada!!! O uniforme do Salgueiro ficou uma graça! Foi um trabalho lindo da olhosdtinta, lá no Instagram.

Olha isso:

Falando em insta, eu compartilho tudo lá com vocês, se você não me segue, vai lá me dar um biscoito e me seguir, bein.

Tem muita ilustração chegando por aí, de ceninhas lecais hihi quero muito mostrar


Por enquanto é isso. Amanhã eu volto beijos e salamandras!

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