20 - Aquilo que transcende

Descia as escadas do castelo, tão rápido quanto brisa gelada de inverno.
A rainha Amelie tocava Carol of the bells em um grande piano dourado, posto perto da maior árvore de Natal que eu já tinha visto na vida.

Haviam moças, crianças, pessoas dançando e mordomos desviando da minha correria.

— Isla! — Rosana me chamou assim que eu terminei de descer a escadaria. — Não pode sumir dessa forma. — Dispara até onde eu estou. — Olhe só para você. — Suas mãos quentes aquecem o meu rosto. — Você está gelada! — Rosana tirou a sua echarpe e passou ao redor do meu corpo. — Talvez devesse vestir algo mais quente.

— Rose. — Meu pai falou carinhosamente, envolvendo-a com um braço. — Ela não para de correr pelo castelo, não acho que o frio está incomodando.

Depositou um beijo no rosto da minha madrasta e depois agachou para ficar na minha altura.

— Eu quero fazer anjos na neve. Está nevando! — Pulei ao apontar para as grandes janelas, emoldurando os céus esbranquiçados. — O tio Albert disse que eu posso ir lá fora se vocês me derem autorização. E, se o rei deixou, vocês também deixam?

— Depois de vestir um outro casaco. — Rosana continua ajeitando o meu vestido.

— Eu estou muito bem, melhor impossível!

— Não vai ficar se pegar um resfriado. — Ela contraria.

— Eu sou bem forte.

— E, teimosa. — Papai fez cócegas na minha barriga, me fazendo contorcer o meu corpo e rir. — Olha só quem vem ali.

Ele apontou para alguém atrás de mim que me disse algo muito antes que eu pudesse virar para encará-lo:

— Me daria a honra dessa dança, mademoiselle? — A voz doce do garotinho foi tudo que eu ouvi além da música que a Rainha tocava.

Acordo com o despertador tocando. Meu coração bate rápido, desesperado, tudo no meu quarto parece rodopiar.

Caramba, que estranho. Não sei se foi uma peça pregada pelo meu cérebro ou se eu sonhei com uma lembrança. Eu realmente podia sentir a brisa invernal bater contra minha pele. A canção e a voz da rainha Amelie ainda ecoam nos meus pensamentos.

Essas questões com a Rosana e com o príncipe devem estar me enlouquecendo aos poucos.
Como eu poderia estar me lembrando? Por que agora?

E, se por acaso eu conseguir me lembrar de algo útil? Memórias não podem ser acessadas sem a minha permissão, a Rosana não teria como saber o que eu sei ou não.

Procuro manter as imagens frescas na minha mente, mas eu sinto um nó se formar na minha garganta sempre que eu forço.

— Rosana, eu preciso ir no Willow. — Enuncio no café da manhã, que dessa vez está menos silente, já que vovó e a Maya conversam sobre o baile.

Rosana bebe um gole do seu café, abaixa a xícara e coloca os olhos claros em mim.

— Não. — Parece gostar de dizer. Um sorriso quase se ergueu depois. — Em outro momento.

O tom rude da mulher basta para que vovó e Maya parem de conversar.

Não falei com a Louisa depois do acidente na torre do sino e eu disse que não iria sumir.

Os órfãos nunca estiveram num baile antes, e graças a Rosana, vão precisar se preocupar em gastar dinheiro com roupas de festa.
A megera prometeu por mim que levaria as crianças para escolherem as roupas para o baile.

— Eu insisto. — Digo, pondo a pequena colher que eu segurava ao lado da minha xícara.

— E eu continuo negando. — Rosana rebate, colocando sua xícara sobre a mesa, causando barulho quando as porcelanas se encontram. — Esqueceu do que aprontou há alguns dias? Não está em condição de insistir.

— Preciso lembrá-la que me colocou nisso? — Replico de imediato. — Ficará feio para a minha imagem prometer algo a crianças carentes e não cumprir, a senhora não acha?

— Eu vou indo para o carro. — Fred sai da mesa de fininho.

— Boa ideia, irmãozinho. — Megan enfia um pedaço de bolo na boca e assim como a Maya se levanta, me deixando sozinha, com a Rosana e com mãe dela.

— Vovó? — Olho para a Ophelia com súplica.

Que aperta os lábios e assente de forma sutil, antes de olhar para a filha.

— Rose, talvez se você...

— Ceder? — Rosana ri, soltando a respiração.

Ela leva os olhos até os meus sem dizer uma palavra não e assim como o Fred e as gêmeas, deixa a mesa.


O tio Albert ainda não me ligou. Mandei duas mensagens para o seu secretário, Enoc, e pelo o que eu soube, está ocupado demais. Possivelmente sobrecarregado com o baile do filho, a mídia, além de todas as investigações e conflito com os reinos.

Saiu no jornal que ele e o rei Aldrich estão prestes a quebrar um tratado de importação e exportação, e se eu entendi bem, isso pode prejudicar a economia de ambos os países.

É difícil saber ao certo qual é o problema, não sei se algum dia os reinos da Ilha viveram em harmonia.

Nas aulas de história aprendemos como ocorreu a colonização de cada um, mas nada muito aprofundado, como a política vem interferindo, por exemplo. E, eu acho que a maioria dos jovens da minha idade não dão a mínima, quem sabe porque estão preocupados demais em serem bons em alguma coisa e lucrar com isso.

Cresci sabendo que não iria precisar trabalhar um dia sequer na minha vida, não só pelo fato de estar prometida ao príncipe do meu país, mas porque meu pai se foi e deixou o império Grant. Tudo isso, misturado ao meu apreço e curiosidade por inúmeras profissões, digamos que fica mais difícil saber o que fazer. Moral da história? Acho que sou uma criatura sem propósito algum.

Eu faço o que mandam, mas nadar com a correnteza pode cansar tanto quanto nadar contra ela.

Falando em cansar, não obtive sucesso algum com o joguinho de palavras em latim que o fantasma deixou, e ele não veio me assombrar ainda.

Sem mensagens estranhas, sem pistas. Nada.

Peguei o anuário do Salgueiro na biblioteca muito antes das primeiras aulas do dia começarem. Mais especificamente, o anuário do ano em que os meus pais e a Rosana se formaram.
Fiquei enfornada na biblioteca o almoço inteiro, não só por causa disso. Faltei em algumas aulas graças ao circo que tem sido a minha vida, e agora preciso repor o que eu perdi.

— Acho melhor eu pegar mais café. — Jack diz com um sorriso nos lábios e um copo de café em mãos. — Trouxe isso.

Ele põe o copo sobre a mesa, se sentando do meu lado.

Olho para o copo, olho para ele e repito, umas três vezes.

— Por quê? — Não sei disfarçar o quanto cada atitude dele tem me confundido.

— Pela hora que respondeu a mensagem, deduzi que não dormiu muito bem.

— Por que está sendo legal?

— Ué. — Junta as sobrancelhas. — Eu sou legal.

— Você não envenenou o café não, né? — Estreito os olhos, tirando a tampa e até cheirando a bebida.

Eu o vejo rir do meu comentário e negar com a cabeça.

— Nossa, eu deveria ter pensado nisso. — Replica, exatamente como eu havia feito quando dei o celular para ele.

Se me dissessem um tempo atrás que eu estaria com Jack Ahren na biblioteca, e aceitaria um café que ele me trouxe, sem querer despejar na cabeça dele, eu mandaria a pessoa para a reabilitação.

É esquisito tê-lo por perto sem querer discutir por alguma coisa, não sei quanto tempo vai durar.

— Conseguiu descobrir alguma coisa? — Ele questiona pondo os olhos no anuário.

— Não, mas acho que a Rosana vendeu a alma dela para o diabo e deu a minha de brinde. — Bebo um gole do café, folheando o livro dos ex-alunos devagar. — Tipo essas promoções "Pague uma e leve duas".

Paro de falar, assim que vejo a foto do tio Albert, o primeiro aluno das pequenas fotos. Nada mau.

— Se o príncipe herdou a beleza do pai, acho que eu não vou ter grandes problemas. — Penso alto.

É meio inevitável não rir quando eu percebo pela visão periférica, que Jack revirou os olhos com o meu comentário.

— Annelise Nicolina Florence Bridger. — Jack aponta e pronuncia o nome.

Olhos verdes intensos, como duas esmeraldas, e os cabelos escuros como os meus.

— É. — Passo o polegar pela foto, tirando a poeira. — Minha mãe.

— Tem os olhos dela, Isla. — Jack fixa sua atenção em mim ao comparar.

Harry Potter ouviu muito isso.

Devolvo a minha atenção para a busca, mas meus olhos acabam se perdendo à outras fotos.

— Olha a rainha Amelie. — Indico para a jovem de olhos tão castanhos quanto os fios do cabelo curto. — Ela era linda.

Eu sinto um incômodo na garganta quando viro a página mais uma vez e eu encontro a foto do meu pai. O Fred é mesmo a cara dele.

— Isla. — Jack evidencia a fotografia de uma garota ruiva.

Rosana Prudence Maelie Carmiene.

— Ela nem parece a Rosana. — Falo, esfregando os olhos para ter certeza de que estou olhando para a mesma pessoa que meu criou.

Rosana tinha traços meigos, cabelos volumosos, usava óculos, aparelho e sorria de maneira doce.

— Sabia que a minha mãe infernizava a vida dela? — Comento, bebendo mais um pouco do café. — E, anos depois que a minha mãe morreu, ela se casou com o meu pai.

— É, é um pouco estranho. — Jack resmunga, fazendo careta.

— Um pouco? — Rio e o encaro por cima dos ombros, ele está apertando os lábios para não rir, com um dos seus olhares indecifráveis. — Não me olha desse jeito não!

— Que jeito? — Pergunta, já sorrindo.

— Como se estivesse me lembrando que eu joguei vitamina na sua cabeça!

— Mas você jogou vita... — Ele fala, eu o encaro incrédula e ele para. — Bom... — Coça a garganta. — É bem chato o que aconteceu, mas não me parece um grande segredo, ao ponto de ficarem mandando mensagens pra você por causa disso.

— Acho que deve ser só uma peça do quebra-cabeças.

— Jack! — Ouvimos a voz do Dylan, quem está há alguns metros de nós. — Vamos, cara!

Jack olhou para o Dylan e depois olhou para mim.

— Melhor não perder o treino. — Aponto para o garoto loiro, quem fica fazendo corações com as mãos e encenando beijos e abraços.

Ergo a minha e evidencio o dedo do meio por uns três segundos, mas sem que o Jack veja isso.

— A gente conversa depois. — Jack me garante. — Só toma cuidado pra não derramar café na cabeça de ninguém. — Caçoa, dando dois tapinhas leves no topo da minha cabeça, antes de se afastar e andar na direção do Dylan.

Aperto o meu rabo de cavalo enquanto corro em volta do estádio, como foi pedido pela Sra.June.
Harper está correndo do meu lado, uma tentando acompanhar o ritmo da outra. Gosto de correr para me exercitar, acontece que eu devo ter dormido de mal jeito noite passada, meu corpo está um pouco dolorido.

Falar e correr ao mesmo tempo é mais exaustivo do que eu pensei que seria e mesmo assim eu continuei contando sobre o sonho para a loirinha. Aproveitei e também contei sobre a brecha de lembrança na rua dos pássaros, minutos antes de eu ser pega pela guarda.

— Então, você está mesmo se lembrando?

— Eu não sei, acho que sim. Pode ter sido só um sonho mesmo ou algum surto da minha cabeça.

— Por que estaria se lembrando agora?

— De repente o soco foi forte o bastante e sacudiu o meu cérebro, colocado algum parafuso no lugar. — Um pé na frente do outro, só mais uma volta. — Ou quase ser morta por um sino e encontrar um homem morto podem desencadeado alguma coisa.

— Não acha que deveria procurar um médico? — Sugere. — Neurologista?

— É, parece ser uma boa ideia. — Paro de correr, apoiando as mãos nos meus joelhos, ofegante. Harper para também e se joga na grama. — A Rosana...Ela estava diferente no sonho.

Me sento na grama igualmente. Daqui posso ver os meus guardas, perto da arquibancada.

— Diferente como?

— Menos Rosana. — Eu não sei se sou boa para definir. — Ela... Estava sendo... — Pensa Isla, você é boa com palavras. — Acho que o termo era "preocupada" comigo e "gentil".

— Gentilmente preocupada com você?

Faço que sim com a cabeça.

— Meu Deus, Isla. A parte do "gentil" é...

— Agravante. — Nomeio, sem esperar que ela o faça. — Porque a Rosana não é assim. — Ou não é mais. Eu sei lá.

O apito da Sra.June chama a nossa atenção e somos obrigadas a lutar com a gravidade, levantar e caminhar até o restante dos alunos, no meio do campo.

Os alunos se aglomeram em volta da professora e eu posso ver Jack Ahren ao lado do amigo, com os olhos em mim, mas desvio no mesmo segundo para a Sra.June.

— A nossa próxima aula será em conjunto com um jóquei muito importante. Vai acontecer na área exterior do colégio. Em um dos estábulos. — Conta. — Os alunos antigos já conhecem o protocolo, mas para os novos, preciso que vocês estejam vestidos e equipados com as roupas adequadas.

— Pelo menos dessa vez é algo que você gosta. Talvez precise ensinar o Jack a montar para ficarem quites pelas dicas de beisebol. — Harp cochicha e eu rio, secando o suor escorrendo pela minha testa.

— A senhorita gostaria de acrescentar algo Srta. Piper? — A professora questiona, cruzando os braços.

Os olhos de todos os alunos estão sobre a loirinha que refaz o coque dos seus cabelos.

— Roupas de hipismo são apertadas, cuidado para não pegar um número menor. — Harper relembra e a melhor parte é que não há sarcasmo em seu tom de voz, ela está falando sério. — Fica muito desconfortável.

Mesmo assim, aperto os meus lábios para não rir.

— Obrigada pela colocação. — A Sra.June agradece e sopra o seu apito, decretando o fim da aula.

Eu não gosto de tomar banho no colégio, não me sinto confortável, mas corri para o vestiário feminino o mais depressa possível, pois não tinha condição de vestir o uniforme outra vez fedendo a suor.

A água quente ajuda a relaxar a tensão no meu corpo, resultado da bagunça que foram os últimos dias.
É engraçado como eu me sinto agora, e como sentir é assustador.

As noticiais sobre mim. Jack Ahren surgindo como uma pedra no meu sapato. O anuncio do baile. O soco durante o jantar no Caprise. O tio Albert me chamando para morar com ele. As mensagens do fantasma. A queda do sino. Todo aquele barulho. Devon morto. Lembranças.

Fecho os olhos e procuro me sentir leve. Tento aquietar a minha respiração, canalizando os meus sentidos ao barulho da água do chuveiro tocando o chão.

"Eu te amo, Is". Fotos e mais fotos antigas. Fotos sem sentido. Nada faz sentido. "Eu te mantive segura durante todos esses anos". Devon morto por enforcamento. Corvos. Muitos deles. Penas escuras e o cheiro de morte.

Abro os meus olhos, com meu coração acelerado, batendo tão depressa ao ponto de doer. E, isso dói. Doí para um inferno.
Algo entala na minha garganta, vai reduzindo a minha traqueia. Nada sai, nada entra. Eu não consigo me mover, não consigo respirar.

Agacho me apoiando na parede, tateando os azulejos porque se eu escorregar vai ser pior. Posso bater a cabeça e morrer de concussão cerebral. A cena não seria tão bonita. Isla Grant encontrada morta no banheiro do vestiário feminino, no Salgueiro.
Posso visualizar a cena; eu pálida, gelada, nua. Posso visualizar o sangue escorrendo até o ralo.

Isso não seria tão bom para o Fred, para Harper, acho que ela ficaria péssima também, se perguntando do porquê não veio comigo.

A água ainda colide com a minha pele, mais pesada, mais quente.

— Isla? — Ouço a voz da Emma, quem dá três toques na porta. — Isla, tá tudo bem? — Ela abre no mesmo segundo.

— Ai, meu Deus! — Emma se apressa desligando o chuveiro e pegando as toalhas que eu deixei do lado de fora do box. — Isla, olha pra mim. — Pede. — Eu vou chamar ajuda, eu...

— Não. — Minha voz sai como súplica e eu me apoio segurando no seu braço.

Posso me apoiar em algo agora e não cair. Eu posso fazer isso: Levantar.
E, se eu posso levantar, eu posso respirar. Mesmo que doa, mesmo que arda.

Emma me ajuda, ela parece nervosa, totalmente assustada e apesar disso consegue me ajudar.

Saí do box do banheiro e vesti o meu uniforme com um certo desespero. Eu precisava me cobrir, precisava não estar tão exposta. Até cobri o meu pescoço com um cachecol.

Acho que estou assustando a Emma, com tanto silêncio e exaspero.

— Você está...

— Eu estou bem. — Garanto, sem deixar ela terminar de falar.

Acabo de amarrar o cadarço das minhas botas, me levanto do banco que há entre os armários do vestiário e pego a escova de cabelo dentro da minha mochila.

— Não está não. — Diz negando com a cabeça. — Quer ir para a enfermaria? Acho que deveria. A senhora Trude pode...

— Eu estou bem, Emma. Sério.

Gravata. Gravata. Eu tenho que arrumar a merda da minha gravata.

— Não parecia nada bem. — Ela escora em um pilar.

— Mas estou agora. — Termino de desembaraçar o meu cabelo.

Abro o meu armário para guardar a bolsa e observo o momento em que um envelope cai dele. Um envelope preto, pequeno.

Emma olha para o envelope no chão e olha para mim.

Mas que grande merda.

O recolho do chão e com as mãos um pouco tremulas, tiro outra fotografia de dentro.

— Ótimo, outra foto da Rosana. — Reclamo.

Ela está ao lado de uma mulher. Elas não olham para a foto, estão sentadas e conversando na frente de um jardim.
"Clarice". É o que está escrito atrás.

Mostro para a Emma que passa os olhos por cada canto da imagem e me encara.

— Sabe quem é?

— Não tenho ideia. — Torno a sentar no banco.

Seria mais fácil se o fantasma me dissesse de uma vez por todas o que quer dizer, acho que ele poderia fazer isso, até porque não tenho ideia de quem é.

— Será que a sua avó saberia dizer?

— Se ela souber eu não acho que ela vá me contar.

Mas, talvez a Megan vá. Ela é esperta, pode estar certa sobre ser o pai dela por trás dessas mensagens e mesmo que não esteja, pode me ajudar.

— Será que o fantasma é daqui do colégio? — Emma se senta ao meu lado me devolvendo o envelope.

— Pode ser. — Concordo. — Ou pode ser que ele fez isso para despistar, sabe? — Digo e ela assente. — Ou... — Estreito os olhos. — Ou pensou que eu sacaria isso e tiraria de cogitação os alunos, sendo que pode ser um dos alunos.

An?

— Vamos, eu preciso de respostas. — Pego na mão dela e a puxo, rumo a saída o vestiário.

Encontrei a Megan sentada em um muro alto, nos fundos da propriedade do Salgueiro, com os olhos fixos num lago além dele.

Precisei escalar algumas pedras para subir. Estou andando sobre ele, com os braços abertos para me equilibrar, um pé na frente do outro.
Espero não cair e me estabacar nas pedrinhas pequenas lá em baixo, se eu tiver sorte — duvido muito — posso cair na água e só me encharcar um pouco.

A raposa apaga o cigarro no tijolo assim que me vê e resmunga algo inaudível para si mesma.

— O que você quer? — Questiona de uma vez, muito antes de eu terminar de me aproximar.

— Você não deveria estar na aula de álgebra? — Pergunto, me sentando e arrumando a minha saia para não mostrar a bunda sem querer.

— E, você não tem aula também?

— Sim, mas eu tenho um passe livre. — Tiro o passe do blazer. — E, uma foto da sua mãe. — Também tiro a foto.

Ela junta as sobrancelhas acobreadas e tira da minha mão.

— Acho que o Fantasma colocou isso no meu armário do vestiário.

Megan arregala os olhos.

— Ele esteve no Salgueiro? — Pergunta e eu dou de ombros.

— Sabe quem é essa mulher com a sua mãe?

Ela torna a encarar a foto e faz que não com a cabeça. Ótimo, nada. Que inferno.

Fecho os olhos e fungo, massageando as minhas têmporas.

— Esse nome... — Ela diz depois de ler o nome escrito atrás. — Acho que já ouvi ela e a vovó conversando.

— Sobre o que?

— Uma conversa fora de contexto não tem muito sentido. Mas sei que já ouvi.

Continua sendo nada.

— Vou ver se eu encontro alguma coisa na lista telefônica. — Replico irônica, pegando a foto da mão dela. Não é uma ideia ruim.

— O que acha que pode ser? Sinceramente?

— É difícil palpitar.

— Mas mesmo assim você tem um palpite. — Rebate arqueando o olhar. — Qual é, Isla! Acha que a minha mãe pode estar envolvida com gente perigosa?

— Talvez sim, talvez não.

Não espero que ela me entenda, não é como se ela pudesse. No mais, estamos falando da mãe dela, não é algo muito confortável de se pensar.

— A princesa de Verena matando aula? — Dylan surge de repente, do outro lado da Megan, quase fazendo a ruiva cair e recebendo alguns tapas por causa disso.

Ele se senta no muro, tira um maço de cigarros do bolso e continua:

— Não que eu esteja reclamando, é legal ver você mandando todo mundo pra casa do caralho.

Praticamente esfrego o passe livre na cara dele.

— Convida a Maya para o baile. — Megan manda. Até seu tom de voz sai mais autoritário.

— O quê? — Dylan torce o nariz.

— Ela está esperando você fazer isso e é claro que você quer fazer.

— Posso saber o porquê você acha isso?

— Intuição. — Megan sorri sugestivamente e Dylan revira os seus olhos.

— Com quem você vai? Não acho que vá chamar um dos garotos do time. — Dylan rebate levando um cigarro e o acende. — Ou melhor, um garoto.

— Não mesmo. Não tenho o menor interesse neles.

Ela me fita e eu não digo nada, na verdade, eu não sei o que espera que eu diga.

Ver a Megan falando assim tão abertamente é estranho, porque não somos de contar as coisas uma para a outra, é o oposto, a gente se entrega e se encrenca.

Perto da Rosana e da vovó ela disfarça, também nunca cheguei a perguntar.

— Não me olha assim. — Megan pede. — Não precisa fazer disso um grande evento.

— Disso o quê? — Dissimulo, sei do que ela está falando. — Não tem nada de errado em gostar de meninas.

— É, Meg, eu gosto! — Dylan gargalha. — Megan saiu do armário pra poucas pessoas até agora, tem eu, a Maya e... Quem mais mesmo?

Megan ameaça empurrá-lo do muro, fazendo ele se apoiar com as duas mãos.

— Acho que a mamãe desconfia. — Ela devolve a atenção pra mim e dá de ombros. — Talvez no fundo ela saiba e só esteja esperando eu falar.

Por pior que seja a Rosana, não acho que ela reagiria mal.

— E, por que não fala?

— Talvez por causa da corte. — Me recorda e eu reviro os olhos.

— Você... — Tiro o cabelo que o vento joga no meu rosto. — Você sempre soube que gostava de meninas?

— No aniversário meu e da Maya de 14 anos... Aquele a fantasia. — Ela fala e eu assinto, indicando que me lembro. — Eu levei o Dylan atrás dos arbustos da nossa casa pra perder o BV. — Meu queixo cai com essa informação. — Mas, eu me dei conta de que parecia mil vezes mais interessante beijar uma das suas amigas do que ele.

— Só pra ficar claro, isso não significa que eu beijo mal. — Ele diz em defesa, sendo ignorado por mim e por ela.

— Eu vou perguntar, mas é por pura curiosidade. — Digo e ela concorda. — Já ficou com alguma menina?

— Já. — Assente sem demora. — Algumas.

— Alguém que eu conheço?

— Calma, princesa. — Dylan volta a falar. — Nem todo mundo saiu do armário ainda, Isla.

A ruiva bate nele mais algumas vezes e eu não julgo, Dylan parece ter reservado o dia para atazanar.

— Eu vou voltar pra aula. — Digo me levantando e me equilibrando para não cair. — Antes que o Cornélio pegue vocês e leve pra detenção.

Ele é um dos poucos monitores que não caem na chantagem ou nos subornos desses dois, deve ter pego gosto em mandá-los para lá.

Apesar do fiasco que foi o baile por causa do incidente na torre do sino, o Willow consegui dinheiro o suficiente para iniciar os reparos. Está uma barulheira por causa da reforma e eu, uma desventurada, escolhi uma péssima hora para visita-los.

Falei com uma loja de roupas de festa não tem uns vinte minutos, marquei um dia e um horário com eles, que virão até o orfanato.
A Sra. Misty insistiu que fosse assim, porque seria muito difícil dar conta de todas as crianças numa loja do shopping ou até mesmo na cidade.

Harry está ao meu lado, sentado no sofá e nós estamos em um dos cômodos da mansão, assistido o meu irmão e a Lou jogarem partidas de xadrez, no centro de um tapete da cor vinho.

Não tem muita coisa por aqui. Tem duas estantes com livros educacionais, um sofá e dois vasos com plantas altas na janela. Sem mencionar os outros guardas parados na entrada, tão quietos que parecem fazer parte da mobília.

— Santa jujuba! — Louisa comemora, surpresa, empolgada, eufórica.

— Perdeu de novo, Fred? — Provoco, com os olhos fixos no espelho pequeno que eu carrego na bolsa, delimitando o batom marsala nos meus lábios com o dedo indicador.

— Foi pura sorte.

— Minha nossa, eu devo estar com muita sorte hoje! — Lou comenta, rindo baixinho.

— Engraçadinha. — Pelo canto do olho eu consigo ver ele fazer uma careta.

— Não pode ficar bravo comigo por ganhar de você.

— Eu não estou bravo com você.

— Ele está bravo com ele mesmo. — O irrito outra vez, devolvendo o espelho para dentro da minha bolsa.

— O assunto está aqui! — Fred aponta para ele e para a Lou várias vezes. — Se fosse no videogame você já teria desistido.

— Eu nem sei jogar videogame. — Ela explica. — Nem temos isso aqui.

— E computador?

— Temos três. — Lou tira uma fita amarela do bolso do seu vestido e prende o cabelo. — Mas usamos para estudos, pesquisas.

— E televisão?

— Assistimos algumas horas antes do toque de recolher. Mas não tem passado coisas legais nos canais abertos. É muita coisa triste o tempo todo. — Ela começa a ajudar o Fred arrumar as peças no tabuleiro. — Alias, assistimos as reportagens sobre o que aconteceu com a Isla e o sino. Acho que apareci por uns dois segundos e meio. — Ela sorri tímida. — Eu quis virar um avestruz e enfiar a minha cabeça em um buraco. Nem imagino o que é as pessoas ficarem olhando para vocês o tempo todo. — Direciona os olhos para mim.

— É normal. — Fred diz com uma certa indiferença ao assunto. — Só é um saco quando falam coisas ruins sobre você.

— É. — Lou assente. — Acho que as pessoas não deveriam acreditar em tudo o que sai na internet ou na televisão. Eu tenho um amigo, a Isla conheceu ele, o Jack, lembra?

Ah, se lembro. Faço que sim.

— Ele veio aqui outro dia, a gente falou sobre o "Transcender". Na filosofia isso significa que você nunca vai conhecer algo completamente, por inteiro. Imagina uma pessoa, que é composta por um montão de coisa e eu não tô falando só da biologia. — Ela lembra de respirar. — É feio resumir uma pessoa a uma atitude, especialmente atitudes ruins, porque essa pessoa não é só aquilo e enquanto estiver vivinha da silva, ela vai estar exposta a mudanças e vai poder mudar também.

— É uma bela maneira de enxergar. — Harry a elogia.

— Você e o Jack ficam conservando sobre essas coisas? — Fred questiona confuso.

— Aham. — Ela assente alargando o sorriso. — Nós conversamos muito, sobre tudo! E ele me ensina um monte de coisa. A gente tem um piano velho lá no sótão, ele tá só o pó, acho que até tem cupim, mas tá funcionando. — Lou ri. — Jack estava me ensinando a tocar.

— Ele toca piano? — O meu tom de voz sai mais surpreso do que eu esperava.

— O melhor pianista que eu já vi!

— Beethoven tá chorando no tumulo. — Fred resmunga.

— Eu disse que o Jack é o melhor pianista que "eu já vi". — Ela rebate. — Posso ter assistido o Beethoven, mas não o vi de carne e osso, nem ia poder.

— Até porque já não deve ter mais ossos direito. — Fred brinca e ela gargalha alto.

Há um tempo eu não vejo meu irmão se sentir tão a vontade com alguém, o sorriso dele cresce por causa da menina risonha a sua frente e Fred não costuma sorrir muito.

— Eles parecem estar se dando bem. — Comento com o Harry.

— A garota é muito esperta. — Ele ri. — Lembra um pouco a senhorita.

Eu não acredito nisso. Louisa é otimista, detalhista e sensível e eu costumo ser bem grotesca, o suficiente para saber disso e dar a mínima.

— Mesmo? — Eu preciso perguntar, isso é estranho. Harry assente. — Como eu era?

— A senhorita era mais... — Ele ri e pensa muito antes de falar. — Teimosa. Muitas vezes parecia um adulto falando. — Indica com o queixo, olhando para a Lou. — Lembro de longas conversas da senhorita com seu pai.

— Longas?

— Enormes. — Ele me empurra levemente com o ombro.

— Do príncipe, você lembra?

Ele faz que não.

— Até onde eu sei, o príncipe só era visto por alguns dos empregados e eles precisavam ser extremamente sigilosos. Até faziam juras em nome da coroa.

— A Rosana deve lembrar. — Penso alto.

— Lady Rosana, possivelmente. — Ele assente.

— Você trabalha pra gente há tanto tempo. — Levo meus olhos aos orbes castanhos do homem. — Como conheceu o meu pai, ou a Rosana?

Harry sorri com a minha pergunta, embora pareça estranhar, afinal, deve ser a primeira vez que eu pergunto algo sobre ele.

— Minha mãe foi uma camareira do castelo. — Ele conta, e eu não sabia disso, não mesmo. — Ela serviu por anos a família real e eu costumava ficar assistindo o treinamento da guarda.

Ele tira do bolso um chaveiro, com o símbolo de uma fênix. É o brasão do reino, o brasão que os guardas costumam usar em seus trajes.

— Queria fazer parte?

— Não só queria, como quase fiz. — Diz alargando o sorriso nostálgico. — Participei dos treinamentos e de uma seleção.

— O que aconteceu?

Harry pesa a respiração, encarando a palma das mãos.

— Minha mãe adoeceu e eu precisei procurar um emprego pra conseguir pagar o tratamento que era muito caro naquela época. Ela faleceu meses depois e eu não sei... Não pareceu ser certo voltar.

— Nossa, eu sinto muito. — Isso é triste, talvez eu devesse ter ficado quieta. Não deve ser bom lembrar dessas coisas.

— Tudo bem. — Ele curva os lábios, guardando as chaves no bolso. — Nessa época eu conheci o seu pai, ele tinha acabado de assumir o cargo de conselheiro e me contratou. E, honestamente, milady?

— Hum?

— Tem sido uma honra. Trabalhar para a família Grant deve ser mais emocionante do que estar na guarda. — Brinca rindo do próprio comentário. — Ainda mais com a senhorita por perto.

— Levarei isso como um elogio, Harry. — Sou incapaz de conter um sorriso.

O que é escuro deixa de ser, quando é alumiado por pontos de luz, como vagalumes sobrevoando o meu rosto numa dança.

Tic. Tac. Tic. Tac.

Tudo fica claro de modo súbito, uma claridade de arder os olhos.
São lâmpadas, lâmpadas incandescentes, tostando as asas das mariposas mortas, presas dentro delas.

Fecho os meus olhos e os abro devagar. Minha visão turva dificulta um pouco as coisas.

Estou em um quarto de hospital, usando um vestido branco, sem detalhes.

Tic. Tac. Tic. Tac. Ainda ouço o relógio de parede.

Pressiono os dedos dos meus pés descalços, tentando sentir algo além da dormência entre eles, antes que ela se estenda para toda a minha perna.

Olho para a porta a minha frente e me aproximo devagar. Andar está difícil, a perna empedrou pela dormência.
Me esforço, luto contra os meus músculos, os forço a se mexerem, nem que isso signifique esfarela-los.

Tento espiar pela pequena janela, vendo um corredor branco e deserto.
Giro a maçaneta devagar, abrindo a porta e me rastejando para fora do quarto.

O Tic tac do relógio vai ficando distante, até que eu não posso mais ouvi-lo.

Não ouço nada agora.

E então, sirenes. Muitas sirenes, num estrondo ensurdecedor. Meus ouvidos doem, minha cabeça dói.

As luzes do corredor vão se apagando uma por uma e eu em puro desespero, começo a correr com todas as forças que me cabem, o mais depressa que consigo.

Não me importo em virar migalhas.
Não me importo. Mas não é o bastante.

As luzes apagam e tudo fica escuro e silente outra vez. Posso ouvir a minha respiração pesada, difícil e o as batidas do meu coração aceleradas. Fecho os olhos com força, os esfrego com os dedos. Nada. Não posso ver.

Uma brisa gelada percorre o meu corpo me fazendo arrepiar e os meus olhos se arregalam com a mudança brusca de cenário.

Agora eu estou numa montanha, onde se pode ver perfeitamente o castelo real de Verena, a expansão da cidade de Serinna, das arquiteturas mais antigas, até as das mais atuais.

Olho para baixo, pessoas correm na minha direção. Elas estão gritando algo, eu não consigo ouvir. Eu não consigo entender.

Olho para o horizonte novamente e agora tudo está em chamas. O castelo, a cidade e as árvores.

Sangue. Há sangue em minhas mãos e o cheiro de ferrugem invade as minhas narinas.

— Princesa!

— Por favor, princesa!

— Nos ajude!

As pessoas estão morrendo, sangrando e pedindo por ajuda, mas eu não posso fazer nada.

Estou amarrada em um trono, ornamentado por cobras que mordem os meus pulsos e me prendem nele. Eu sou parte delas. Eu sou parte dele.

Eu nem sei o que dizer, só que esse capítulo tá com 6 mil palavras, eu acho isso legal, porque eu também amo capítulo longo, gosto de terminar redondinho, sabe? Enfim..

Gostaram do capítulo?

O quê acharam desses sonhos/pesadelos? Significam alguma coisa?

Isla precisa de ajuda, sim ou claro?

O quê acharam sobre o que ela recebeu do fantasma?

Por que o fantasma não fala de uma vez o que ele quer?

Alguma teoria?


Postando mais tarde porque capítulos longos exigem muito de mim pra revisar, e tem muita coisa que eu não gostei tanto assim e deixei passar porque senão não tem capítulozinho. (:

Eisto. Naynay vai indo e ama vocês. Beijocas com pipocas!

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