16 - Um corvo não arranca o olho de outro corvo

É bizarro como qualquer coisa por aqui se assemelha a uma grande cena de crime. E, faz sentido, porque sinos não caem do nada.

Embora eu só tenha dado conta da seriedade do incidente no segundo em que abri os meus olhos, depois de quase ter os meus tímpanos estourados.

Bom, o sino caiu, chamou a atenção de todo mundo e a atração principal se tornou eu, quase sendo esmagada.
Todo o perímetro ficou isolado para investigação, rendendo um alvoroço na imprensa, possíveis manchetes para o dia seguinte, vans brancas, carros pretos, muito café, cobertores quentes e detetives contratados pelo rei, me fazendo mais perguntas do que eu sabia responder.

Só ralei o braço quando cai no chão, e a Harper está bem, intacta. Preciso agradecer a loirinha e talvez me desculpar por não a escutar. Ela aceitou entrar nessa empreitada maluca mesmo sendo medrosa para muita coisa.

— E aí? — Harper pergunta, atrás de uma ambulância.

— O detetive Baker pegou as fotos e o meu celular. — Conto num suspiro que evidencia a minha frustração. — Eles acham que podem rastrear quem mandou as mensagens.

Ela assente.

— Graças a Deus não aconteceu o pior. — Harper diz olhando fixamente para o chão. — Por um segundo eu pensei que você ia...

— Eu estou bem. — a interrompo, me sentando do lado dela. — Eu deveria ter ouvido você, foi tudo armado. — Ajeito o cobertor em volta de mim. — Você foi rápida me empurrando.

— Isla... — Ela sussurra, levando os olhos aos meus. — Não fui eu quem te empurrou.

— Como assim? — Desmancho o meu sorriso no mesmo instante.

— Tinha mais alguém. — Cochicha, ainda parece assustada. — Eu gritei porque vi um vulto surgindo do nada e não porque vi o sino caindo. Eu não tinha como ver, tava escuro.

— Você viu quem era? — Engulo em seco, e ela somente nega com a cabeça.

— Não deu tempo, foi rápido demais.

— Harp... — Molho os lábios, me esforçando para falar o mais baixo que posso. — Tá me dizendo que um fantasma, o super-homem, a mulher maravilha ou o diabo que seja, me salvou?!

Ela primeiro dá de ombros e faz que sim com a cabeça.

— Por que me salvaria se a intenção era me esmagar como um inseto?

— Eu não sei. — Beberica o café em suas mãos.

— Parando pra pensar, é mais fácil dar um tiro no meio da testa de alguém do que soltar um sino de cem quilos do topo de uma torre. — Penso em voz alta, encarando as luzinhas das sirenes dos carros piscando.

— Talvez tivesse mais alguém ou a intensão era só dar um susto.

— E, por que se dariam a esse trabalho?

— Harper... — Rosana surge entre as portas abertas de uma van. Colocando um sobretudo vermelho escuro por cima do vestido dourado. — O detetive Baker quer falar com você.

Harp cochicha algo como "Eu vejo você depois" e some, escoltada pelos guardas.

Puta merda, a mãe dela deve estar uma fera com ela e comigo.

— Como é que você pôde agir de maneira tão imprudente?! — Rosana ralha com a respiração pesada, é fácil de reparar.

Ela está rígida, empalidecida e parada de pé na minha frente com os braços cruzados.
Não preciso ser um gênio para saber que vou ouvir uma palestra sobre o meu descuido.

— Uma noite, Isla! — Vocifera áspera. — Uma noite sem os guardas seguindo você e você apronta uma besteira dessas! — Encaro as fissuras da terra no chão. Seis. Posso ver seis delas. — Poderia estar morta! Poderia ter sido levada! E, o pior? Enfiou a Harper nessa loucura!

Eu não ligo sofrer alguns arranhões, mas verdade seja dita, eu me sentiria péssima se algo acontecesse com a Harper, especialmente por minha causa. Não gosto nem de pensar nisso.

— Eu tô bem! — Grito de volta, erguendo a minha cabeça. — Eu sei. — Bufo, me livrando do cobertor. — Eu quase virei patê, mas eu estou bem.

— Você arriscou muito. — A voz dela sai cortante. — Tem noção da gravidade do que houve aqui? — Aponta para a torre.

— Por que não me conta? — Sugiro, um tanto desesperada. — Aposto que já sabe que me mandaram uma mensagem dizendo que você está escondendo alguma coisa. Por que alguém me mandaria algo assim?

Ela desvia o olhar incrédula.

— Está escondendo alguma coisa, Rosana? — Pergunto de uma vez, preciso acabar com isso. — Por que fotos suas com a minha mãe ou a rainh...

— Para te transformar em um alvo fácil! — Me interrompe, devolvendo o olhar ao meu, com fúria. — Irão dizer qualquer coisa, inventar qualquer coisa para atrair você! E adivinha? Você foi tola e caiu!

— Será mesmo? — Ponho em questão, arqueando o olhar. — Porquê das pessoas naquela fotografia, só você está viva!

— E não deveria ser um bom motivo para confiar em mim? — Ela cruza os braços e mal pisca.

Ou o motivo perfeito para desconfiar.

Balanço a cabeça negativamente, comprimindo os meus lábios numa linha reta.

— O que realmente está acontecendo? — Minha voz falha com a pergunta.

A ruiva fecha os olhos, respirando fundo, e leva alguns instantes para me encarar outra vez.

— Já parou para pensar, por um segundo, que podem querer atacá-la para atingir o rei Albert? Você será a...

— Tudo seria resolvido se eu não fosse! — Atropelo minhas palavras, num desespero absoluto, com uma raiva evidente entre as sílabas.

E, ela não reage, não muda a expressão e o olhar indiferente a situação, Rosana tampouco continua no assunto.

— Pedi para o Harry levar as gêmeas e o seu irmão para casa. — Diz aquecendo as mãos nos bolsos do sobretudo. — Estão esperando você no carro. Simon? — Chama o guarda parado com alguns metros de distância. — Vá, a noite acabou. — E, por fim, me dá as costas.

Acordei meio zonza. Para ser bem honesta, não sei como consegui dormir depois da confusão da noite passada.

A questão é que, em algum momento eu adormeci e acordei quase na hora no almoço.
Levantei tropeçando nos meus próprios pés, vestindo o meu robe e correndo descalça na direção da escadaria.

O ataque a Isla Grant durante um evento beneficente para crianças órfãs nos deixa preocupados quanto a segurança dos membros da corte e da família real. — Ouço a televisão ligada na sala, desço mais um pouco a escada e consigo ver a Lenna, com os olhos fixos na reportagem.

Paro, me apoio no corrimão e me sento sobre o degrau atapetado.

Há dez anos, o avião em que a Rainha Amelie e o conselheiro Mor, Frederick I estavam, explodiu minutos depois de decolar. Na época, especialistas afirmaram ter sido causado por defeito em um dos motores, mas semanas depois do ocorrido, o rei Albert nos comunicou ter mandado o seu filho para fora do país. Lembrando, que ninguém conhece a identidade do príncipe herdeiro desde o seu nascimento. — Um homem completa a fala da mulher.

E, na noite de ontem, Isla Grant sofreu um atentado. Será que Verena vem enfrentando esse tempo todo ataques terroristas?

Talvez as teorias conspiratórias não sejam tão conspiratórias assim.

Zonza, eu ainda estou meio zonza.

— Milady. — Lenna desliga o mais depressa possível, notando a minha presença. — Eu não a vi.

Esfrego o meu rosto com as mãos espalmadas, estou com uma dor de cabeça terrível.

— Eu dormi demais e... — Falo, minha garganta está bem seca. — Nem ouvi o despertador...Eu...

— A sua madrasta me pediu para desligar, senhorita.

Arregalo os meus olhos.

— Ela o quê?

— Sim. — Assente, chegando mais perto, me olhando pelas brechas do corrimão. — Ela disse que seria melhor se a senhorita ficasse em casa por uns dias.

— Ela disse "Por uns dias"? Onde está a minha avó?

— Saiu, senhorita, com a Lady Rosana.

Que dia é hoje? Ontem fomos ao evento no Willow, então foi um sábado. Certo, estou vivendo num domingo atípico. Cadê todo mundo?

— E a Megan, Maya? Onde está o meu irmão?

— Saíram com elas.

— Aonde foram?

— Na sua agenda estava marcado um almoço com um dos conselheiros do rei. Podem ter ido lá.

Em poucos movimentos me coloco de pé e termino de descer as escadas.

— Gostaria de beber ou comer alguma coisa? — Lenna pergunta me seguindo.

— Acho que só café e um remédio para enxaqueca. — Elevo uma mão até a minha testa.

Minha cabeça lateja. Uma dor forte, aguda e insistente.

Antes de virar o corredor para ir até a cozinha pegar um copo d'água, vejo mais dois homens com o uniforme da guarda real, parados na entrada da sala de estar.

— O que eles estão fazendo aqui? — Cochicho para Lenna.

— São seus novos guardas, milady. — Conta. Escoro a cabeça na parece ao receber mais essa informação. — Ordens do rei.

— Cadê o Simon?

— Ele acompanhou o Harry quando sua madrasta, sua avó e seus irmãos saíram hoje pela manhã.

Mais guardas. Mais homens me seguindo. Mais homens me seguindo até a droga do banheiro feminino.

Será que não tem mulheres na guarda real? Que porcaria!

— Isso tá fora de controle! — Esbravejo. — Eu preciso falar com a Harper, com o rei, mas eu não posso, sabe por quê? Porque o detetive Baker pegou a droga do meu celular! Eu tinha que estudar na casa da Harper hoje, com a Emma e o Dylan para uma prova de álgebra... E, esse nem é o maior dos meus problemas! — Deslizo as costas pela parede e me sento no chão. Abraço as minhas pernas e encosto a testa nos meus joelhos. — Deveria ser...

Dor de cabeça. Dor de cabeça.

Ataques terroristas? Era só o que me faltava. Como essas coisas podem existir ainda? Como podem existir aqui? Por que atacariam o tio Albert? A família real? A minha família? E, por que está acontecendo justo comigo? Por que aquelas fotos? O que elas queriam dizer?

— Inferno, que hospício! — Praguejo entredentes.

Eu devia ter mentido, sou boa para um cacete nisso. Devia não ter contado para o detetive. Eu estaria com o meu celular, e com um pouco de sorte menos guardas atrás de mim.

— Milady... — Lenna agacha. — Por que a senhorita não sobe, toma um banho? Eu vou preparar algo. — A mão dela toca a minha. — Deveria descansar.

Levanto o rosto para fitá-la. Não sei se ela me acha muito maluca ou muito dramática. Quem sabe, ambas.

— Você é bem legal, Lenna. — Apoio a cabeça na parede, enchendo os meus pulmões de ar.

Ela se põe de pé e me ajuda a levantar.
Preciso reagir, preciso fazer alguma coisa, qualquer coisa. Descobrir uma maneira de conseguir o controle da minha vida, já que ninguém me conta nada por aqui.

Comprei um celular pela internet.

Certo. Certo. Certo. Descabelada, de pijama às uma da tarde, tomando sorvete de chocomenta na frente do notebook não é exatamente a ideia que tinha de obter o controle da minha vida, mas conseguir um celular enquanto o meu é fuçado por pessoas que eu nunca vi na vida, é um começo.

Sabe aquele ditado "mente vazia é a oficina do diabo"? Eu ouço a vovó falar algumas vezes para a Megan, as vezes para a própria filha dela. Me fazendo concluir que se eu estivesse ocupando a minha com uma prova de álgebra por exemplo, não estaria lendo sobre o ocorrido na noite passada, ou o quanto a opinião alheia caminha numa linha tênue entre "Pobre Isla Grant" e "Mereceu, uma pena não ter morrido".

A parte mais cômica é que eu concordo com as duas afirmações.

Pesquisei sobre o acidente de avião. Tem inúmeras fotos no google dos destroços e do funeral, muitas inclusive, em que eu apareço.
Engraçado porque eu nem lembro disso. O google está contando para mim uma história que eu vivi.

Dou mais algumas colheradas no sorvete e abro a aba das redes sociais.

E, se eu desativar todas elas? Não vão poder me marcar em mais nada. Eu mereço essa pausa, até porque nem sou quem está sempre online, Rosana paga assessores.

Eu sempre acho que tem algo muito errado com o meu feed. Ele é tão organizado, não parece nada comigo, nem com a minha vida.

Mais algumas colheradas no sorvete. Volto a minha atenção para tela do computador e me espanto ao perceber que uma pequena caixa de mensagens foi aberta.

É anônimo de novo. O fantasma que me empurrou? Ou quem deu um jeito de soltar um sino do topo da torre?

O sorvete custa descer.

"Biblioteca pública de Serinna.
Estante 44.
Prateleira B
Monarchia, Dante Alieghieri"

Isso foi enviado há uns dois minutos. Está claro que é um endereço e que alguém deseja que eu vá até lá.

Para que? Tentar me esmagar com uma prateleira?

Eu não respondo, e com os olhos fincados da tela do computador, um arrepio corre pela minha espinha quando o vejo digitar.

"Saberá quem eu sou no tempo certo, mas saiba que eu não irei feri-la"

Engulo em seco, deixando o pote de sorvete de lado e digito:

"O que quer que eu saiba? Por que não me conta de uma vez?"

Espero um, dois, três minutos e nada.

Ele não vai mais me responder, pude concluir depois de ficar quase meia hora lendo e relendo as mesmas mensagens.

A biblioteca pública de Serinna é um lugar lotado de gente, e na luz do dia, deve ser difícil sumir com alguém. Comigo.
Em contrapartida, meu rosto é conhecido demais, quais são as chances de eu pôr os meus pés na recepção e ser barrada pelas perguntas curiosas das pessoas ou por outro soco?

Os guardas lá embaixo não vão me deixar sair e se eu conseguir, não vão me deixar ir sozinha.

Paro de andar pelos cantos do meu quarto e encaro a minha varanda aberta.

Será?

Não.

Aos domingos a biblioteca fecha por volta das três horas da tarde. Mesmo que eu consiga, como vou chegar até lá?

Um táxi? Conseguiria chamar um pelo computador, não precisaria do celular.

Acho que pessoas do Belleville normalmente não andam de táxi, elas possuem seus motoristas. No mais, um carro amarelo em frente ao condomínio chamaria a atenção.

Por outro lado, eu nunca andei de trem. Lembro disso no minuto que os meus olhos param sobre a pintura na minha parede, de uma estação ferroviária construída pelos meus parentes mortos.

Abro as portas de vidro da sacada e me inclinando no parapeito, tento calcular a altura até o chão. Tem arbustos dos dois lados, além de ornamentos em que eu posso me segurar, mas um escorregão e já era.

Lençóis! Vou precisar de alguns! E, vou precisar ser rápida. Rosana saiu, não sei quanto tempo eu tenho até ela voltar.
Retorno para o meu quarto, tranco a porta, tiro o edredom da minha cama e depois as cobertas.
A parte mais difícil é dar um nó na grade da varanda. Dou o máximo de nós que eu consegui.

Está frio lá fora.

Vou até o meu closet, visto um suéter branco, coloco uma meia-calça preta, um shorts-saia bege e pego um casaco marrom comprido.

Claro, não poderia esquecer das botas. Dessa vez, optei por um coturno, nada de salto e correr o risco de torcer o pé na hora da fuga.
Bolsa. Vou precisar!
Escolho uma não muito grande, mas nem tão pequena.
Anoto a mensagem em um papel, pego carteira, dinheiro e um spray de pimenta que eu ganhei do Harry.

Caminho até a varanda e respiro fundo antes de começar a descer.
Harper iria rir disso, além me lembrar que não sou tão atlética para resolver fazer essas macaquices.

Me apoio nos arbustos, nos arabescos e nos vãos das paredes, tudo isso usando o lençol de apoio.
Quando eu percebo não estar longe do chão, solto o lençol.
Felizmente, eu apenas caio por me desequilibrar.

Corro para uma das saídas do condomínio — a segurança do Belleville se preocupa com a entrada das pessoas, mas não com a saída, sem muito esforço, passo depressa, sem nem olhar no rosto do porteiro.

É curioso pensar que eu nunca andei a pé na rua da minha própria casa. Meus pés nunca tocaram o concreto da calçada. A paisagem é diferente do vidro escuro da limusine.

Ando abraçada com a alça da bolsa. Sei que há uma estação de trem a alguns metros, Harry costuma passar na frente quando está me levando ao colégio.

Levo quinze minutos para chegar. Tentei refazer o caminho na minha mente, mas ela está tão atordoada e esburacada que só consegui graças as placas nas ruas.

— Quero uma passagem, por favor. — Peço para o homem na bilheteria, dando uma nota qualquer que tirei da minha bolsa.

O atendente, comendo uma rosquinha caramelizada, arregala os olhos ao vê-la e a ergue até o teto da cabine, para ver alguma coisa na luz.

Ele dá de ombros e começa a mexer na caixa registradora.

— Eu conheço você? — Pergunta, tirando os trocados. Cacete. Cacete.

— Eu acho que não. — Sorrio forçada, ajeitando a touca e afinando a minha voz.

— Não, eu conheço você sim! — Ele sorri mexendo no seu boné. — Parece com aquela modelo, qual é o nome dela mesmo...?

— Dizem que eu sou parecida com um monte de gente. — Solto uma risada nervosa.

Ele assente devagar com os olhos estreitos, mas sorrindo.

— Você não deveria andar com tanto dinheiro, moça. — Me passa muitas moedas douradas. — Pode ser perigoso. — E, então um bilhete de trem.

Não digo mais nada, nem posso. Apenas agradeço e saio da fila enorme, indo até estação.

Preciso avisar o tio Albert que não é nem um pouco prático ler os mapas das rotas. Gastei um tempão para entender o trem em que eu embarcar.

Plataforma catorze.

Nunca estive dentro de um trem antes. Ele não é organizado como eu pensei que era, mas é enorme. Me sinto o próprio Harry Potter.

Também não está tão cheio, e ainda assim eu abaixo a minha cabeça passando pelo corredor, para não correr o risco de ser reconhecida.

A senhora que sentou ao meu lado, cheira a baunilha e a ração para gatos. E, pela quantidade de pelos em suas vestes, chuto que ela possui pelo menos três.
Acho que está dormindo, é isso ou a sua respiração normal é barulhenta e pesada feito roncos.

Posso ver uma garotinha de chiquinhas, sentada com um homem a dois bancos de distância de onde estou. Pode ser que seja o pai dela, são parecidos.
Eles estão conversando e rindo de alguma coisa. Ela tem uma gargalhada chamativa, engraçada, e parece que ele a faz rir repetidas vezes justamente por causa disso, enquanto brinca com os pompons dos amarrios que prendem o cabelo dela.

Os trilhos do trem são barulhentos, ele em si é, mas eu gosto.
Gira depressa. É tudo muito rápido olhando de dentro dele. As coisas acontecendo do lado de fora, as pessoas, as paisagens, até mesmo a ordem das nuvens.


A biblioteca pública de Serinna tem o maior acervo do país, então eu realmente não estava esperando encontrar um lugar pequeno. Eu não encontrei, e é lindo.

Na escadaria principal, desce e sobe gente para todos os lados, e eu consegui passar sem ser barrada.

Não sei o porquê nunca pensei em vir até a biblioteca com as meninas, não tenho o hábito de ler ficção, no entanto eu começaria só para frequentar lugares como esses, de tetos milimetricamente detalhados.

A princípio, precisei atravessar a enorme recepção, com inúmeros assentos e sofás espalhados, e subir mais alguns degraus até o segundo andar.

Estante 44.

Todas as estantes estão bem espaçadas, um tanto distantes. Há algumas pessoas sentadas nas mesas entre elas, estudantes universitários, talvez.

Passo pela primeira estante, apressando o andar. Pela décima nona, e mais um pouco. Trigésima sexta e eu paraliso.

Paro, assim que avisto um rosto familiar.

As duas mãos enfeitadas por anéis, seguram um livro grande que ele folheia, parado de pé ao lado de uma pilastra, com fones de ouvidos, alheio ao mundo ao seu redor.

É ele. Tem que ser. Jack Ahren está me mandando essas mensagens, está brincando comigo. Ele é amigo da Emma, ela pode ter comentado os meus problemas com a Rosana. Isso faz sentido.

— Eu não acredito! — Digo entredentes para mim mesma, e avanço na direção do rapaz.

Ele ergue o rosto, e me encara confuso assim que percebe a minha aproximação.

— Isla...

— Então é você! — Barro seus comentários dando vários tapas no seu ombro.

— Eu o quê?

Várias cabeças se inclinam para olhar na nossa direção, e para não chamar mais atenção, eu o empurro para trás, na intenção de nos esconder entre as estantes.

— Você é doente?! — Dou mais um tapa. — Alguma espécie de psicopata? — Tento bater nele de novo.

— Será que dá pra parar com isso? — Pede segurando a minha mão, e eu a afasto.

— Por que está me mandando mensagens bizarras?!

Jack nega com a cabeça no mesmo segundo.

— Eu não estou! — Franze o olhar.

— Então, você estar aqui é pura coincidência?! — Cruzo os meus braços.

— Na verdade, você estar aqui é estranho! — Aponta para mim.

Ele leva a mão até o ombro onde eu bati primeiro e solta respiração.

— Você não quase morreu ontem? Onde estão seus... — Passa os olhos pelas redondezas e me encara dos pés à cabeça. — Você fugiu, não é? — E então sorri.

— Não, eu morri na noite passada e sou um fantasma. O fantasma do seu passado, você vai ser visitado por mais alguns nas próximas noites. — Reviro os meus olhos. — É, serio, Jack, se você tem alguma coisa a ver com...

— Eu juro de pés juntos. — Junta os pés e evidencia as mãos abertas. — Não tenho ideia do que você tá falando!

— E, eu deveria acreditar?

— Por que eu mandaria mensagens bizarras para você?

— Eu sei lá. — Dou de ombros. — Ghostface costumava ligar para as vítimas antes de degolar elas. Você está em todo o lugar, sabe o que isso é? Muito suspeito!

— Não, o nome disso é onipresença, uma habilidade que eu não tenho. — Guarda o seu livro na prateleira.

Jack Ahren só pode estar de brincadeira. Ele e o universo.

— E, que mensagens são essas? — Pergunta.

Fungo em frustração e tomo o meu caminho de volta até a estante 44, e para o meu desespero, o intrometido me segue.

— A mensagem dizia estante B. — Encaro a prateleira. — Monarchia. — Passo as pontas dos meus dedos pela lombada de várias obras, até encontrar e tirar o livro.

É bem antigo, a capa dura é velha, está um pouco empoeirado, assim como as folhas que estão amareladas.

— Está recebendo mensagens de indicações de livros? Por que isso seria...

Folheio o livro, várias e várias vezes, e paro sobre uma foto escondida no meio dele. Uma cópia de uma das fotos que estavam dentro do envelope.

— Mas, essas são...

— É, a Lady Rosana com a minha mãe e a rainha. — Respiro fundo, olhando atrás, onde há algo escrito.

"A rua dos pássaros, 1022, Serinna"

— Isso é um lugar? — Indago, lendo e relendo o garrancho.

— Talvez esse da foto. — Ele pega da minha mão sem autorização nenhuma e evidencia o casarão atrás delas.

Torno a olhar para as páginas no livro, todo em latim.
Há algumas palavras grifadas, além de algo escrito à mão no canto da página.

"Corvus oculum corvi non eruit"

Ótimo, agora vou ter que aprender latim? — Rio com escárnio.

— Isso significa "Um corvo não arranca o olho de outro corvo". — Jack comenta, me devolvendo a foto, apontando para o que está escrito.

Quem diria, a ratazana enxerida sendo útil.

— É uma expressão antiga, quer dizer que duas pessoas não vão se machucar enquanto for conveniente uma para a outra. — Explica.

— Sabe latim? — Eu não sei esconder o estranhamento.

— Um pouco, muito pouco. — Resmoneia, coçando a testa, levando as íris até as minhas.

— E, como esse pouco vai ser útil agora?

— Olha em volta, estamos numa biblioteca, Sherlock! — Ele indica olhando ao redor. — Dicionário é que não vai faltar aqui.

"A rua dos pássaros" e essa frase... — Esvazio os meus pulmões. — Será que querem que eu saiba de alguma coisa? Alguma espécie de charada? Onde será que isso fica? — Questiono com os olhos fixos no endereço.

Jack desliza seu celular para fora do bolso da calça, e eu o assisto digitar rápido numa aba do google.

— Internato religioso Brígida. — Conta, me mostrando a tela com a localização. — Pode apenas esclarecer o que está acontecendo?

Ele está com as sobrancelhas arqueadas, esperando que eu responda. Não sei se devo.

Não gosto dele e não confio nele, mas Jack tem um raciocínio bem rápido para as coisas e pode ser útil.

— Estou esperando...— Ele cantarola.

— E eu estou pensando se é uma escolha inteligente.

— Me contar o que está acontecendo ou não?

Balanço a cabeça em confirmação e o assisto revirar as íris azuladas.

— O quê? — Inquiro. — Você é bem suspeito. Conseguiu o meu número de algum jeito e me ligou depois de invadir o condomínio onde eu moro! Parece o tipo de coisa que o fantasma faria se...

— "Fantasma"?

— Ainda não tenho o nome da pessoa por trás dessas mensagens misteriosas... E, honestamente, acho que essa pessoa tem algum problema. Se queria que eu fosse no internato Brígida por que não me mandou logo o endereço?

— Tem muita palavra grifada nessa página. — Ele palpita se referindo ao livro. — Pode ser importante.

Não posso levar o livro pra casa.

— Bom, meu caro Watson. — Rebato com ironia, colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Eu não tenho um cadastro na biblioteca e vão me reconhecer no segundo que eu mostrar o meu rostinho na recepção!

Jack rola os olhos como se tivesse a solução e rasga a página com as marcações. Puta merda!

— O que... — Fico boquiaberta. — Por que você rasgou?! Era só ter tirado uma foto!

Ele devolve o livro para a prateleira.

— Isso é dano ao patrimônio público, sabia?

Jack não diz nada, apenas guarda a folha em um dos bolsos.

— Qual é o seu problema? Um dia parece um padre, defensor dos fracos e oprimidos e no outro parece algum aspirante a membro da máfia!

— Gosto de versatilidade. — Sorri com desdém.

— Eu tô falando sério! Você é bipolar ou alguma coisa do tipo?

— Alguma coisa do tipo. — Também guarda o celular do bolso, de onde tirou algumas chaves. — Vamos, eu estou de moto, te dou uma carona.

Não, não, não, não, não.

— E, quem disse que você vai comigo?

— Eu sei que sabe se cuidar sozinha, do contrário não teria chego aqui inteira, mas eu preciso te lembrar que quase virou geleia ontem?

Cruzo os meus braços.

— No mais, o que vai fazer quando chegar lá? Mostrar a foto e dizer que alguém deixou isso para você junto com umas palavras em latim?

— Não era isso o que eu tinha em mente. — Resmungo.

— Mesmo assim, vai ser reconhecida antes de abrir a boca. — Relembra, levando o dedo indicador até a ponta do meu nariz. — Eu, por outro lado... — Bato na mão dele a afastando do meu rosto. — Sou um completo desconhecido. — Ele tem bons argumentos. — Assuma, precisa de mim.

— Eu não vou subir na sua moto! — Me nego, sem nem pensar duas vezes. — E, se você for um maluco dirigindo? E, se for um maluco? Você parece maluco!

— Prometo ir a vinte por hora se isso te deixar mais calma. — Evidência as mãos abertas.

Eu vou me arrepender disso. Eu sei que vou me arrepender disso.


Jack me ajudou a colocar o capacete, pesado por sinal, e também me ajudou a subir na moto, levando em consideração de que estava evidente que eu não fazia ideia de como fazer aquilo.

Montar um cavalo parece ser incrivelmente mais simples.

— Segura firme. — Pede, depois de ajeitar o próprio capacete.

— Por que algo me diz que você está gostando disso? — Resmoneio, passando os braços ao redor do corpo dele.

— O que me entregou? — Há uma dose nítida de sarcasmo no seu tom de voz, e algo me diz que ele está sorrindo daquele jeito irritante.

Jack dá partida e nos primeiros minutos, sou forçada a segurá-lo com firmeza, quando qualquer curva feita parecia nos pôr no chão.

A ventania bate contra o meu corpo, como se eu a desafiasse, semelhante estar andando muito rápido a cavalo. A sensação é de estar exposta, de ser volátil.

Dentro de um carro ou de um trem, tenho janelas e portas barrando o que está do lado de fora. É diferente.

O cenário borra em um caleidoscópio de cores, as ruas ganham uma nova vida enquanto passamos por elas.

O intrometido manteve sua promessa, ele não acelerou demais, acho que por isso levamos mais tempo até chegarmos.

Após mais alguns minutos ele estaciona  no acostamento de uma construção antiga.
O lugar enriquece um cenário caricato, moldado pela arquitetura envelhecida em tons de marrom e cobre.
Uma casa enorme, velha, maltratada pelo passar dos anos.

Jack desliga a moto e eu desço dela. Desengonçada, mas desço.

— Muito bem. — Tiro o capacete. — Qual é o plano?

O observo tirar o capacete igualmente e apoia-lo nos guidões do veículo.

— Que plano? — Ele sai da moto, parece não me entender. Eu não entendo esse garoto.

— Você não tem um plano?

— Ah... — Ele umedece os lábios. — Eu entro, você fica aqui.

— O quê? — Nego com a cabeça. — De jeito nenhum, isso não vai funcionar!

— Não vai funcionar se você virar atração principal da vizinhança! — me entrega as chaves. — Vou ver o que descubro.

Reviro os olhos detestando ter que concordar com essa ideia estúpida.

Contudo, não me contenho em esperar parada do lado da moto, me aproximo do portão principal, ajeitando o meu cabelo que deve estar uma bagunça, e o observo passar pela entrada, indo até um homem sentado na recepção.

A rua tem cheiro de pano queimado, e eu não vi pássaro algum ainda.
Na frente do colégio Brígida há um cemitério em ruínas, como tudo por aqui, aparentemente.

Ouço o que parece ser os sinos de uma igreja tocar. Sinos que tocam e não caem.

Não sei que horas são, não tenho a menor percepção de tempo e andar sem um celular não facilita muito.
Jack ainda está conversando com o porteiro sobre sei lá o quê.
O aguardo sacudindo as chaves, mexendo os meus pés de um modo frenético, assistindo as árvores do outro lado da calçada, perderem as folhas dos galhos tortos com o soprar do vento.

Finalmente, um corvo. Ele pousa no muro do cemitério a minha frente, movendo a cabeça em gestos ágeis, procurando por algo, talvez.

Lola, a garotinha que divide o quarto com a Lou, me disse no dia em que fui visitar o Willow que o corvo simboliza morte, azar, mau presságio.

Não vi corvo algum na noite passada, e poderia ter servido de um bom aviso, mas não é como se eu fosse levar em conta também.

O cheiro de feno e madeira eram marcantes naquele lugar, mas não tão marcantes quanto o cheiro das crinas dos cavalos.

Naquele dia, um cavalo em especial, cheirava a uma combinação estranha de verbena e glicerina.

— Ele precisa de repouso absoluto até que consiga ficar de pé de novo. — Uma mulher bonita, disse ao lado do animal de pelo branco, deitado no chão.

— O Snow vai ficar bem, pai? — Perguntei baixinho, como se eu não quisesse ser ouvida.

— Nós esperamos que sim, querida. Ele é forte. Tenho certeza de que irá melhorar. — Meu pai enunciou, depois de acariciar o topo da minha cabeça, exibindo um sorriso gentil.

Me aproximo do Snow bem devagar, e ajeito o feno que forra o chão para me sentar próxima a ele.
Estendo a minha mão para acariciar a crina branquinha, podendo ver praticamente todo o meu reflexo nos olhos escuros e brilhantes do cavalo.

— Parece que você tem um outro Andaluz. — A voz do tio Albert ecoou pelo estábulo de repente.Vai precisar domar ele também?

Ele se aproxima de nós, usando um dos seus uniformes mega-pomposos de rei, como se estivesse voltando de alguma reunião importante.

— Domar? — Franzi a testa, erguendo o meu rosto para olhá-los. — Por que domar um cavalo?

— Seu pai resgatou esse. Cavalos são animais de espírito livre e não costumam obedecer se não forem domados. — Explicou escorando em um dos pilares de madeira. — Como uma certa garotinha que eu conheço.

Tio Albert piscou para mim, mas eu fechei a cara.

— Você me comparou a um cavalo?

A gargalhada genuína do meu pai é o que ouço em seguida.

— Na verdade, só o seu espirito. — Albert tenta consertar.

— Por que alguém iria querer me domar? — Rebati. — Ter um espírito livre é algo bom, não é pai? — Perguntei, mas ele não respondeu, todavia pareceu pensar. — Quando eu tiver idade, irei viajar, velejar e ganhar tantos troféus quanto você.

Eu parecia empolgada com a ideia. Parecia mesmo.

— Ei. — Sinto alguém tocar o meu ombro, me fazendo estremecer.

Pisco algumas vezes até recobrar os sentidos de onde estou ou o que estou fazendo.

Jack para bem na minha frente e me direciona um olhar confuso.

— Então? — Engulo em seco e questiono logo. — O que descobriu?

O garoto olha uma última vez para a construção do colégio, começando a andar na direção da sua moto.

— Parece que a sua mãe estudou aqui quando criança. — Conta, enquanto eu o sigo. — Sabia disso?

Faço que não com a cabeça.

— A vida dela é uma incógnita, tanto quanto a da Rosana. — Deixo escapar num suspiro. — Não dá pra achar muito sobre elas na Wikipédia.

Ele assente devagar e torna a falar:

— Ela vinha aqui com frequência, com a Lady Rosana e a Amelie, que na época não era rainha ainda.

Por que elas frequentariam esse lugar?

— E... — Ele respira fundo para falar, para de andar e me encara, travando a mandíbula. — Parece que aquele babaca do restaurante que agrediu você... Ele também estudou aqui.

Não sei esconder o quão estou confusa. Uma mera coincidência engraçada? Eu duvido.

— Tem certeza? — Pergunto franzindo as sobrancelhas. — Como... — Sacudo a cabeça. — Como você descobriu tudo isso?

— O porteiro gosta de falar, é a magia da fofoca. — Esclarece esfregando o próprio rosto com força. — O que pretende fazer?

— Eu sei lá. — Devolvo as chaves da moto. — Eu não tenho a menor vocação para investigação!

Quais são as chances do Devon ter conhecido a minha mãe ou até mesmo a rainha ou a Rosana? Ele parece ser um pouco mais novo do que elas, mas é possível, não é?

Assisto Jack subir na moto e se preparar para sairmos daqui, mas numa questão de milésimos de segundos, dois carros pretos com o brasão do reino surgem no fim da rua, vindo na nossa direção.

É a porcaria da guarda real.

— Mas que merda! — Reclamo em voz alta assim que percebo a guarda real. — Vamos sair daqui.

Monto na moto rapidamente, consigo fazer isso sem grandes problemas, talvez pelo desespero.

— O quê?

— Acelera! — Coloco o capacete. — Agora!

— Mas você disse...

— Esquece o que eu disse, só anda logo!

Meus braços envolvem sua cintura com firmeza assim que ele dá a partida.

Agora, o vento chicoteia meu rosto, e meu coração bate tão alto que parece sobrepor o som do motor.

Não sei exatamente o porquê estou fugindo, só sei que não quero e não vou mais facilitar.
Tio Albert teve a oportunidade de responder a pelo menos umas vinte mensagens minhas, e a Rosana, bom, teve mais de dez anos para ser transparente e honesta comigo quanto as suas intenções.

Não podem me tratar como um ser inanimado e sem consciência própria. Não posso permiti-los pensar isso de mim.

Será que a barra já está limpa?

Olho para trás e vejo os carros da guarda se aproximando.

— Jack, será que dá pra acelerar de verdade?! — Minha voz luta para ser ouvida.

Ele acelera e a estrada se estica diante de nós.
Minha respiração ofegante ecoa no interior do capacete, enquanto minhas unhas se cravam no tecido da jaqueta dele.

Um frio percorre pela minha espinha quando as ruas estreitas começam parecer trapézios labirínticos.

De repente, outro carro da guarda real surge à nossa frente, bloqueando nosso caminho. Meu coração pula uma batida quando Jack freia bruscamente, mas é tarde demais.

Tudo acontece em câmera lenta, como se o tempo estivesse suspenso; Nós somos lançados para frente, caindo sobre o asfalto duro e cortante.


É TRETAAAA VERENAAA!

Eu não digo é nada. Capítulo tá enorme, o que vocês acharam disso?

O quê acharam dele?

Tem alguma teoria? 🌚💜

Eu não vou prender ninguém nas notas finais, vou sumir porque oto na aula kkkkkk beijocas!

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