2 ⋆ O caminho sob o monte

Tínhamos uma jornada de quase uma hora pela frente. Conforme avançávamos, o pequeno aglomerado de casas onde havíamos estado ficava cada vez mais distante, tornando-se apenas uma miragem enquanto um infinito de neve branca tomava a paisagem. Ainda assim, cada passo que tomávamos parecia em vão, porque o horizonte adiante era sempre a mesma planície gelada e a estrela parecia cada vez mais longínqua. E estava frio, tão frio. Após muitos minutos andando, o assobiar do vento era a única coisa que enchia os ouvidos, e uma pergunta martelou em minha mente.

— Você acredita? — perguntei para Zavian, rasgando a quietude. Seus olhos se voltaram para mim, negros e profundos.

— Em que exatamente? — Ele indagou de volta, sorrindo com ternura.

Nisso tudo. Quero dizer, na lenda e... — parei um pouco, sentindo as palavras antes de continuar. — E que Lys a encontrou — emendei, desviando o olhar para observar minhas botas afundando na neve.

Por um instante, o silêncio caiu, e eu achei que Zavian não fosse responder quando ele finalmente disse: 

— Eu acho que o universo é muito grande para duvidarmos de qualquer coisa. — E deu um toquinho em meu ombro com o seu, me arrancando uma risadinha. Ele respirou fundo, parecendo também refletir sobre algo. — Me desculpe por falar aquilo no quarto mais cedo. Eu estava preocupado e exagerei. — Ele continuou, vapor gelado saindo de sua boca quando falava.

— Está tudo bem. — Eu o tranquilizei, tocando seus dedos levemente. — Estávamos ambos meio tensos. Além disso, eu não sei nem como te agradecer por vir até aqui comigo — confessei, sendo sincera de todo coração.

— Você não precisa me agradecer, Sel. Jamais. Tudo que peço é que me prometa uma coisa. — Ele parou de andar de repente, e eu também freei, atenta. Meu coração bateu mais forte quando os olhos de Zavian pousaram pesados nos meus. — Por favor, me prometa que vai parar e voltar quando for preciso.

— Zavian...

 Selene, por favor. — Ele implorou. — Estamos juntos nisso e eu não vou voltar sem você.

Respirando fundo, eu o encarei e pensei por um instante. Ele me esperava com o corpo atento, clamando silenciosamente por minha resposta.

— Eu prometo — disse por fim.

Sorrindo um pouco, Zavian aquiesceu com a cabeça. Mal havia percebido, mas estávamos tão próximos que sequer passaria um lápis entre nós. Com nossos rostos a centímetros de distância, eu senti a cruel vontade de beijá-lo crescer dentro de mim, esmagando minha respiração em um sopro. Meu corpo esquentou e ele se aproximou ainda mais, quase selando nosso destino. No entanto, eu mesma hesitei, me afastando. Nem sabia o que ainda temia quando tinha certeza que acabaríamos daquela forma, uma hora ou outra; e já a tinha certeza há muitos anos. Relutante, Zavian também se distanciou e sorriu para mim, voltando a caminhar. Como sempre, havíamos bamboleado na linha tênue entre amigos e amantes.

Nós continuamos o resto do caminho calados, presos em nossos próprios pensamentos e atentos à estrela, nossa guia. Eu sentia meu estômago retorcer de angústia sempre que pensava em Lys e na possibilidade de não encontrá-la. Ela era toda a família que eu tinha desde sempre. Somente a lembrança dela já era cortante, e pensar em jamais vê-la novamente me despedaçava em tantos cacos que eu podia desabar na neve, estilhaçada. Lágrimas ameaçaram meus olhos, mas eu as reprimi, andando de cabeça baixa até sentir Zavian tocar meu ombro levemente.

Quando levantei os olhos outra vez, minha boca secou. Somente a algumas dezenas de metros de mim, os Montes Kijet erguiam-se imensos e majestosos, brilhando como espinhos prateados de rocha e neve. Meus joelhos enfraqueceram, e Zavian estava paralisado ao meu lado, boquiaberto. Os cumes dos Montes estavam escondidos por nuvens e nevoeiros tão altos que a visão não conseguia abarcá-los. A estrela que havia sido nossa guia agora parecia repousar bem acima das nossas cabeças, ainda maior do que antes.

Eu e Zavian nos entreolhamos, incapazes de proferir qualquer palavra. Devagar, nós cobrimos o espaço até o sopé do gigante gelado, sentindo o vento tão frio e forte que podia nos partir ao meio. Então, enterrando os pés com força na neve para nos segurarmos, finalmente ficamos diante dos Montes. Eu toquei o chão do qual partia a subida íngreme, olhando para cima. Estalos e barulhos de quedas e colisões vinham do alto, como se a montanha estivesse continuamente se desfazendo.

Por Deus — Zavian sussurrou, estarrecido. — Nunca subiremos isso, nem em um milhão de anos, nem se fôssemos alpinistas. Lys também jamais conseguiria. Isso é loucura! — Ele parecia nem mesmo respirar direito.

— Esse não pode ser o caminho. — Eu disse para mim mesma, me afastando e olhando em volta. — A estrela ilumina a entrada do caminho — pensei alto, repetindo as palavras da lenda.

— Sim, obviamente essas montanhas têm tantos quilômetros de altura que a estrela deve mesmo iluminá-las... lá no céu, onde elas terminam. — Zavian resmungou.

— Não, não é possível — relutei, esquadrinhando a planície alva em busca de qualquer coisa que pudesse nos ajudar.

Então, eu vi.

Um pouco distante de nós, um reflexo avermelhado brilhava meio escondido entre algumas rochas cobertas de neve. Ele cintilava, oscilando como uma tela projetada. Eu me apressei até ele, escutando o barulho das botas de Zavian batendo com força no chão fofo e movediço atrás de mim e sua voz resmungando algo que não prestei atenção. No entanto, quando finalmente chegamos ao lugar, meu amigo calou-se e minhas palavras embolaram na garganta.

Contra todas as possibilidades, havia ali uma corrente d'água circundando o sopé do monte e serpenteando para dentro da rocha do outeiro como uma minhoca perfurando a terra. Toda água devia estar congelada naquela temperatura, mas aquela era líquida e cristalina, e podíamos avistar até mesmo o leito escuro do curso d'água. Como o sol já começava a apagar-se, a luz da estrela que havia nos guiado até os Montes repercutia na água, fazendo um reflexo avermelhado luzir na tela branca ao seu redor.

Onde o riacho adentrava no outeiro, havia uma passagem de não mais de um metro de largura, um pequeno túnel pelo qual a água baldeava para dentro da rocha. Uma pessoa passaria por ali, mas teria que entrar no riacho e aquele córrego devia estar fatalmente gelado. Debaixo do olhar preocupado de Zavian, eu tirei uma luva e abaixei-me na margem da corrente d'água, estendendo a mão para tocá-la. Quase pulei de susto ao sentir que, ao invés de frio, o líquido estava morno como o de uma piscina termal.

— Você não pode estar pensando nisso. — Zavian murmurou, incrédulo, entendendo o que eu iria fazer.

— Este é o caminho — afirmei, fascinada. 

Eu levantei e larguei a mochila no chão, preparando minha alma para entrar ali, certa de que Lys havia encontrado aquele lugar.

— Droga, Selene. — Zavian rosnou, bufando antes de também soltar na neve a bagagem que trazia nas costas.

O som da mochila caindo no chão me assustou e eu o encarei, surpresa e rendida. Céus, ele iria mesmo comigo.

— Zavian, por favor, não. — Eu implorei, aproximando-me rapidamente e segurando seus ombros. Ignorei nossos rostos a somente alguns centímetros de distância outra vez. — Você não precisa fazer isso. Já me trouxe aqui, não precisa se arriscar mais. Está tudo bem, eu sigo sozinha daqui, por favor.

Me observando com muita intensidade, Zavian não respondeu. Ele deixou o silêncio pairar por um segundo e, no outro, de supetão, desceu seus lábios frios e macios nos meus. 

Primeiro, eu fui tomada pela surpresa; depois, pela força do beijo. Uma das mãos de Zavian se enroscou no meu cabelo e a outra se espalmou na minha bochecha, acariciando a pele ternamente. Nem o vento forte e gelado, os estalos da montanha ou o cantar da água correndo poderiam me tirar daquele momento. A boca dele tinha gosto de saudade. Anos de espera e relutância acabaram ali. Quando nos separamos em busca de ar, eu nem sequer consegui abrir os olhos antes que sua respiração tocasse meu rosto.

Como eu poderia te deixar agora, Selene? — Ele sussurrou, afastando o rosto para me fitar. — Eu disse que não voltaria sem você. Nós vamos juntos. — E me deu um sorriso e um selinho carinhoso antes de se afastar para preparar-se para entrar na água, enquanto eu permanecia imóvel e atônita na neve.

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