Tirando uma dúvida

[Aviso: capítulo um pouco mais longo]

Turio chegou da aula naquela tarde empolgado, pois seu professor de fotografia havia elogiado suas fotos. Então Olívia deu-se conta que estava vendo e participando de poucas coisas que os alunos produziam nas atividades terrestres. Lália quis mostrar algumas músicas também e no final da tarde, ela e Naitan começaram a ensaiar algumas músicas juntos. Aurosa e Noro também quiseram participar dos ensaios e, não sabendo tocar nenhum instrumento, cantavam. Naitan havia formava um pequeno grupo de músicos. Eles não eram maravilhosos, mas Olívia achou que levavam jeito.

Lália preparou uma noite para descontrair. Foram todos para o gramado, esticaram toalhas de piquenique, armaram uma pequena churrasqueira com pães, aspargos, abobrinhas, tomate, cebola e queijos e comeram ao som da gaita de Naitan e do violão de Lália. Aurosa, Noro e Olívia dançaram. Turio tirava fotos, um pouco afastado do grupo; até que Olívia o tirou para dançar. Primeiro, ele declinou, mas ela insistiu e eles começaram a dançar juntos. Para surpresa de todos, Turio dançava muito bem. Ele acabou confessando que, desde pequeno dançava sozinho em horas vagas. 

De repente, eles viram a raposinha de Campos Belos correndo em direção deles. Ela chegou pulando por entre eles e transmutou-se em Ravenkar.

– Boa noite, terráqueos! – Falou o Mestre rindo muito.

Aurosa alcançou uma toalha de mesa para ele, e ele amarrou na cintura para tapar a nudez que encabulava Olívia.

– Eu preciso falar com vocês. – Disse ele, fazendo uma pausa enquanto todos sentavam ao seu lado. – Eu estive pensando muito sobre vocês... E acho que Renus já deve ter falado algo...

Ele nem completou o pensamento e Turio interrompeu:

– Mestre, nós estamos querendo esquecer o que o Conselheiro Renus andou nos falando.

– Eu sei... Eu sei... Ele não foi muito claro ao falar com vocês... – Falou o Mestre demonstrando que já ficara sabendo da conversa pela manhã.

– Então ele já foi lhe contar? – Perguntou Naitan.

Ravenkar não quis responder, principalmente por que a questão não era nem Renus nem seu mau jeito ao tratar do assunto. Ele ignorou a pergunta e disse:

– O que eu quero é que vocês saibam, ainda uma suspeita, é que Olívia não desenvolveu uma habilidade. Isto seria impossível, sem um trabalho de anos, vocês sabem... Eu pensei muito e muito e só pude concluir que esta história das aparições é outra coisa bem mais complicada: um dom.

Assustados, todos se entreolharam em silêncio profundo. Olívia não sabia a diferença entre habilidade e dom para os tangens, então perguntou:

– Por que o espanto?

– Porque só os anjos têm dons, Liv! – Disse Aurosa.

Olívia parou para pensar um pouco em tudo o que ouvira sobre as habilidades para os tangens, e reparou que nunca ouvira eles falando em dom. Fazia sentido, já que eles nunca falavam em anjos e muito menos nos dons deles.

– Hoje pela manhã o Conselheiro conseguiu provar que eu não passo de uma humana burra e agora vocês acham que eu sou um anjo... É isto? – Falou Olívia entre a ironia e a desaprovação.

– Fora de questão você ser um anjo, Liv! – Disse Turio.

– Por que não, Turio? – Disse Naitan.

– Porque ela é muito humana... Ela nem sabia como era um anjo quando viu um pela primeira vez... – Disse Turio lembrando o dia no Templo, quando Olívia conversou com o anjo sem saber que ele era anjo.

– E se ela tivesse esquecido que é um... Pode acontecer isto, Mestre? – Perguntou Noro.

– Acho muito difícil... Tão difícil quanto uma humana ter um dom de anjo. Vocês compreendem? – Respondeu o Mestre.

– Eu juro! Eu não sei nada sobre anjos... – defendeu-se Olívia.

O grupo ficou pensativo até ouvir alguém atrás deles: era Renus, em pé e com as mãos nas costas, a três metros do grupo. Ele quis se deixar ver para poder falar:

– Não creio que ela seja um anjo, mas também acho que ela foi contemplada com um dom, porque ela não tem condições de desenvolver esta habilidade. 

Ele estava calmo e deixou que os outros vissem que ele trazia nas mãos uma grande corda enrolada.

– Se você não se importar, menina, tiramos a dúvida sobre você ser um anjo agora mesmo. – Disse Renus.

Os alunos compreenderam o plano de Renus e concordaram com ele. Ravenkar explicou para Olívia:

– Renus foi buscar uma arma contra anjos. É uma corda de um material que nossos ancestrais descobriram e que produz um efeito neutralizante nos anjos.

– É um dos únicos métodos que os tangens têm de deter um anjo, já que eles podem voar ou teleportar-se. O lutador que tenta imobilizar o anjo durante uma briga, ele precisa enrolar esta corda no corpo do anjo. O anjo fica como que anestesiado e perde as forças para teleporte. – Explicou Turio à Olívia.

Olívia não acreditou naquela situação: seus amigos queriam que ela pegasse algo como a criptonita de Superman, para ela provar que não era um anjo.

Ela puxou a corda da mão de Renus e perguntou irritada:

– O que eu tenho que fazer? Enrolar assim? – Disse ela, enrolando-se na corda.

A corda era bastante grande e ela enrolou na cintura, dando várias voltas, como se fosse um grande cinto. Ao acabar, ela caiu ao chão, de olhos fechados e totalmente parada, causando um grande susto. Enquanto alguns acreditaram que ela estava sob efeito da corda, Turio se abaixou e falou:

– Parece que ao invés de anjo, nós capturamos uma grande atriz... – Disse isto, ao mesmo tempo em que começou a fazer cócegas nela.

Olívia começou a rir muito. Com a corda enrolada em quase todo o seu abdômen, ela provava ao grupo que não era um anjo. Ela sentou no chão e disse:

– E agora? Vocês querem que eu tente voar?

Ravenkar olhou sorrindo para Renus e ele respondeu com um olhar de alívio para o Mestre. Estava descartada a possibilidade de Olívia ter o dom por ser um anjo. Porém eles não descartaram a ideia de que ela tinha um dom que só os anjos poderiam ter.

Enquanto Lália começou a brincar com a corda, Renus falou:

– Eu pedi para o Mestre vir aqui, porque ele é melhor com as palavras do que eu. – Disse ele com certa dificuldade de admitir que ele havia sido péssimo com as palavras pela manhã.

– Vocês precisam tomar muito cuidado – disse o Mestre. – Olívia, você não é um problema. De jeito algum. Mas existe um grande mistério em torno de toda esta história do dom e do anjo. O teu anjo, ele muito provavelmente sabe o que é, mas se até agora ele não quis aparecer e deixar você saber, é porque ele não pode fazer isto. Ele está designado apenas a te cuidar. E só a você... A nenhum dos outros...

– Por isto, ele não apareceu para salvar Turio e Lália no desfiladeiro de lama ou salvar o homem que estava preso na cabana. – Completou Renus. – A função dele é cuidar somente de você.

– E vocês sabem um jeito que eu possa falar com ele? – Perguntou Olívia.

Todos responderam negativamente.

– Mas se é como o Mestre está falando, se ele ou outro ser do mundo dos anjos ainda não se manifestou, talvez ele e os outros não possam te falar sobre isto. – Disse Noro.

– O jeito é esperar... – Concluiu Aurosa.

– Mas enquanto vocês esperam, vocês precisam manter isto em sigilo. – Explicou o Mestre.

– Por quê? Eu imagino que se o Conselho souber, talvez eles repensem o Programa, Mas não teriam motivos para acabar com ele, não é mesmo? – falou Lália.

– Nós não podemos saber direito o que eles fariam, mas muito provavelmente eles mandariam esta menina para a Mestra do Pensamento para estudar este dom ou até mesmo para Deserto Plano, para Tuolock ficar de olho nela. – Respondeu Renus.

– A verdade, Liv, é que você passaria a ser a esquisitona de Tangen... Compreende? Nenhum tangen jamais teve um dom assim, único e tão singular. – Falou Turio, que sabia muito bem o que significava ser o diferente.

– Até onde eu já li, os dons únicos são natos ou dados apenas para anjos superiores e no Mundo dos Anjos. – Completou Naitan. – Não sendo um anjo, Olívia não nasceu com este dom. Pouco sabemos em Tangen sobre dons tão especiais. Talvez o Mestre já tenha visto algum anjo assim.

– Exatamente! – Explicou Ravenkar: – Os dons simples como se comunicar por telepatia, parar o tempo por segundos, produzir fogo com as mãos e outros; estes eu já vi anjos fazerem. Mas anjos com dons únicos são muito poucos e estes dons só são passados por seres elementares, responsáveis pela harmonia do universo, para anjos e no Mundo dos Anjos.

– Então voltamos ao início: não sabemos nada! – Falou Aurosa.

– Sabemos de uma coisa: Olívia irá correr perigo caso descubram que ela tem este dom e que tem um guardião para salvaguardar ela e o dom. – Falou Renus.

– E o perigo não é somente pelo fim do Programa de Estudos de vocês, mas outro bem maior: ela irá virar alvo de atenção e cobiça. – Disse Ravenkar.

– Como assim? – Perguntou Olívia.

– Liv! Sem querer te assustar, mas eu conheço pelo menos uns dez tangens que iriam brigar muito para ter você trabalhando com eles... Na ATI, por exemplo. Já pensou você num interrogatório? – Disse Turio tentando explicar porque ela seria cobiçada.

– Sem falar dos anjos caçadores... Vocês já ouviram falar deles? – Lembrou Naitan.

O grupo reagiu com medo. Todos já tinham ouvido falar destes anjos que já fizeram estragos com tangens e anjos especiais. Em tempos passados, através de chantagem, eles manipularam as habilidades de Mestres e dons de Anjos.

– É bom um historiador no grupo. Acho que você pode contribuir bastante pesquisando estes casos para Olívia saber com quem talvez ela precise lidar. – Falou Ravenkar.

– Eu farei isto, Mestre! – Disse Naitan.

A festa havia terminado com todos preocupados com a possibilidade de esbarrarem em um anjo caçador de dons. O mestre despediu-se, deixou cair a toalha de mesa ao chão enquanto transmutava-se em um corvo cinza, que voou no céu até a escuridão o engolir.

Renus voltou para dentro antes dos outros. Quando eles entraram na casa, ele estava sentado na mesa pensando.

– Você já comeu? – Perguntou Olívia.

Ele balançou a cabeça negativamente. Ela recheou um pão ainda quentinho com queijo, tomate e cebola e lhe deu. Depois pegou um copo de suco de laranja. Ao colocar o copo na frente do Conselheiro, ele pegou a sua mão. Não disse nada. Apenas a olhou com uma expressão que podia ser interpretada por um misto entre um pedido de desculpas e demonstração de arrependimento e de compaixão. Foi assim que ela entendeu e foi assim que ele queria que ela pensasse. Ele ficou ali até ouvir Noro sugerindo que dormissem todos na sala naquela noite; e quando começaram e arrastar os móveis e trazer colchões, ele foi triste para o seu quarto: só ele sabia o quanto ele queria ficar ali junto também.

Pela manhã, Renus passou pela sala mais silencioso que das outras vezes, pois sabia que estavam todos dormindo. Porém ele não se conteve em chegar mais perto do grupo para conferir algo. Desta vez, ele ficou mais satisfeito ao ver que Olívia dormia em um colchão pequeno juntinho de Aurosa. Antes de se virar, Lália acordou e o viu. Ela levantou rapidamente e sussurrou no ouvido do Conselheiro:

– O senhor podia começar as aulas de movimento hoje...

Ele olhou para ela sorrindo muito discretamente e disse:

– Tome seu café e me encontre lá fora daqui a pouco.

Ordem que ela cumpriu, sem questionar. Quinze minutos depois, ela estava pronta para sua primeira aula de luta.

– Posso começar pelo uso da corda?

Renus deu um suspiro para manter a paciência e balbuciou um simples "– Não", que Lália aceitou, sem problemas. Diferente de Turio ou Aurosa, que nunca faziam perguntas cuja resposta pudesse ser um não, Lália, havia passado por tantas escolas e professores até descobrir sua habilidade com números, que já estava acostumada a aceitar "não" como resposta. Era uma característica divertida para os outros, pois ela pedia coisas a toda a hora, mesmo com toda a certeza que lhe seria negado. Algumas vezes, ela se espantava pelo contrário: quando aceitavam seu pedido. Foi assim com Renus e o pedido das aulas.

Quando os outros acordaram, viram-a repetindo movimentos que Renus fazia. Ele corrigia sua postura e gestos com muita paciência; os outros nem acreditaram. Todos pensaram a mesma coisa: ele estava tentando se redimir da manhã do dia anterior.

Depois que eles entraram, Turio veio com a notícia que havia três mensagens de Tangen para Olívia. Uma do Conselho pedindo que ela fosse para Tangen para a reunião da tarde; outra de Sheda V. enviada ao Conselho, pedindo para conhecer Olívia e os alunos do Programa; e outra de Tila, que dizia o seguinte:

Minha amiga querida

Mirus falou de sua vinda hoje à Tangen. Queria saber se você aceita tomar um chá depois, na sede da Patrulha. Quem pediu para te convidar foi aquele senhor que me deu a faca, lembra? Como você já sabe, ele está ansioso para conhecê-la.

– Não! – Gritou Renus.

Ele disse isto tão bravo que Naitan chegou a levantar rapidamente numa reação de defesa a uma agressão que poderia vir a seguir. Olívia sinalizou com a mão que estava tudo bem.

– O que foi isto? – perguntou Noro sem entender.

–A história da menina Tila, lembram? O senhor que deu a faca para Tila é Tuolock... – Esclareceu Turio.

Desta vez foi Naitan que reagiu:

– Não! Não mesmo! – Disse ele com um pouco mais de calma do que Renus. – Fica longe do Mestre Tuolock.

– Por que este medo todo? Ele é um mestre, não? – Perguntou Olívia.

– Porque você acha que ele quer falar com você, Liv? Tila já deve ter contado do dom para ele... – Simplificou Aurosa.

– Não! Tila me prometeu que não contaria a ninguém e, além disso, ele havia dito que queria me conhecer antes da história da faca perdida. Ele quer outra coisa... – Disse Olívia.

– Então vamos todos juntos! – Disse Lália querendo ajudar.

Olívia pensou um pouco e disse:

– O que você acha, Renus?

Apenas Renus e Turio perceberam que aquela era a primeira vez que Olívia chamava o Conselheiro apenas pelo primeiro nome. Algo estava diferente nela, os dois repararam.

– Acho que se você não for, ele virá aqui. Eu conheço bem seus métodos... E isto pode ser bem pior. Mas não devem ir todos juntos. Leve só um dos pirralhos junto com você.

– Naitan, você vem comigo então! – Resolveu Olívia.

– Eu não serei uma boa companhia para você, Olívia. Eu não gosto nem um pouco deste Mestre. Se ele for grosseiro com você... E ele será... Eu não vou aguentar calado. – Disse Naitan.

Todos se entreolharam tentando achar entre eles o menos esquentado para participar daquele encontro. Olívia mudou de ideia e disse:

– Não. Eu não vou colocar vocês nesta cilada. Eu vou sozinha.

– Por que o Conselheiro Renus não vai com você? – Perguntou, numa sugestão, Lália.

– Porque ele não me receberia... Em uma reunião com o Conselho, eu precisei sair para ele entrar... – Explicou Renus.

– Então veremos o tamanho da vontade que ele está em conhecer e falar comigo. Você irá comigo, Conselheiro Renus. Se ele não quiser te receber, ele que fique falando sozinho. – Falou Olívia de uma maneira que todos sentiram orgulho na decisão.

– E a Sheda V.? – Perguntou Aurosa.

– Não quero saber dela... Por hoje basta Tuolock. – Respondeu a professora, que naquela manhã parecia bem mais madura e firme em tomar decisões.

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