Quando os anjos criaram a Terra e Tangen

– No começo de tudo, em nossa parcela do universo, havia apenas um mundo habitado por seres alados com poderes especiais natos e dons que adquiriam conforme merecimento e aptidões. Neste mundo todos nascem como um ser que nós conhecemos como anjo. Eles viviam de forma livre, em vilas pequenas e em florestas. Dormiam em árvores e viviam com o que a natureza lhes dava. Eram como grandes pássaros, porém inteligentes... Mas como em todos os mundos, sempre há momentos em que a natureza e os seres se transformam. E no Mundo dos Anjos não foi diferente. Num passado, um grupo de anjos começou a desenvolver outros hábitos e cresceram como uma comunidade, e alguns anjos passaram a morar em um lugar fixo. Algo muito próximo do que aconteceu nas primeiras cidades na Terra também. Eles criaram um espaço para viver, que chamamos de Cidade dos Anjos. Nesta cidade, eles começaram a buscar outras experiências e conhecimentos que não apenas aqueles sobre viver. Mas não pense neles com as limitações humanas. Não! Eles já nasciam e ainda nascem com uma série de habilidades naturais que nem nós, nem vocês humanos, jamais teremos. Viver para eles é algo bem diferente. Não tendo nossas limitações e na tentativa de sair do tédio angélico, eles criaram jogos. E em um desses jogos, eles criaram os humanos.  

     Mirus deu uma parada para tomar fôlego e reparou que Olívia prestava bastante atenção e parecia gostar da história. Então ele deu um sorriso irônico para fazer o comentário:

– É verdade, Olívia! Fomos criados em uma brincadeira dos anjos. O jogo começou só por lá, no mundo dos anjos. Éramos personagens, muito parecidos com eles, mas limitados. Imaginaram seres sem asas, sem poderes, tendo que conquistar cada coisa banal a sua vez; algumas coisas que já eram natas para eles, anjos. Eles foram inventando regras para o jogo, como a função de anjos da guarda. Jogavam em um jogo de prancha e dados...

– Você quer dizer "tabuleiro"? – Pela primeira vez, Olívia corrigiu Mirus.

– "Tabuleiro". – Repetiu Mirus, sem captar a palavra. E continuou:

– Inventaram um jogo simples e divertido até que um grupo de jogadores teve a ideia de dar vida ao jogo, criando estes personagens vivos em outro mundo: os humanos na Terra. Os anjos foram muito irresponsáveis... – Criticou Mirus. E continuou:

– Imagina se você tivesse condições técnicas e mágicas para dar vida aos personagens de seu tableiro? Você o faria? Pois eles sim. Quiseram brincar, pois viviam numa harmonia que acabou por amortecê-los nas experiências da vida emotiva e sentimental. Era tudo muito pré-visível. Então, eles quiseram criar novas situações e analisar emoções, pela observação de ações e reações, coisas que eles mesmos ainda não haviam vivido, mas que poderiam um dia incorporar às suas vidas. Eles criaram toda uma história e personagens, como numa ficção, porém colocaram seres vivos para viverem enquanto personagens. E este foi o primeiro erro deles. – Disse Mirus frisando bem o detalhe de que os anjos erraram, e mais de uma vez.

     Mesmo que Mirus insistisse na ideia de um jogo de tabuleiro, Olívia tentava compreender a história mais próxima ao pouco que ela conhecia dos jogos de RPG. Porém, neste jogo dos anjos, os personagens eram totalmente destituídos de habilidades ou qualquer dom sobrenatural.

     Mirus continuou a história:

– Os primeiros anjos que entraram neste jogo real escolheram o planeta Terra, que já tinha vida animal e vegetal, para o experimento e criaram três civilizações em lugares diferentes, bem distantes umas das outras, mas cuidando para que tivessem as mesmas condições de sobrevivência e existência. Por muito tempo, nada além do esperado aconteceu com os seres destas civilizações. Então em um determinado momento, os anjos resolveram criar três esculturas enormes na forma de um ser alado como eles. Deram condições para que cada civilização encontrasse estes totens que foram confeccionados em madeira tipi... tipo... típoca de cada local, e assim os três povos os encontraram quase que ao mesmo tempo. Porém as reações foram tão diversas que surpreenderam os guardiões. 

Uma das civilizações não teve qualquer interesse na imagem, tratou o totem como utilitário e o queimou como lenha numa fogueira. Este grupo não tardou a se extinguir em uma batalha interna, precisamente quatro décadas após o achado. As outras duas civilizações trataram o totem acertadamente: como um presente de seus criadores. Porém, a segunda, que é a civilização da qual você e todos os humanos descendem, transformou a imagem em ídolo – passou a idolatrá-la como algo inatingível e que deveria ser mantido como mistério. Inventaram histórias para justificar a imagem. A partir dela, criaram, eles próprios, muitos outros ídolos. Criaram mitos – conseguiram atingir a ficção em sua perfeição de verdade a se acreditar e passaram a contar e recontar as histórias para os mais novos; passaram a viver da alegria de brincar com a mentira e a verdade.

Com a terceira civilização, o processo foi bem diferente: eles reconheceram a imagem como presente dado de um criador às criaturas que eles eram, para que eles almejassem a ascendência à verdade da criação. Desde o princípio, todo caminho que levava à mentira, fantasias e ficções, era eliminado. Eles queriam tocar o criador e não mantê-lo à distância. Inventaram técnicas e aprimoraram ao máximo o que chamaram de ascendência existencial. Suas experiências foram maravilhosas. Nessa busca, alguns começaram a se distinguir dos humanos como você. Ascendiam aos mais diversos níveis onde estariam as coisas que procuravam ou estudavam, pelas quais viviam, meditavam etc. Alguns conseguiram a transmutação da matéria. Tornaram-se seres ascendentes e acabaram desvendado o mistério da criação: o jogo dos anjos. Depois disso não puderam, nem quiseram mais, ter uma vida terrena. Tocaram os anjos, e estes entenderam que, para aquele grupo, o jogo havia chegado ao final, pois eles passaram a entender as jogadas e a jogar também. Imagina, por exemplo, se num jogo de dados, os próprios dados tivessem consciência do jogo de que participam – se os dados compreendessem de que lado eles deveriam cair para somar determinado número que o jogador quisesse obter deles.

     Olívia achou boa e engraçada a comparação e sorriu. Mirus pela primeira vez viu os dentes de Olívia e sentiu-se feliz por estar conseguindo quebrar o gelo e espanto que havia em toda a situação.

– Assim, os anjos deram outro espaço físico para esta civilização poder viver, pois não concordam em compartilhar o mundo dos anjos com eles – o Mundo dos Anjos deveria continuar intocado e inacessível para qualquer outro ser dos mundos. A este novo mundo, os anjos deram o nome de Tangen – que significa mais ou menos o que toca. Eu sou um Tangen e hoje você esteve rapidamente na cidade administrativa de meu mundo. – Mirus voltou a ter aquele tom de orgulho ao falar de seu mundo.

– Nós conseguimos chegar a um grau de desenvolvimento técnico e civilizativo, que muitas vezes supera o do Mundo dos Anjos, mas os criadores contam com poderes mágicos inexplicáveis que nunca um tangen ou um humano irá alcançar. Na verdade, os humanos estão longe de atingir tal objetivo, e para nós, tangens, este deixou de ser o objetivo. Nós tornamos nossas vidas subjetivas, centradas em nós mesmos. Nós sabemos que os outros são importantes para a sobrevivência coletiva, e para nada muito além disso. Para que cada um cuide de si e não tenha pré-ocupações, organizamos conselhos. Os conselhos dividem as tarefas, deveres e direitos dos tangens. Um tangen, por exemplo, não precisa se preocupar com alimentação, moradia, emprego e outras coisas básicas. Não recebe remuneração. Não há dinheiro em Tangen. Tenho certeza de que, se você aceitar o emprego, você irá entender e gostar de nosso modo de vida.

     Mirus acabava de declarar que, se ela aceitasse o emprego, ela não receberia salário. Olívia estava tão mais interessada na história do que nos detalhes práticos, que nem percebeu este detalhe. Ele continuou:

– Porém, Olívia, nós perdemos muitas coisas que vocês humanos ainda mantêm e que os anjos nos deram no início. Para ascendermos e evoluirmos acabamos eliminando sentimentos que atrapalhavam e tomamos distância de algumas coisas naturais. Para você ter uma ideia melhor de nossas diferenças, vocês têm o ensino de sentimentos que são passados de pais para filhos ou compartilhados entre amigos. Nossos conhecimentos são apenas compartilhados entre mestres, professores e alunos. Atualmente os tangens não são gerados por mãe e pai, nem vivem num sistema familiar. A grande maioria dos tangens é guiada por mestres e mantida pelos conselhos. Eu sou um Conselheiro! Temos uma boa organização, que funciona bem há milênios. Porém nossa aproximação com os anjos nos impediu uma total independência. Temos que conviver com as opiniões deles até hoje. – Disse ele, parecendo para Olívia que os anjos criadores eram um grande problema.

– Alguns anjos quiseram se livrar dos tangens quando viram que nos tornaríamos independentes, mas no fundo a maioria de bons anjos protestou ao pensar em eliminar vidas. Sim, porque agora eles também estavam apegados às suas obras. Temos alguns anjos que nos apoiam e outros que só nos atrapalham... Vocês não sabem quando eles interferem no curso das suas vidas e histórias, mas nós sabemos. Há muita discussão entre tangens e anjos, sobre vários assuntos...

     E então Mirus tentou concluir:

– Ou seja, nossas civilizações se separaram; tomaram rumos totalmente diferentes, e acabaram por não valer mais como aquele jogo para os criadores. Vocês humanos não sabem de nossa existência, porém nós sabemos de vocês e podemos aprender e ensinar coisas: trocar informações. Para nós, interessa-nos aquilo que perdemos e que agora, já evoluídos, podemos retomar. Não sabemos o que são estas coisas ainda, mas queremos fazer este contato para saber. Também é importante contar a você que durante estes anos em que tentamos contato, criamos algumas situações que tiveram consequências para os dois mundos: também queremos reparar estes danos... Nisto todos foram unânimes: precisamos ser mais prudentes nos nossos contatos.

– Senhor Mirus, o senhor realmente acha que está sendo prudente neste contato comigo? E se eu não quiser aceitar o emprego? E se eu quiser contar a mais alguém? – Disse Olívia sem saber que Mirus se referia a consequências muito mais desastrosas do que algo que uma jovem de vinte anos poderia fazer sozinha.

     Embora aparentasse estar meio atrapalhado com a situação e sem jeito em falar com uma humana, Mirus era um Conselheiro – e para se tornar membro de um conselho em Tangen era preciso uma inteligência incomum, além de responsabilidade e bom senso para lidar com os mais diversos assuntos.

– Olívia, eu estou sendo prudente neste contato. Acredite! Caso você não queira aceitar o emprego, nada irá acontecer. Nós temos meios para apagar memórias recentes. Você não irá se lembrar do dia de hoje. Como eu disse, só não podemos fazer coisas que provoquem sequelas nos humanos e na história de vocês. Nada que possa modificar vocês. Pois estaríamos modificando a nós mesmos também. E este foi o segundo erro dos anjos: eles acharam que, a partir da criação das três civilizações, permaneceriam iguais ao que eram. Os anjos mudaram a partir de então. Tente compreender que aquele que cria algo não fica imune à mudança que faz: a partir daquilo que cria, o mundo ao qual pertence deixa de ser aquilo que era. Ele provoca um movimento diferente entre as coisas, incluindo a si mesmo: alguém que provoca mudança no mundo transforma a si mesmo a partir daquilo que criou. Isto não foi diferente com os nossos criadores. O mundo dos anjos mudou em vários sentidos. Hoje, nós reconhecemos que os três mundos – o dos tangens, o dos anjos e o dos humanos – enfrentam problemas diversos... Mas a questão é: o quão diversos são estes problemas? Existe um Mestre que tem uma teoria de aproximação dos mundos para a solução de problemas. Mas isto é um assunto bem mais complicado e algo que não cabe te falar agora, pois imagino que você já tem informação demais para digestão.

     Olívia estava aparentemente bastante cansada; era um cansaço para além das muitas informações e muitas dúvidas. Entretanto, quando Mirus perguntou se ela gostaria de perguntar alguma coisa, ela percebeu que não saberia por onde começar. Ela se atinha a detalhes, e a história que Mirus acabara de contar era repleta de superficialidade e sem estes detalhes; dava abertura para tantas perguntas. Porém, naquele momento, Olívia não conseguia formular questões filosóficas sobre criação ou evolução.

     Ingênua, ela havia se preparado para uma entrevista de emprego comum a tantas outras e ainda estava incorporando este personagem, que há muito já tinha sido excluído da cena original que ela idealizara.

– Vocês me escolheram? – Foi o que ela conseguiu formular. Ele balançou a cabeça positivamente, e ela quis saber o porquê.

– Nós tínhamos uma lista enorme de possíveis candidatos. Fomos eliminando até chegar ao número de quatro. E, nos últimos dois meses de espera, você foi a única que apareceu para a entrevista. – Disse isto dando aquela risada estranha.

     Como ele viu que ela não riu, e até ficou desconfiada com a resposta, ele disse:

– A escolha desde o princípio foi por análise de várias coisas como inteligência; habilidade para ensinar especificamente pessoas que precisam de adaptação; interesse espontâneo em ajudar; curiosidade pelas coisas; independência dos pais e amigos; e facilidade para enfrentar problemas sem desesperar, sem medo...

– Eu estou com medo! – Disse ela interrompendo Mirus.

– Então, se aceitar o emprego, não demonstre medo aos tangens. – Disse ele levantando-se do sofá. Falou algo sobre estarem esperando por ele no Conselho e que voltaria logo para continuar a conversa. E fazendo um aceno com a mão, que ele achava ser a maneira de dizer adeus, desapareceu.

     Pensativa, Olívia permaneceu sentada no sofá por quase uma hora. Ela entendeu o "voltaria logo" de Mirus como algo para alguns minutos depois, porém ele não voltou naquele dia, e ela pensou que deveria ser muito precisa com os tangens quando marcasse um horário. E quando percebeu, já estava pensando o que deveria ou não fazer em Tangen e com os tangens, pois ela já havia aceitado o emprego.

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