O último escolhido

Olívia retomou as fichas e perfis dos alunos, naquele resto de manhã. Ela pensou bem no que já tinha e em tudo de que iria precisar. Achou um nome: Turio. Lembrou que Aurosa havia comentado sobre ele ser o esquisitão da turma, o que ela achou bem engraçado: um esquisitão dentro de um grupo em que todos eram muito estranhos. Turio aparentemente era o mais nerd dos tangens nerds – sabia tudo de tecnologia. E foi isto que fez Olívia se interessar pelo aluno. Porém na sua ficha de inscrição, ele havia colocado querer participar do Programa por ter interesse nos métodos de ensino e aprendizagem dos humanos. "Turio queria ser professor?" – pensou Olívia. Ela iria procurar saber.

A tarde estava muito bonita na cidade: a temperatura havia caído um pouco, mas o sol estava forte. Olívia sentiu vontade de sentar ao sol e resolveu sair de casa sozinha pela primeira vez. Acabou caminhando até a Praça Maior, e, cansada, sentou de costas para o prédio dos Conselhos e de frente para o Templo dos Anjos. A intenção era óbvia: queria ver se entrava ou saía de lá algum anjo. Não viu nada, depois de ficar muito tempo ali. Arrumou força e determinação para entrar sozinha, porém ao dar o primeiro passo rumo ao templo, alguém parou em sua frente, bloqueando o caminho como um muro. Ela, que olhava para baixo para afastar os olhos do sol, quase pisou nos dois pés enormes do tangen a sua frente. Olívia nunca vira pés tão grandes. Não teve pressa em subir o olhar, pois previa um susto ao descobrir o rosto daqueles pés. O "muro" era um tangen elegantemente vestido com roupa escura, um casaco de tecido leve, largo e comprido até os joelhos, que embora estivesse aberto, não condizia com o calor do sol. Ele tinha cabelos relativamente compridos até os ombros, soltos e bastante despenteados, a pele bronzeada e a expressão nem um pouco simpática.

– Aonde você pensa que vai? – Disse ele com ar de autoridade, que fez Olívia recuar o passo anterior.

– Vou sair do sol, senhor!

Ele então indicou o lado esquerdo da praça e falou um pouco menos autoritário:

– Achei que você estivesse querendo entrar no Templo... Muitos que chegam à cidade têm curiosidade quanto ao que tem ali dentro... Mas já sabem que não devem entrar lá sozinhos.

Olívia não queria demonstrar que mentira, então confirmou:

– Nem me passou pela cabeça entrar lá. – E então percebeu que ele havia achado que ela não era da cidade, assim como Naitan achou. Alguma coisa fazia os tangens pensarem assim. – Como o senhor percebeu que eu não sou da cidade?

– Nenhum cidadão, que vive há mais tempo aqui, ficaria parado na frente do Templo... – Disse ele, aumentando cada vez mais a curiosidade de Olívia para saber o que havia de tão terrível lá dentro. – Você veio de onde, menina? – perguntou ele.

– Campos Belos! – Respondeu ela, sem esperar o que ele iria dizer em seguida:

– Hah! Eu também! Então também foi aluna do Mestre da Natureza?

– Sim! – Disse ela querendo apressar o passo e se despedir dele para acabar logo com a conversa. Mas ele não teve a menor dificuldade de, com apenas um passo, manter-se ao lado da humana.

– O Mestre deve ter feito muita graça de você enquanto aluna... Por você ter tão baixa estatura!

Olívia concordou com um sorriso sem graça. Ele deu uma gargalhada estranha e despediu-se, indo para o lado oposto.

Olívia ficou aliviada em ficar sozinha. A uns três metros de distância, ele virou e disse:

– Fique longe do Templo, menina! Você não tem ideia do que os anjos fazem aos humanos ingênuos... – Naquele mesmo tom autoritário, voltando a ter aquela expressão maliciosa, querendo deixar explícito que sabia quem ela era.

No dia seguinte, Aurosa não soube dizer quem Olívia havia encontrado na rua. Porém foi alguém que lhe fez o favor de alertar do perigo em andar por ali sozinha, e lhe impedir a besteira de entrar no templo. Aurosa deu razão ao bom senso do desconhecido e disse:

– E acho bom você saber que o Mestre tem o teu tamanho e nunca debocharia de alguém por isto! Ele é muito gentil e delicado, na maioria das vezes. Porém tem seus dias de ventania...

Mais tarde, Olívia descobriria que isto não havia sido uma metáfora. O Mestre da Natureza era um dos Mestres mais evoluídos na atualidade e ele conseguia transformações incríveis, que incluíam fenômenos naturais.

A turma aquele dia estava mais agitada. Dois alunos conversavam baixinho, e Olívia conseguiu ouvir parte da história – o assunto era sobre o dia anterior. Não sobre o acidente, mas sobre o fato de eles terem ficado sem almoço. Eles acharam um absurdo um deles ter tido que almoçar na escola dos patrulheiros, e lá as mesas não eram individuais: "– eu tive que almoçar com mais cinco". O outro rebateu dizendo que "– pior eu. Tive que preparar meu almoço". A humana observou bem estes dois alunos para descartá-los da lista, pois a última coisa que ela queria era formar sua turma com mimados e arrogantes que não conseguiriam conviver com os outros na Terra.

Em meio ao burburinho, chamou a atenção o aluno quieto e isolado mexendo em um aparelho bem ao canto da sala.

A professora ao entrar já anunciou um trabalho em duplas. Olívia pediu desculpas a Aurosa, dizendo que iria procurar interagir com outro colega desta vez, e foi até o canto da sala onde estava Turio:

– Posso fazer o trabalho com você?

Sem tirar os olhos do aparelho, o colega foi direto:

– Com que intenção?

Ela estranhou a pergunta, mas compreendeu perfeitamente a desconfiança do "esquisitão".

– Estou querendo sair um pouco do lado de Aurosa... Estamos sempre fazendo os trabalhos juntas...

– Sei... – Disse o colega demonstrando que não havia sido convencido. Ela então emendou:

– Também por que eu soube que você é muito bom com toda esta tecnologia, e eu não entendo muita coisa... Não comente com os outros colegas – disse ela com total certeza de que Turio não comentaria nada, pois não falava com ninguém da turma – mas eu sou da zona rural. Não tive oportunidade de estudar tecnologias...

Mesmo assim, o colega não ficou convencido:

– Sei... E você vai querer que eu te ensine isto numa aula sobre utensílios domésticos e ferramentas de trabalhos humanos...

– Claro que não! Sobre este assunto, eu sei muito... – disse ela, que acabara de saber do que tratava aquela aula – a ideia é eu te ajudar aqui, e você me ajudar com as tecnologias.

Agora sim, o colega havia compreendido o interesse repentino de uma colega por ele: era uma troca de informações. Somente naquele momento, ele olhou para Olívia e aceitou a troca com um simples balançar de cabeça. Ele era magro e alto e, até onde Olívia conseguiu ver, ele não usava maquiagem, nem pinturas e nem adereços estranhos. Nada que chamasse a atenção. Turio era o aluno com mais aparência de humano. Seus cabelos castanhos tinham corte simétrico e eram naturalmente encaracolados. Ele sentava um pouco curvado, como que querendo diminuir seu tamanho.

Tirando o fato de desconfiar de tudo, Turio não chegava a ser desagradável. Muito pelo contrário, ele tinha certo charme ao tentar solucionar as questões que a professora lançava. Ela havia selecionado uma série de imagens de objetos, e as duplas tinham um tempo curto para debater e tentar descobrir para que eles serviam. Turio olhava calmamente o objeto, ampliava detalhes na tela, levava a mão à boca como que para conter um impulso de dizer algo precipitadamente, olhava para Olívia, que já sabia a resposta e esperava por ela, e só então ele falava à colega. No terceiro objeto, ele percebeu que ela era realmente muito esperta neste assunto. Ela queria passar esta impressão, para conquistar a confiança daquele que talvez fosse o aluno mais inteligente da turma. Então ele já falava a resposta em forma de pergunta:

– É um aparelho comunicador isolado para conversas secretas? – Perguntou ele diante de uma das imagens.

Ela riu contidamente da descrição e confirmou:

– Eles chamam de cabine telefônica. Elas ficam dispostas nas ruas para quem precisar ligar para outra pessoa e não estiver com seu telefone móvel. Mas não acho que isto seja um utensílio doméstico e nem uma ferramenta de trabalho. É um aparelho de utilidade pública.

Foi fácil Turio gostar da única colega que havia reparado nele e, além disso, demonstrara saber sobre tantas coisas humanas a ponto de desconfiar e questionar os professores.

Aurosa estava muito quieta quando Turio despediu-se de Olívia dizendo que cumpriria o combinado da troca de informações numa próxima aula. Aurosa sentiu que estava perdendo a função de assistente e pensou que logo, logo, a professora humana constataria que ela não era boa suficiente para o Programa. E este pensamento foi crescendo, enquanto as duas caminhavam. Foi quando Lália deu uma acelerada no passo para encontrar Olívia e puxar assunto:

– Vocês estão indo para o refeitório?

Aurosa olhou a colega com um olhar tão cortante, que Lália parou a caminhada. Porém Olívia respondeu:

– Estamos, sim! Venha conosco! – E Aurosa fechou a cara.

Durante todo o almoço, o assunto foi a explosão do dia anterior. Entretanto. Olívia procurou saber mais sobre Lália. Ela contou que havia passado por várias escolas até descobrir sua aptidão por números. Ela gostava de citar estatísticas sobre tudo: "Noventa por cento dos tangens preferem suco a chá. Enquanto somente trinta por cento gostam dos dois"; "Quinze por cento dos grandes nomes da história de Tangen estudaram com os Mestres da Natureza"; e assim ela ia concluindo cada assunto, até chegar em um que interessou Olívia:

– Oitenta e cinco por cento da população total, entre rurais e urbanos, gostariam que os anjos deixassem Tangen.

Olívia demonstrou curiosidade:

– É mesmo? Não pensava que era um índice tão alto.

A resposta de Lália foi tão espontânea e tão acertada:

– Como não? Em que mundo você vive? – o que fez Olívia e Aurosa entreolharem-se e Aurosa adiantou-se:

– Liv veio de uma comunidade rural que nunca teve problemas com eles. Ela não sabe bem das histórias...

– Sorte dela!

Olívia começava a perceber que as questões com os anjos em Tangen eram realmente complicadas.

Naquela noite, Olívia recebeu uma ligação de Mirus e pediu para marcar um encontro com ele:

– Melhor em sua casa, amanhã! – Combinou Mirus.

Já sentado na poltrona da sala de Olívia, Mirus ficou feliz ao saber que a professora já havia composto sua turma. Quis saber os nomes e concordou com as escolhas. Mirus era um otimista; para ele tudo estava sempre bom.

– Então prepare-se para ser recebida no Conselho hoje à tarde! Eles têm pressa...

Depois que Mirus foi embora, Aurosa chegou. Ela não parecia tão otimista. Olívia havia sido um pouco cruel tratando-a friamente no dia anterior e, para a assistente, isto deveria ser sinal de que seria rejeitada no Programa.

– Hoje eu não irei a aula! – Disse Olívia já com o ar de líder que tentou disfarçar durante a semana. Ela saía do personagem "aluna" e se tornava "professora". – Você também não! Ficará comigo aqui e irá me ajudar a preparar uma apresentação para o Conselho.

Então Aurosa entendeu que a hora da verdade chegara.

– Olívia – disse a assistente com certa formalidade evitando o apelido – eu sei que não devo lhe perguntar...

– Então não pergunte! – disse Olívia rispidamente. E vendo Aurosa baixar os olhos em tristeza, abriu um sorriso e falou: – Mas caso você ainda tenha dúvida... Sim! Seu nome está entre os escolhidos no programa! – e concluiu: – E não foi apenas pela ajuda que você me prestou nestes dias, mas também por ter reparado em sua lealdade e cuidado. Além disso, você tem algo importante para o programa e para o grupo: conhecimento de medicina.

Aurosa precipitou-se em dizer humildemente:

– Medicina... não tenho tanto assim...

– Então prepare-se para ter! Eu não posso ir com cinco tangens para a Terra e, em qualquer emergência boba, ter que explicar mudanças genéticas para um médico humano de posto de saúde...

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