O Mestre da Natureza
Os três alunos perceberam a decepção estampada no rosto de Olívia e ficaram para trás com ela, deixando que Ravenkar e Renus seguissem na frente conversando. Olívia parou e abaixou-se para arrumar algo no sapato para que a distância entre eles aumentasse até que eles desapareceram em uma curva.
– Ninguém me falou que ele não gostava de humanos... – Disse ela, tentando justificar a atitude do Mestre.
– Eu também não sabia. – Disse Lália.
– Talvez não seja isto. – Tentou justificar Naitan. – Talvez tenha sido este Conselheiro que tenha dado a versão dele sobre você.
Turio reparou que aquilo que Naitan disse piorou a situação, baixando a autoestima de Olívia. Ela ficou triste, até que, de repente, o filhote de raposa voltou a aparecer, pulando por entre eles. Lália abaixou para dar carinho nele e disse:
– Que fofinho! Será que o Mestre nos deixaria levar ele para o sítio?
Enquanto Turio e Naitan ficaram imaginando o caos que seria uma raposa no sítio, Olívia falou:
– Ele ainda é pequeno. Ainda deve depender da mãe... Eu não iria separá-lo da família, dos irmãos, só para me divertir com ele no sítio.
Depois da experiência que eles acabaram de ter com a história dos dois irmãos separados, foi fácil para todos entenderem que aquela não era uma boa ideia. A raposinha começou a andar na trilha e eles foram atrás, voltando à vila. Passado certo tempo, Naitan comentou que a distância da volta parecia maior. Foi então que perceberam que em algum momento da volta, eles pegaram um caminho diferente. Estavam perdidos e o único que parecia não se importar era o filhote de raposa que continuava saltitante e feliz. Turio tinha um comunicador, mas todos concordaram em tentar voltar sozinhos e não deixar Renus saber. Naitan subiu em uma árvore para tentar ver se achava a direção da vila, mas ela não era alta suficiente e ele só via mata. A floresta que a princípio pareceu paradisíaca à Olívia, transformava-se aos poucos em uma parte do que ela imaginava ser o inferno. As árvores tinham formas suspeitas e ela teve a nítida impressão de que estava sendo observada e julgada por elas. O canto dos passarinhos que antes eram lindas melodias, agora pareciam gritos anunciando algo ruim. O cheiro das flores mudou para um odor de barro podre. Só a raposinha continuava saltitante.
Lália estava tendo a mesma sensação que Olívia, tanto que, ao ouvir o sibilo agudo e repentino de um pássaro, agarrou Turio pelo braço. Turio, que estava na beira da trilha, levou um duplo susto: pelo som e pelo tranco no abraço, e acabou desequilibrando-se e levando ele e Lália ao chão, a esquerda da trilha. Porém, esta parte da trilha era ladeada por uma descida íngreme e escorregadia devido ao solo ser coberto por barro úmido – de onde vinha o cheiro de podre que todos sentiam.
Turio e Lália desceram seis metros na lama. Ao tentarem levantar para subirem, a lama traiçoeira os fez descer mais um metro.
– Melhor ficarem quietos! – Sugeriu Naitan, enquanto pensava em um jeito de tirá-los de lá.
– Uma corda ou um cipó! – Disse Olívia tentando ajudar.
Foram alguns segundos de desespero, quando para piorar a situação, o filhote de raposa saltou por entre as pernas de Olívia e Naitan, ameaçando se jogar também na lama. Olívia ainda gritou um "não, não, não", mas o animal não parecia entender. Naitan conseguiu pegá-lo no colo, mas o bichinho saltou direto no barro e iniciou a sua queda rumo aos dois primeiros.
Enquanto todos ainda estavam esperando que Lália ou Turio conseguissem deter a queda do animal, a raposinha deu um giro rápido e, espalhando lama para todos os lados, transmutou-se em um ser meio barro, meio Mestre da Natureza. Turio e Lália foram envolvidos por uma lama consistente que os puxou para cima, para a trilha. Logo depois deles, saiu Ravenkar do desfiladeiro, já totalmente tangen.
Naitan e Olívia abraçaram Turio e Lália, num gesto espontâneo de substituição do susto pela segurança.
– Obrigada, Mestre! – Disse Olívia humildemente.
O Mestre virou-se para olhar para ela e, como que completando as suas últimas palavras da apresentação, disse:
– Ah! A humana burra e irresponsável!
Porém antes que Olívia tivesse tempo para pensar se aquelas palavras eram de ofensa, o Mestre deu uma gargalhada tão alta que fez alguns pássaros que estavam próximos voarem. Logo em seguida, ele puxou Olívia para si num abraço e ela teve certeza que aquilo fazia parte de um humor tangen que ela desconhecia. Ao abraçá-lo, ela viu Renus, que estivera parado atrás deles por um bom tempo. Ele não estava com uma cara boa.
– Vocês me desculpem o mau jeito, – disse o Mestre, – mas quando os vi ficarem para trás, senti que era uma boa hora para mostrar as duas faces da natureza.
O Mestre começou a andar, enquanto desenvolvia o que ele achava ser a lição mais básica para os quatros visitantes:
– A natureza tem muitas faces. Mas vocês precisam conhecer pelo menos duas dela. A chuva que faz crescer as plantas e a mesma que pode destruir plantações. A lama que produz cerâmica é a mesma que atola animais e faz deslizar morros. Até mesmo um simples animalzinho inofensivo tem em sua natureza força suficiente para provocar grandes perigos. Por isto, vocês não devem andar desatentos. Precisam saber como e o que faz a água, a terra e o animal inofensivo se transformarem em perigo. Renus me falou sobre o que vocês andam passando e eu achei melhor começar a lição por aí.
Ele fez uma pausa e chamou a atenção de Olívia:
– E você, menina, você está tendo estas visões de crianças inocentes... Ingênuas... Lembre que a ingenuidade pode ser muito perigosa.
Olívia sabia disto, porém era difícil para ela avaliar o grau de perigo em meio ao perigo. Ela não sabia como evitar as aparições, nem como controlá-las.
– Um rio! - Gritou Turio.
– Vocês nem repararam, mas eu estava pegando outro caminho... – Disse Ravenkar rindo diante da felicidade de todos ao ver o rio.
Entraram todos de roupa, pois, tirando Renus, eles estavam todos enlameados.
O rio não era muito largo e corria no sentido da direita para a esquerda. No meio, ele era bastante profundo e a corrente forte. Eles optaram por ficar com água até um pouco acima da cintura. Mais abaixo do rio havia uma protuberância de pedras, por onde a água passava mais condensada e forte, prenúncio de uma queda d'água vertical de sete metros de altura, que estava longe de onde eles estavam.
Renus preferiu não entrar e permaneceu sentado à margem. Naitan e Turio saíram logo em seguida. Turio ficou próximo de Renus, tirou a camisa, torceu e a esticou na grama, na esperança que o sol a secasse. Naitan fez a mesma coisa, porém, ainda em pé viu uma amoreira e decidiu pegar algumas. Subiu na grande árvore, estendeu sua blusa em um dos galhos e ficou sentado comendo amoras.
De repente, o Mestre transmutou-se em um golfinho. As meninas adoraram a surpresa e ele, para diverti-las, fez algumas acrobacias provocando espirros de água. Turio achou engraçado e Renus lembrou as tantas vezes que já tinha visto o Mestre fazer a mesma brincadeira.
Olívia conseguiu agarrar o corpo do animal, e o Mestre aproveitou para levá-la para um passeio rio acima. Contra a corrente, a água batia em seu rosto e ela divertia-se.
Turio levantou-se para enxergar melhor a cena e afastou-se um pouco de Renus. De repente percebeu o perigo e disse à Renus:
– Olívia não sabe nadar!
Neste momento, Renus e Turio viram Olívia se soltar do Mestre e entrar as cambalhotas na corredeira do rio. Renus pulou na água para barrar sua passagem, mas não conseguiu. Ele ainda sentiu o Mestre passar por ele tentando alcançar a humana. Porém quando chegou à altura das pedras, seu corpo de golfinho foi emerso.
Lado a lado nas pedras, Renus e o Mestre viram o sol desaparecer por segundos e sentiram um vento súbito, de algo passando acima de suas cabeças. Sob eles, num sobrevoo, um anjo preparava para aterrissar.
O anjo não ligou para eles. Como a ave marítima pesca um peixe no mar, ele apenas encostou levemente na água e tirou Olívia da corredeira. Deitou-a na grama delicadamente e alçou voo, desaparecendo no ar.
Olívia estava bastante confusa. Havia bebido muita água, mas não chegou a se afogar. Renus e o Mestre chegaram perguntando se ela estava bem, ela não teve voz para responder. Turio, Lália e Naitan vieram correndo pela margem.
– Ela vai ficar bem. Só precisa descansar. – Disse o Mestre pegando a mão de Olívia. – Eu vou levá-la para minha casa. Você traz os outros. – Falou olhando para Renus.
O Mestre e Olívia desapareceram, enquanto Renus e os outros ficaram para recolher as roupas que haviam deixado pelo caminho.
No pequeno chalé de Ravenkar, ele e Olívia ainda tiveram tempo de uma conversa particular.
– Renus já havia me falado deste anjo que te protege. Na verdade, ele ainda tinha dúvidas se ele te protegia mesmo ou se tinha outra intenção. Mas ao que tudo indica, ele é teu guardião. – Disse o Mestre.
– Eu chego a ter pena do coitado, Mestre! Ele não poderia arrumar alguém pior para proteger... – Disse Olívia se achando a pior das pessoas.
– Você não teve culpa do que aconteceu. Foi um momento de distração. Como eu havia dito: o rio diverte, mas também pode matar. Felizmente, hoje não morreu ninguém e nós até que nos divertimos. – Falou Ravenkar tentando consolar.
– Mas eu prefiro o senhor no papel da raposinha. – Disse Olívia.
– Isto por que você ainda não me viu como macaco! – Falou o Mestre rindo e fazendo trejeitos de macaquices.
Ambos riram e Olívia sentiu-se a vontade para falar algo delicado:
– Mestre, posso te pedir uma coisa? O senhor pode vestir algo... Eu não me sinto muito confortável vendo o senhor nu.
Ele achou graça da sinceridade da menina. Foi até o sofá onde ela estava sentada e puxou uma manta que enrolou na cintura feito um sarongue. Sentou ao seu lado e disse:
– Você é adorável!
Olívia deu um meio sorriso e disse:
– O Conselheiro não pensa assim...
Olívia estava pensando mais nos conflitos e xingamentos de Renus ao falar isto, mas o Mestre, velho conhecedor da natureza, achou que ela se traíra com aquelas palavras.
– Renus também é adorável. Eu o eduquei até os doze anos... Sei como ele é.
– Então deve ter sido o tal de Tuolock que o transformou num tangen insensível...
O Mestre achou muito graça naquelas palavras. Olívia ainda não sabia, mas os Mestres da Natureza e dos Movimentos eram melhores amigos apesar da diferença de idade; entretanto ser melhor amigo de Tuolock não era nada fácil e nem para qualquer um. Ravenkar o compreendia muito bem, pois aceitava imperfeições, violência e maldades da natureza dos seres. A relação entre eles geralmente era em tom de brigas e implicâncias, mas de respeito em outro nível de consciência.
– Hoje eu vi o desespero no rosto de Renus. – Disse o Mestre. – Não somente quando ele achou que você ia cair, mas quando o anjo te pegou.
– Como assim? – Perguntou Olívia.
– Ele teve medo que o anjo desaparecesse com você...
Ela concordou com o Mestre pensando em "– uma abdução ou algo assim?". Pela primeira vez passava por sua cabeça o perigo que o teleporte podia ser para ela. Quando Renus a levou para seu lugar secreto, ela nem pensou que se ele a deixasse lá, ela não saberia como voltar. Por isto o segredo do teleporte era bastante restrito em Tangen, mas aos anjos não.
– Renus se sente vulnerável com este anjo te rondando. Ele não quer te perder... Entende? – Falou Ravenkar fazendo uma expressão facial que se faz ao fim de uma boa explicação.
– Não. Eu não entendo!
Antes que o Mestre pudesse continuar, bateram à sua porta. Eram os companheiros que ficaram para trás. Logo em seguida, Noro e Aurosa chegaram e Olívia ficou quieta, enquanto o assunto variava entre vacas, raposas, antídotos e anjos. Nem o Mestre, nem Renus entraram muito no assunto sobre o anjo, que com certeza, era o que mais estava preocupando a ambos. Este silêncio era sintomático: eles sabiam de algo que não queriam partilhar com o grupo. Em um determinado momento, Olívia pegou Renus a olhando do jeito que o analista observa seu paciente. Logo em seguida, ele e Ravenkar se afastaram do grupo e tiveram uma conversa privada.
Ela estava cansada e cochilou em meio a tanta falação do grupo. Por um instante, ela teve a impressão que estava voando. Sentiu o corpo tão leve, completamente sem peso e sem gravidade e plainou no ar sentindo o vento no seu rosto. Acordou um bom tempo depois, com Turio chamando para irem embora. Ao acordar, ela disse:
– Ah! Eu estava voando...
E aquelas palavras silenciaram todos, por alguns minutos.
– Eu queria ter conversado mais com o senhor... Ficado mais aqui em Campos Belos! – Disse Olívia sentindo a despedida.
– Eu queria que você ficasse! Mas eu acho que seus alunos estão preocupados com as vacas...
Só então Olívia lembrara o motivo da visita e que nem havia perguntado sobre a pesquisa à Noro e Aurosa.
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