O estranho entre nós!

Mirus entrou no prédio do Conselho e Olívia preferiu ficar na praça, sentada ao sol para pensar, até a hora da reunião da tarde, prometendo não entrar em confusão. Ficou no mesmo banco em que havia encontrado com Renus pela primeira vez. Tirou do bolso do casaco, o livro que havia pego emprestado de Tila. Mal havia virado a primeira página, alguém lhe falou:

– Não perca tempo lendo estas biografias. Elas são mal escritas e não contam a verdade sobre os tangens.

Ao seu lado estava o mesmo senhor que ela havia conhecido no Templo dos Anjos. O anjo que ela e Turio encontraram no jardim com as estátuas. Ele a reconheceu:

– Ah, a menina que gosta de crianças!

– Como vai o senhor? – perguntou Olívia meio intimidada por, desta vez, saber que estava conversando com um anjo.

– Eu vou bem! Leve e voando por aí... – disse ele tentando ser engraçado. E vendo que Olívia apenas dera um sorriso sem graça disse: – A menina é que parece estar carregando um peso grande demais para poder voar...

– O senhor nem imagina... – disse ela em meio a um suspiro.

Ele foi se afastando de Olívia, ainda falando:

– Uma menina humana da sua idade não devia estar assim. Talvez a menina deva dividir o peso com alguém mais velho e forte.

Ali parada, Olívia ficou pensando que todos, menos ela, pareciam saber mais o que ela devia fazer, do que ela mesma. A mesma coisa aconteceu depois no Conselho. Olívia chegou um pouco atrasada e todos já estavam lá, inclusive Renus com a mesma postura de sempre: cabeça baixa, sem contato visual, sem palavras, somente grunhidos.

Olita, como sempre, começou a expor o problema:

– Estamos querendo te passar uma missão mais complicada. Requer algum estudo e um plano inteligente de abordagem. É um caso investigativo... Você irá precisar pensar bem antes de nos dar uma resposta...

– Envolve outro objeto perdido na Terra também, porém não se trata de resgatá-lo; precisamos saber como ele foi parar lá. – Explicou Líneo.

– Vamos deixar que ela leia o caso e nos diga daqui a alguns dias se tem condições de executar a missão. – Falou Miti, tentando tirar a pressão do momento.

Olívia, com uma pasta na mão que continha um resumo do caso, parou por alguns segundos para pensar. E virando-se diretamente para Renus falou:

– Eu gostaria de saber a opinião do Conselheiro Renus.

Renus ficou surpreso pela cobrança direta de sua opinião, que só Olívia não sabia. Mesmo assim ele não respondeu diretamente à Olívia e preferiu referir-se a todos:

– Vocês já sabem a minha opinião: não acho que estudantes que levam tudo na brincadeira tenham capacidade para missões que exigem alguém treinado para enfrentamentos corpo a corpo. Até onde eu sei, nenhum deles possuí um mínimo de treinamento dos movimentos mais básicos.

– Mas eles são inteligentes e bons estrategistas; e esta missão não inclui nenhum combate corpo a corpo. – Defendeu Mirus.

– Como você pode saber, Mirus? Eu já tive que enfrentar lutas em casos que no início eram muito simples. Quando a confusão inicia e a situação pacífica muda, de nada adianta saber passes de mágicas, tocar violão ou colher flores. – Começava a engrossar Renus.

Todos os outros começaram a falar ao mesmo tempo, questionando a possibilidade ou não desta missão vir a envolver um confronto. Olívia já havia sido alertada por Renus e Tila sobre situações perigosas, mas sabia que o seu grupo de alunos queria novos desafios. Era uma escolha complicada. Ela achou que fosse o momento de pensar no que ela estava querendo – e ela queria participar mais, queria provar que não era uma menina, queria muitas outras coisas. Então, depois que os conselheiros pararam de falar, ela começou calmamente um pensamento em voz alta:

– Eu... Eu estive pensando muito sobre tudo isto: sobre meus alunos, sobre estes pedidos de missões, sobre lutas e confrontos e sobre outras coisas... – deu uma pausa, como quem ainda estivesse pensando: – ouvi muitas opiniões... e concordo com o que todos estão dizendo. Eu acho que devo aceitar a missão, – fez novamente uma pausa, desta vez provocando contentamento em todos ao aceitar, menos em Renus – mas concordo com o Conselheiro Renus: nós precisamos ter alguém que saiba defender o grupo quando formos resgatar os objeto. Alguém com mais experiência e que possa nos cobrir a retaguarda. – Ela falou em termos militares que apenas conhecia de filmes de guerra, mas que causou um bom efeito, até mesmo em Renus. Então ela juntou as duas partes finais, do que disse Tila e do que disse o anjo do Templo, e que soaram como conselhos para ela, e decidiu de improviso:

– Eu só aceitarei esta missão se o Conselheiro Renus estiver na equipe!

O fato de Renus não ter reagido agressivamente, pareceu-lhe um bom sinal. Ele no fundo foi pego de surpresa com a exigência, e numa confusão de pensamentos, nem soube como reagir – estava sendo chamado novamente para uma missão, porém com uma equipe despreparada e liderada por uma humana. Isto lhe daria muita dor de cabeça, ele previa. Contudo isto lhe daria oportunidade de sair daquele trabalho burocrático do Conselho. Assim, Olívia finalizou a sua participação na reunião: passando o problema novamente para o Conselho e para Renus, que agora deveria decidir aceitar ou não a missão.

Ela chegou com Mirus ainda de dia ao sítio na Terra. Aurosa e Noro estavam na cozinha começando os preparativos da janta, e não demorou para que os outros chegassem. Eles ficaram felizes de ver Olívia sã e salva, pois Mirus havia dado com a língua nos dentes e contado que ela fora agredida por um tangen enlouquecido.

– Eu não sabia sobre esta troca das casas... – tentou justificar Olívia.

Turio parecia o mais aliviado em vê-la bem: quis ver o machucado e ter certeza de que estava em correta recuperação. Aurosa refez o curativo enquanto ele olhava com pena para Olívia.

– Não foi nada, Turio! Não se preocupe tanto. – falou Olívia. – Eu quero saber de vocês... O que aconteceu aqui enquanto estive fora?

E então todos começaram a falar ao mesmo tempo e Olívia percebeu que a semana agitada ainda não iria acabar. Exausta, ela foi dormir, pois não iria resolver mais nada naquele dia.

Pela manhã, sozinha com Naitan na varanda, antes que os outros acordassem, foi que ela soube dos acontecimentos:

– Eles estão bastante agitados com a festa de sábado. Além disso, Lália bateu de leve o carro, pois se achou apta a levar Turio e Aurosa à cidade. Estes dois pelo menos são mais responsáveis... Noro é que me preocupou, pois teve novamente aquele pesadelo e não dormiu direito quando você esteve fora...

– E você? Você ficou bem? – Quis saber Olívia.

– Fiquei... Senti a tua falta, como Peter Pan sentia de Wendy... – disse ele demonstrando que havia lido um dos livros que Olívia trouxera para ele de Londres.

Com uma expressão singela, ela deitou a cabeça no ombro de Naitan e disse:

– Quando te dei os livros, nem havia pensado em como Wendy, os meninos perdidos, a Terra do Nunca fazem sentido para mim agora...

– E Peter... – Disse Naitan, sorrindo para Olívia.

Ficaram assim por um minuto: em silêncio, protegidos um pelo outro. Até que sentiram um vento forte bater em seus rostos, o que deu a ambos a impressão de que alguém esteve ali com eles.

Enquanto em Tangen, o Conselho se reunia e tentava convencer Renus que ele deveria aceitar o convite de Olívia e fazer parte do Programa; na Terra, os alunos do Programa acabavam o café da manhã.

– Eu preciso contar uma decisão que tomei ontem no Conselho. – Disse Olívia.

Então ela contou a eles sobre a nova missão e sobre não se sentir segura – principalmente depois da violência que havia passado – em colocar a si e aos alunos em perigo, por isso havia pedido que o Conselheiro Renus juntar-se ao grupo.

Todos foram unânimes: era uma péssima ideia. Até mesmo Aurosa, ponderada e bastante respeitosa com os conselheiros, achou que Olívia havia se precipitado e escolhido o conselheiro mais difícil de lidar.

– O convívio com ele aqui na casa, talvez não dê muito certo. – disse Lália. – Ele foi um Comandante de Deserto Plano. Acho que você, Liv, não sabe muito bem o que é isto...

– Aquele olhar de repressão o tempo todo... – completou Noro.

Turio fez um som de rosnado imitando Renus, querendo ser engraçado, mas ninguém riu. Lália concluiu:

– Vai ser insuportável.

– Talvez ele não fique aqui o tempo todo... Talvez nem aceite participar da missão... – Disse Olívia, querendo parecer otimista frente aos comentários contrários.

– Eu acho, Olívia! – falou finalmente Naitan, – Eu acho que a presença dele aqui será o fim do Programa. Até onde sabemos, ele é antipático, intratável, arrogante. E vai acabar arrumando problemas para nós. Você ainda pode voltar atrás e mandar um recado ao Conselho para dizer que o convite foi um erro. Você pode fazer isto...

A professora não queria falar que Renus havia ajudado o Programa em pelo menos duas ocasiões: na história dos cravos roubados e na atitude de manter segredo da bebedeira de Noro. Ao contrário do que os alunos pensavam, Renus estava demonstrando simpatia pelo Programa e sendo bastante tolerante a falta de preparo que ela tinha para liderar aquele grupo. Ela confiava nele, mais do que confiava em Mirus e em outros.

– Eu não quero fazer isto, Naitan! – disse Olívia decidida. – Desde que eu soube da existência de Tangen, têm acontecido coisas estranhas comigo... Eu sinto que em alguns momentos estou sendo vigiada; sinto que tem alguém perto de mim.

E então ela contou o episódio da árvore e de quando ela se sentiu mal e do homem que a agrediu mencionado que um anjo o havia agarrado, deixando de lado a história dos cravos, pois comprometeria Renus.

– Eu sei que em nenhum dos casos foi assim tão grave que pedisse um guarda-costas como o conselheiro Renus, mas eu preciso confessar algo para vocês... Eu sou humana... E eu estou com muito medo. – Disse isto enchendo os olhos de lágrimas.

Desta vez a reação de constrangimento dos tangens às lágrimas foi bem menor. Eles estavam começando a acostumar com as demonstrações de fraqueza dos outros, principalmente pelo convívio tão próximo entre eles. Foi Turio que reagiu, dizendo:

– Liv, se a presença deste insuportável vai te deixar mais segura e tranquila, eu acho que eu consigo aguentá-lo... 

O resto do dia foi para colocar a casa em ordem e pensar como agiriam na festa de Julia e Jorge. No final da noite, depois que todos foram dormir, Olívia viu pela fresta da porta que Noro ainda estava com as luzes acessas, então pensou em resolver algo menor que a estava preocupando. Bateu e entrou em seu quarto. Ele já estava na cama lendo alguma coisa.

– Eu quero saber como você está, Noro? – disse ela, sentando de frente para ele na borda da cama.

Ele estranhou aquela invasão tão íntima, mas compreendeu do que se tratava:

– Naitan comentou com você sobre o sonho?

– Sim. Que você lhe disse que é um sonho repetido, sem sentido... – e o tom de voz que ela usou e o jeito com que falou foi exatamente o mesmo que costumava usar ao abordar as crianças com problemas. – Talvez se você me contasse, dividisse comigo isto, eu poderia te ajudar.

Noro queria muito falar sobre isto. Ele havia falado para todos sobre o tal sonho, porém nenhum dos amigos fez isto que Olívia acabara de fazer. Foi um alívio para ele que alguém se importasse:

– Liv, o sonho sempre começa comigo caminhando por uma rua na Terra. É uma cidade grande, mas sem ninguém nela. Ela está completamente abandonada. Então eu começo a ouvir vozes e risos de crianças brincando. Eu tento seguir o som de suas vozes para ver se encontro as crianças. Ando bastante por entre as ruas, atravesso uma pequena ponte sobre um córrego ou algo assim e então mais adiante eu escuto elas novamente e vejo como que suas sombras... um filete de sombra... indo para um prédio grande e abandonado. A porta está aberta, e eu entro... É um galpão amplo, bem iluminado por grandes janelas; algumas quebradas. Enquanto eu olho para cima, para as janelas, eu sinto que uma das crianças passa por mim. Até aquele momento do sonho, eu me sinto bem, só querendo ver as crianças brincarem... Mas, de repente, eu começo a ficar apreensivo, com medo... As crianças param de falar e brincar... O lugar escurece e eu tento sair de lá e não consigo. Então, sentindo que algo ruim vai acontecer, eu me encolho e tapo o rosto com as mãos para não ver nada. Com os olhos fechados, eu escuto o barulho de algo metálico caindo ao chão. Este barulho me faz acordar.

Olívia pensou por um momento e perguntou:

– Não há nada no sonho que te faça lembrar algo que você viu ou viveu?

– Não. A única coisa que teria para lembrar era este lugar. E ele é totalmente estranho. Um lugar que, com certeza, eu nunca estive. – Respondeu Noro.

– Um lugar abandonado, em nossos sonhos, pode significar somente que em algum momento da vida, sentimos o abandono. Algo que a sua memória guardou... um momento triste.

– Eu tive uma infância bem boa. A escola e meus professores eram excelentes tangens. Não lembro de nenhum acontecimento que me fizesse sentir o que eu sinto no sonho.

– Mas se você consegue reconhecer este sentimento de medo, de algo ruim que irá acontecer, é por que você, um dia, o conheceu... – esclareceu Olívia com exatidão. Noro concordou. – Eu vou dar um palpite. Posso estar errada, mas talvez, a nossa situação aqui na Terra: o fato de vocês estarem enfrentando tantas coisas diferentes, conhecendo lugares estranhos, tendo que aprender coisas banais, como usar o banheiro ou não poder beber bebida alcoólica... Talvez tenha feito você voltar a se sentir criança... A ter medo do novo, do estranho, que no fundo da tua memória, não é tão novo assim...

Olívia saiu do quarto de Noro pensando que, por ele ser mais sensitivo do que os outros, ele acabava de dar a ela uma prova do quanto estava inseguro diante de tantas coisas novas na Terra. Insegurança que talvez todos eles estivessem sentindo, mas não manifestando tão explicitamente como Noro. Ela dormiu pensando que havia feito a coisa certa em pedir que alguém mais experiente como Renus fosse para lá com eles. Ele traria esta segurança.

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