Não acredite em tudo que te contam

Naquele final de semana na Terra, Olívia quis levá-los, todos juntos ao cinema. Era sábado à noite. Olívia comprovou a sua teoria de que o grupo todo chamava atenção demais. Mesmo com o cinema cheio, quando eles chegaram juntos na fila, as pessoas que já estavam, viravam para olhar e os que vieram atrás demoraram a decidir se ficariam parados atrás deles. Eles não eram apenas estranhos na altura, jeito de andar, falar e gesticular. Era mais que isto: eles pareciam jovens que estavam indo para uma festa rave em Berlim, e não jovens que iriam assistir uma comédia policial numa cidade do interior.

Olívia entrou na frente, puxando todos para as últimas fileiras.

– Sentem nesta fila! Eu vou comprar pipocas!

Aurosa quis ir junto, mas ela preferiu ir sozinha. Na verdade, ela queria aproveitar a oportunidade e verificar algo que só funcionaria se Aurosa ficasse. E comprovou quando voltou: Noro entrou primeiro na fileira de assentos, seguido de Lália, depois Aurosa e Naitan, que escolheu sentar ao lado de Aurosa e não ao lado dela.

Turio, que sempre ficava por último, ainda estava em pé, pressupondo que deveria sentar no corredor, deixando o banco vazio entre ele e Naitan, para que Olívia sentasse ali.

Os outros nem perceberam, que era justamente isto que a professora queria verificar: quem sentava com quem. Quando Olívia voltou, antes de sentar, distribuiu as pipocas. Turio não pegou nenhum dos pacotes e disse:

– Segura para mim? Preciso ir ao banheiro!

Turio era, sem sombra de dúvidas, o mais inteligente da turma. Ele deu oportunidade de Olívia entrar na fileira antes dele e sentar ao lado de Naitan. Mas não foi isto o que ela fez. Ela esperou por ele em pé e só depois que ele entrou, com expressão de quem não estava entendendo a atitude de Olívia, ela sentou na ponta ao seu lado.

Sentada ali, ela lembrou a última vez que havia ido ao cinema. Fazia muito tempo. Ela comentou com Turio:

– Eu vinha muito ao cinema, sozinha. Costumava sentar nas poltronas mais centrais e esperava que algum conhecido ficasse contente em me encontrar ou mesmo alguém desconhecido sentasse ao meu lado e puxasse conversa. Nunca acontecia. Eu não tinha muitos amigos. Sempre fui a última a ser escolhida nos trabalhos em grupo ou nas equipes de jogos.

– Sei exatamente do que você está falando. – Falou ele, fazendo Olívia lembrar que estava ali sentada ao lado do "esquisitão". – Você imagina a minha surpresa quando você sentou comigo na sala de aula...

– E eu a grande especialista em utensílios domésticos humanos! – Falou Olívia sem pudor de lembrar o momento da mentira ao amigo. – E você desconfiadíssimo...

– Bela dupla... de mentirosos! – completou Turio.

Quando a comédia começou, os dois já estavam rindo muito.

Naquela noite, eles ainda iriam ter outra novidade: foram jantar em um restaurante que servia massas e saladas.

O assunto principal eram as piadas que eles não entenderam durante o filme. O senso de humor tangen era algo que valeria muitos anos de estudo. E, depois do filme, eles pensavam a mesma coisa sobre o humor humano.

– Não entendo como um policial tão idiota, fazendo coisas tão erradas, possa ser engraçado. – Defendeu Aurosa cobrando responsabilidades de um personagem de ficção.

– É só divertimento. Não existem policiais assim. – Tentou explicar Lália, que lidava melhor com a ficção.

– Mas podem vir a existir, se começarem a servir de modelo para os outros. – Retrucou Aurosa.

– Se tiver um final feliz no combate ao crime, por que um policial não pode ser divertido? – Argumentou Noro.

– É que Aurosa gosta de histórias sobre a vida de heróis reais e elas, em sua maioria, mostram mais superação aos problemas do que momentos de divertimento. – Disse Naitan defendendo a colega.

– A história do atual Mestre dos Elementos é bem divertida e é real. Vocês leram? – continuou Noro esclarecendo o seu ponto de vista. – Ele fez algumas coisas bem erradas e engraçadas até atingir as fórmulas perfeitas.

Aurosa ia falar algo, mas Turio interrompeu:

– Concordo com você, Noro. Mas não foi só o Mestre dos Elementos que fez coisas erradas. Acho que todos erraram, de forma divertida ou não...

– Mas não colocaram em suas biografias! – disse Noro.

– Exatamente! Não colocaram em suas biografias, para não parecerem tolos e "idiotas", como você falou, Aurosa. Só que a história de um herói sem as partes dos erros, não está contando boa parte da verdade. E se uma biografia é escrita assim, se omite os erros, ela não é a verdade, – e nunca será –, aquilo que deveria ser a história real, não passa de uma ficção. Logo, não existem biografias verdadeiras, só ficção. Os modelos são sempre mentirosos. – Explicou Turio.

O esquisitão acabava de dar uma aula de ficção usando a lógica.

– Então para que servem tantas biografias? – Insistiu Aurosa.

– Para frustrar quem tenta seguir modelos de seres perfeitos, pois ninguém ascende em sua habilidade sem erros e idiotices. Ou serve também para divertir. – concluiu Turio.

– Você deve parar de acreditar em tudo que te contam, Aurosa! – Concluiu Lália, achando-se a mais sábia, pois se divertia com tudo.

Aurosa ficou contrariada, mas não levou para o lado pessoal, pois isto não era uma reação dos tangens. Eles tinham discussões acirradas sem pensarem que estavam sendo ofendidos.

– Você concorda com isso, Naitan? – Disse Aurosa querendo chamar o amigo novamente para o debate.

– Eu não concordo com modelos: nem os perfeitos e nem os imperfeitos, Aurosa. Além disso, um policial, não serve de modelo. Ele impõe modelos... Por isto anda armado, é autoritário, e segue leis feitas por outros. – Finalizou rebeldemente Naitan.

– Acho mesmo que nós devemos repensar o papel da ficção na vida dos humanos. – Falou Turio, tirando os óculos e largando na mesa, como que assumindo sua identidade tangen.

– Sim! Uma história de mentira, de um policial impossível de existir, acaba nos fazendo pensar por que ainda precisamos de tantos tangens em Deserto Plano, sendo treinados para defesa e ataque. – Falou Noro, com cara de quem se questionava sobre aquilo pela primeira vez.

Olívia, que se absteve de comentários, estava atenta ao fato de que Turio não costumava entrar em muitos debates que não fossem diretamente ligados aos seus assuntos favoritos. Cinema e literatura não eram o caso. Havia algo por trás, que Olívia não soube definir naquele momento.

Depois que um silêncio tomou conta da mesa, Olívia quis participar de alguma forma:

– Eu estive todas estas semanas em Tangen e não peguei nenhuma destas biografias de heróis para ler. Acho que eu preciso conhecer melhor, pelo menos as vidas dos Mestres...

Naitan interrompeu:

– Se você tivesse me falado, eu tinha várias em casa. De conselheiros também... – Disse ele. Olívia não entendeu onde ele queria chegar, então ele completou: – Mas acho que a do seu amigo, Conselheiro Renus, ainda não foi escrita.

Olívia ia comentar algo, mas o garçom chegou trazendo os pedidos e o assunto passou a ser sobre a comida.

O garçom ofereceu cervejas e ficou um pouco decepcionado quando Olívia disse: "– nós temos uma competição amanhã, e não podemos beber nada alcoólico hoje". –; fazendo parecer que aquele grupo estranho era equipe de algum esporte.

Em Tangen havia bebidas que provocavam embriaguez, porém Olívia não tivera oportunidade nem de provar e nem de saber do que eram feitas. Uma era bastante parecida com vinho tinto, porém a consistência era diferente, um líquido mais grosso. Era bastante popular e tinha uma série de variedades, como as cervejas humanas. Chamava-se Tibi, mas do que era feito, ela nem imaginava. Pensou que precisaria pesquisar sobre isto e também ver qual efeito o álcool faria neles. Até lá, eles não deviam beber.

Voltaram para a casa, cansados e alegres.

Os dias seguintes foram agitados pelas novas atividades. A agenda de Lália era muito bem pensada, e como estavam todos comprometidos com o sucesso do Programa, eles tentavam não contrariar nem questionar o que havia sido indicado. A semana foi passando rapidamente. Em alguns momentos, Olívia sentia-se um pouco cansada, pois ainda era muito requisitada para resolver pequenos problemas domésticos, além de ter que a ser motorista do grupo. Ela fez questão de ir com cada um dos alunos nas primeiras atividades para, antes do professor iniciar a aula, apresentar o respectivo aluno como estudante estrangeiro. Também foi a biblioteca conversar com a bibliotecária responsável para que os seus alunos fossem bem recebidos. 

Ela assumiu até certo ponto um papel maternal por aqueles alunos, que nunca tiveram a experiência de uma família. Este também era seu objetivo para a formação humana deles. E não demorou muito para que eles mesmos cobrassem dela uma postura de mãe nas decisões mais bobas, como quem vai sentado na frente e quem vai atrás, no carro. Ela não desgostava de se sentir protetora deles. E eles também não. Ela sentia, especialmente em Noro e Lália, uma necessidade de atenção, que ela passou a dar. Lália, por ser incansável, tramando coisas novas e querendo participar de tudo. De todos, era quem mais ficava ao lado de Olívia, querendo saber detalhes e tomando nota de tudo. Noro, por ser mais sensível, ou melhor, sensitivo. Ele parecia vulnerável a uma energia geral do grupo ou do ambiente. Por isto, ele gostava tanto de atividades fora de casa. Nos momentos que não conseguia ir para fora, ele tentava distrair-se com jogos de ilusionismo e mágica – que ele sabia fazer bem.

Certa noite, Olívia ouviu passos pela casa e ficou preocupada. Levantou e encontrou Noro no sofá fazendo o controle remoto da televisão desaparecer de sua mão e aparecer atrás de uma almofada. Ele havia perdido o sono, depois de um sonho estranho. Ela fez um chá para os dois e sentou com ele para conversar um pouco, sobre coisas alegres e ver se ele esquecia o sonho ruim. Ele esqueceu e adormeceu. Se tivesse forças, ela o teria levado no colo para a cama, mas acabou deixando-o dormir no sofá. Só cobriu o seu corpo.

No final daquela semana, Noro daria mais motivos para ela se preocupar.

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