A luta

Olívia tentou pensar um pouco sobre o que acabara de ouvir, mas o sono e o cansaço venceram. Ela dormiu a noite toda, profundamente. Ao acordar, o escritório já estava iluminado pela luz da manhã. Era um dia lindo em Tangen e ela lembrou do sítio na Terra e quis saber se lá também estaria assim – estava com saudade de seus alunos. Mas sabia que ainda teria que ficar um pouco mais em Tangen.

Com fome, ela desceu sozinha para o refeitório. Apesar de já não estar mais na hora rotineira do café matinal, muitos patrulheiros ainda estavam por ali. Ao entrar, ela foi logo identificada por uma das patrulheiras, que a vendo sozinha, pediu para juntar-se a ela.

– Você é a humana do Conselho? – perguntou a menina, mesmo que já soubesse quem ela era. Olívia confirmou com um movimento positivo e ela continuou: – Eu estava com Tila, na rua, ontem, quando você desfaleceu.

Olívia, que tivera os primeiros dias da semana com tantas confusões, já nem lembrava direito do encontro violento do dia anterior. Mas achou educado falar:

– Obrigada por me socorrer!

– Ah, eu só ajudei a te trazer para cá. Depois eu acabei tendo que tratar com o maluco que te atacou. Muito maluco... – disse ela. – Tivemos que mandá-lo para um especialista dos pensamentos. Ele não dizia coisa com coisa.

– Mas será que ficará bem? – perguntou Olívia mais por educação do que por preocupação.

Sem querer, a patrulheira deixou escapar algo que ninguém havia comentado na noite anterior.

– Estes funcionários de controle dos anjos, eles veem anjos em tudo... Imagina pensar que você fosse um anjo...

– Ele me confundiu com um anjo? – disse Olívia surpresa.

– Sim... Ou quase isto... Ele disse que depois de jogar você ao chão, quando tentou levantá-la, viu a sombra de duas grandes asas no chão. E depois que você começou a correr, um outro anjo o segurou por trás, o impedindo de ir atrás de você. Recebemos o comunicado que havia um tangen desesperado, gritando por socorro, naquela rua, cinco minutos depois de você ter nos abordado. Quando o trouxeram para cá, eu que tive que pegar o depoimento dele e reconheci você pela descrição que ele deu do primeiro anjo... Uma menina... – Ela riu e ironizou: – Os anjos agora se disfarçam de meninas... Cada um que aparece...

Olívia achou engraçada a maneira com que ela resumiu os fatos, mas não pode deixar de pensar em seu anjo-árvore e no detalhe de Mirus, Tila e Renus não terem contado isto a ela. Com esta história, já seriam três casos em que coisas inexplicáveis aconteceram com ela e que envolviam anjos: o caso da árvore, o dos cravos e este dela ter asas. Tila entrou no refeitório, radiante e feliz. Falou com um e com outro antes de chegar à mesa de Olívia.

– Núvia, você está tratando bem a humaninha? – disse Tila, deixando que Olívia soubesse o nome da patrulheira. – Mirus acaba de dizer que acabou a reunião do Conselho... Então vamos esperar para ver se Renus resolve aparecer.

A humaninha lembrou da suspeita de Tila e ficou constrangida com a lembrança. As duas voltaram para o escritório e o assunto desta vez foi sobre o Programa de Estudos Humanos. Tila deixou claro o quanto achava importante o Programa e se ofereceu para qualquer ajuda que Olívia pudesse precisar. Enquanto Olívia olhava os títulos de livros nas estantes do escritório, Tila comentou brevemente sobre uma vez que esteve na Terra com Tuolock e outros tangens de Deserto Plano para resolver um problema. Fora algo tranquilo.

– E você acha que eu correria um grande perigo pegando outras missões do Conselho? – perguntou Olívia, querendo ver se ela sabia de histórias secretas e missões que resultaram em mortes ou perdas.

– O maior problema que vejo é que, muitas vezes, a missão nem é perigosa, mas envolve outros casos, nomes conhecidos, tangens e anjos com poder... Você entende?

– Entendo. Seria como se eles me mandassem cutucar uma colmeia de abelhas vazia, dizendo que não há perigo, mas, de repente, a surpresa... têm abelhas lá... E quem sai picada sou eu e meus alunos.

Tila achou graça da imagem e concordou aconselhando que ela, se fosse aceitar as missões, tivesse certeza que a colmeia estava vazia.

– Antes de mexer na colmeia, diga que tem que estudar o caso... pergunte para Renus, pergunte para mim... Somente para tangens que você confia... Se você achar que é algo muito complexo, eu posso perguntar a Tuolock. São poucos os que gostam dele, mas ele é extremamente cuidadoso, confiável e discreto. – Disse ela querendo se incluir nos tangens confiáveis e demonstrando todo o respeito pelo seu Mestre.

Enquanto ela falava, Olívia pegou um livro da estante. Tila reconheceu a capa e disse que ela poderia pegar emprestado. O livro era A Vida do Mestre do Movimento: Tuolock.

Mirus chegou logo em seguida, dando a notícia para Olívia de que o Conselho estava decidido pedir sua ajuda em outro caso e ela deveria comparecer na reunião deles naquela tarde mesmo. Olívia estava totalmente confusa com tantos assuntos urgentes e coisas para pensar e decidir. Mas antes que pudesse falar algo para Mirus, eles escutaram muitas vozes exaltadas no prédio, e foi Núvia quem veio contar o que estava acontecendo:

– O Conselheiro Renus chegou!

Antes de sair do escritório, Tila exibia um grande sorriso no rosto e um olhar cúmplice de "eu tinha certeza" para Olívia e Mirus. Olívia, bastante tímida com sua posição naquela disputa, preferiu ficar no andar superior e assistir a luta no balcão interno. 

O prédio, de apenas dois andares, possuía um pátio interno. Este pátio era muito grande e já pensado para práticas e competições esportivas. Em seus extremos havia equipamentos de esportes, como aros e traves para esportes que Olívia desconhecia. O piso era arenoso, com uma camada de areia fina. Os alunos praticavam ali várias aulas de defesa. Um dos lados desta enorme quadra era completamente fechado e imitava uma grande pedra, onde os alunos praticavam escaladas. O teto transparente era bem mais alto que o prédio e coberto para evitar visitantes indesejados que chegavam voando. Acima dele, havia algo parecido com um heliporto, abaixo, pelo lado de dentro, várias cordas transpassadas para treinamentos em que os alunos precisassem ficar pendurados.

Naquela manhã, nenhuma aula estava ocupando o espaço para que toda a quadra fosse liberada para a luta. Ninguém sabia se eles iriam realmente lutar até aquele momento, porém foi só Renus entrar pela porta principal do prédio para que todos, alunos e professores, ocupassem a plateia: o espaço em U no corredor que dava para as salas, tanto no andar inferior quanto no superior. Mirus e Olívia chegaram à beirada do gradil no balcão superior, bem no meio da quadra e virão Renus entrando no pátio, indo ao encontro de Tila, que já estava no meio da quadra a espera de seu opositor. Ele caminhava diferente do dia a dia, com um pouco mais de calma e mais atenção ao redor, como se tentasse sintonizar os sentidos ao ambiente que estava no entorno; olhando discretamente todo o circo armado para a tal luta. Quando chegou perto de Tila, falou baixinho sem que mais ninguém ouvisse:

– Você conseguiu o que queria!

– Você fez bem em vir...

Os dois se afastaram e Tila pediu a palavra ao público:

– Alunos patrulheiros, vocês terão a honra de assistir o comandante Renus lutar. Mais do que torcida por mim, é claro, eu quero que vocês aproveitem para aprender a lutar com ele, – e dito isto de forma respeitosa, Tila deixou aparecer seu lado provocativo e debochado para iniciar a briga: – vamos lutar, bebezinho!

Eles fizeram um cumprimento batendo as mãos fechadas com os braços esticados, e antes que Tila volta-se o braço para o lugar, Renus fez um movimento muito rápido com o braço, e sem tocá-la, empurrou a para trás. Ela precisou se reequilibrar nas duas pernas para não cair sentada no chão e disse:

– Calma! Ainda nem começamos...

Ele sorriu parecendo bastante irritado e falou:

– Esta luta já começou ontem à noite...

Ao dizer isto, olhou Olívia pela primeira vez e já se posicionou para outro movimento.

Olívia virou para Mirus e perguntou:

– Como ele fez isto, sem tocá-la?

– Movimento do ar. Os lutadores de tangen aprendem primeiro a desequilibrar o opositor. Eles conseguem uma excelência nos movimentos que mexe com o ar, com a energia, com as frequências de ondas gravitacionais e sei lá mais o quê. Fui um péssimo aluno de movimentos... – Explicou Mirus.

– Não se ferem muito então? – Falou Olívia.

– Não, quando é só competição. A ideia da luta é conseguir imobilizar e dominar o oponente. Mas é claro que sempre há feridos. Ontem mesmo, só de você cair num arbusto, já se feriu. E quando é uma luta de verdade, daí vale tudo... – Disse Mirus.

Olívia ouvia a explicação enquanto via Renus mover-se de forma firme e elegante. Dentro da limitação de conhecimento que ela tinha sobre artes marciais ou outros tipos de combates da Terra, aquilo era uma mistura de muitas lutas, incluindo algumas como esgrima, porém sem espadas. Um dos movimentos que Tila desferiu contra Renus foi exatamente igual ao de alguém que segurasse uma faca e tentasse cortar o outro; e Renus se esquivou também como se fosse receber a facada, mas a faca não existia ali.

– Alguns movimentos não fazem muito sentido para mim. Parece que eles só querem fazer o outro girar – disse Olívia, no exato momento que Tila dava uma meia volta em Renus e ele pulava longe. – Isto aí... Parece que só circulam em volta do outro...

– Você precisa entender uma coisa. Os tangens aprendem a lutar contra anjos. Para estes lutadores de Deserto Plano é muito fácil desestabilizar um oponente tangen que não é tão bom quanto ele. E poucos são. O problema maior deles é desenvolver movimentos que sirvam para uma luta bem desigual: entre eles e anjos. E os anjos têm suas peculiaridades. Uma delas é que eles não giram muito rápido, por causa do peso das asas, mas eles voam. Então o importante é mantê-los no chão, tentar girá-los, para que eles percam o contato visual com o inimigo e outras coisas que Renus pode te explicar melhor.

O público respondia com batidas, aplausos e gritos a cada movimento bem feito.

– Mas é lindo, não é? – disse Olívia encantada com o que estava vendo.

– O quê? – perguntou Mirus estranhando o encanto.

– Tudo! O jeito que pulam, escorregam, se movem e até caem! É tudo lindo. – disse Olívia, sem desviar os olhos dos dois lutadores e sem poder ver que Mirus a olhou bem para confirmar seu encanto. Ela continuou: – e Renus é muito melhor mesmo. Ele é perfeito. Duvido que este tal Tuolock seja melhor...

Naquele instante, alguém atrás deles rosnou, Mirus virou-se mais rápido do que Olívia e ambos sentiram um vento forte em seus rostos e viram um resto de sombra desaparecendo por trás de outros alunos que estavam próximos.

– Acho que Tuolock estava aqui. E não gostou do que você disse... – disse Mirus em um tom grave.

Segundos depois, Renus acabou por fazer um movimento que desnorteou Tila e ela caiu de joelhos ao chão. Ele prendeu o corpo dela no chão por algum tempo, e ela se deu por vencida. Ele olhou novamente para Olívia e Mirus, como que para confirmar que eles entenderam que a luta acabara e que ele havia feito o seu papel, e assim como a sombra, instantes antes, saiu rapidamente pelo pátio e desapareceu pelo corredor que levava à porta dianteira do prédio, antes que Tila levantasse e que o público pudesse aplaudi-lo.

Quando Tila entrou no refeitório para o almoço, os patrulheiros entoaram uma canção e a aplaudiram em pé. Ela já estava refeita da luta e curtia toda a festa.

– Bem, Olívia, você está livre! – disse ela sorrindo. – Ele lutou pelos conselheiros e ganhou.

– E nem ficou para ganhar um agradecimento e um abraço. – Falou Olívia bastante decepcionada por nem poder falar com Renus.

– Seria uma cena lamentável, Olívia... Se você tivesse agradecido publicamente Renus com um abraço. Ainda mais na presença de Tuolock. – disse Mirus certificando-se que Tila estava ouvindo. – Em meia hora, a única notícia em Tangen seria este abraço.

Tila fez que não entendeu o comentário sobre a presença de Tuolock, e por isso, Mirus teve certeza que havia sido ela mesma quem convidara o Mestre para espiar o discípulo banido.

Após o almoço, Olívia despediu-se de Tila agradecendo por tê-la acolhido, e quando Mirus não estava ouvindo, ela falou a chefe da patrulha:

– Você está enganada! Ele não gosta de mim assim como você pensa. Eu sou um estorvo para ele.

– Estorvo ou não, está me parecendo que ele quer ficar perto de você. – Concluiu a chefe da patrulha.

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