Capítulo 9

O vento era agradável naquele fim de tarde, assim como havia sido durante todo o primeiro dia da viagem. Kyle, Kiorina e Archibald andaram bastante desde antes de o sol nascer. Pela manhã, passaram pelos campos cultivados, que, ao serem atingidos pelo vento, movimentavam-se como o mar. No início da tarde, já estavam fora da grande área de fazendas e plantações que rodeavam Kamanesh.

Há horas andavam sobre suaves colinas, com vegetação rasa e algumas rochas grandes que pareciam brotar do chão. Apesar de terem ficado o dia inteiro na companhia uns dos outros, não conversaram muito. Cada um estava absorto em seus próprios pensamentos.

Kyle pensava em tudo o que havia acontecido. As palavras que Julius Fortrail lhe dissera, dias atrás, martelavam em sua cabeça. Depois, lembrou-se de que Julius havia ido embora sem dizer nada, naquele mesmo dia, mesmo com tanta chuva. Esses pensamentos o incomodavam muito. Além disso, não conseguia esquecer-se daquela adivinha do festival e do que ela lhe havia dito sobre como ele deveria examinar seus sentimentos e olhar para si mesmo. E, depois, aquela espécie de choque que ela tivera. Kyle pensou no episódio quase o dia inteiro; também no bebê que carregava o nome de seu pai, em Gorum e no duque de Kamanesh.

Para Archibald, todo aquele dia fora muito bom, pois havia conseguido organizar seus pensamentos; a brisa e a natureza o ajudavam nisso. Lembrava-se de seu duro treinamento no mosteiro, de todos os amigos que havia feito por lá e de como cada um deles lhe havia ajudado a superar seus problemas. Isso sempre fazia com que se sentisse muito bem.

Pensava também muito em tudo o que Atir lhe havia dito e suas possíveis implicações. Como saber se aquele homem conhecia as "inconsistências" entre o que a Real Santa Igreja prega e a verdade que ele havia aprendido junto com os monges Naomir? De qualquer forma, ainda era cedo para tirar conclusões; estava assim tranqüilo e pronto para, no futuro, observar tudo com outros olhos.

Já Kiorina não havia pensado muito em seus problemas, as brigas com seu pai ou a Alta Escola. Pensara no futuro, fantasiando os próximos acontecimentos, em como iria ser importante e respeitada; aquela viagem certamente era o ponto inicial de todo um porvir maravilhoso. Quando não pensava no futuro, pensava em Kyle e em como estava confusa com seus sentimentos em relação a ele.

Naquele momento, estavam subindo mais uma colina, pisando a grama rala da trilha que haviam tomado horas atrás. A subida era bastante suave. Kyle estava uns vinte passos à frente de Kiorina e de Archibald, que puxava a mula por uma corda. Quando atingiu o topo, parou por um tempo, virou-se e disse:

- Por Ecta! Venham ver!

Quando Kiorina e Archibald atingiram o topo daquela colina, tiveram uma visão de tirar o fôlego. Viram os contornos rochosos do que somente poderia ser o limite do planalto de Or. Era um enorme paredão de rocha, da altura de mais de duzentos homens, de formas belíssimas, que pareciam ter sido esculpidas. Na verdade, os escritos diziam que Ecta, a deusa mãe e senhora das terras, havia erguido aquele planalto pessoalmente; depois, no topo, criou a mais bela das florestas e a presenteou aos antigos silfos. A floresta passou a ser chamada Shind, que, em sílfico, significa Paraíso.

- Nossa! É lindo mesmo! - disse Kiorina.

- É... fico imaginando como vamos subir lá com essa mula. - considerou Kyle.

- Nada para se preocupar. - disse a moça, sem tirar os olhos da paisagem. - O mapa indica uma subida natural, não muito longe daqui.

- Certo, mas é melhor montar acampamento aqui mesmo. - alertou Archibald.

Montaram o acampamento ali mesmo, de onde podiam ver o paredão limite do planalto de Or. Quando terminaram, já estava escurecendo.

Kiorina concentrou-se, apertou as palmas de suas mãos uma contra a outra e murmurou palavras incompreensíveis; imediatamente a fogueira se acendeu. Logo começaram a preparar o jantar. Sentaram-se perto da fogueira para comer. Archibald quebrou o silêncio:

- Diga-me, Kyle, você está bem? Quero dizer, você parece estar muito preocupado.

- O quê? Ah, sim, um pouco.

- Qual é o problema?

- Não sei bem... Você acredita no destino?

- Destino? Hum... - Archibald coçou a cabeça.

Kiorina estava sentada, abraçando as próprias pernas e olhava para os dois sem dizer nada. Não conseguia ver bem o rosto de Kyle, que olhava para baixo. Além disso, seus cabelos escondiam-lhe a face. Archibald olhava para dentro da fogueira fixamente.

- Bem... Eu já li alguns livros de monges que discutem o assunto, baseados em escritos de antigos livros que narram as histórias do primeiro reino e da época dos deuses. Percebi duas posições quanto ao destino. - disse o monge.

- Quais são?

- A maioria acredita no destino e em que devemos cumprir nossos desígnios, exatamente como a Real Santa Igreja diz.

- Não é essa a verdade, então?

- Verdades são relativas, dependem um pouco de como vemos as coisas. Nossa crença é baseada em textos muito antigos, escritos em uma língua quase esquecida, muitos dos quais foram perdidos ao longo dos anos. Portanto, quando a Igreja se afirmou como instituição, há centenas de anos, foram convencionadas interpretações dos textos sagrados.

- Então as pessoas acreditam no destino devido a uma interpretação?

- Não, não mesmo! As pessoas acreditam no destino porque é confortável.

- Como assim?

- Veja, se um camponês acredita que seu destino é ser um camponês, viverá feliz e não terá ambição de ser um rico nobre. Assim como um comerciante não irá querer ser bispo, e um cavaleiro não desejará ser rei.

- Isso não é exatamente justo!

- De certa forma, é verdade. Nós, os monges Naomir, acreditamos que se trata de uma decisão individual. Se um camponês acredita que pode ser um comerciante, pode economizar e talvez abrir uma barraca. Se trabalhar muito, pode até se tornar um comerciante respeitável.

- Mas alguém pode dizer que aquilo era o seu destino!

- De fato; mas se esse camponês acreditasse que seu destino era ser camponês, nunca se tornaria um comerciante respeitável. Sendo assim, não é uma coisa ruim pregar o destino. É ruim simplesmente aceitá-lo por comodidade.

- Isso é um tanto quanto confuso...

- Na verdade, Kyle, eu ainda não discuti a interpretação que desconsidera o destino, mas também não vou discuti-la agora, pois acho que isso o deixaria mais confuso. Para entender esses conceitos, é necessário primeiro estudar mais outros conceitos fundamentais de nossa religião.

- Como é?

- Não me entenda mal, mas é verdade. O importante agora, no entanto, é você entender que, acreditando no destino ou não, deve tomar iniciativas em sua vida, fazer o que acredita ser o correto, pois suas decisões fazem diferença, sim, seja o resultado final o cumprimento de um destino ou não.

- Puxa vida, Archie, você realmente aprendeu muita coisa.

Archibald não respondeu, mas pensava na própria hipocrisia. Falava com segurança para seu amigo sobre tudo aquilo, enquanto ele próprio estava profundamente confuso e inseguro. Estava porém fazendo o que lhe ensinaram no mosteiro: as pessoas abençoadas com a informação divina têm o dever de ajudar a população a viver bem e em paz.

**********

Archibald acordou. Mais uma vez, abrir os olhos não tornaram as coisas mais claras. Suava muito. Tivera mais um de seus pesadelos. Eram sonhos horríveis que tinha com sua família, com vários eventos importantes de seu passado. Sempre que acordava, no entanto, se esquecia do que havia sonhado, sentido apenas que fora terrível. Resolveu sair da barraca para respirar um pouco.

Estava muito frio lá fora, a fogueira quase apagada, com apenas algumas brasas. Olhou para o céu: estava coberto de estrelas, e quatro das nove luas estavam altas, dentre elas, a segunda maior, conhecida como Ty, que refletia tons azuis-violeta na paisagem noturna. As outras, menores, refletiam pouca luz, sendo uma obscura, outra avermelhada e a última azul e brilhante, como uma jóia. Ele observava o planalto de Or, iluminado pelas luas. O paredão de pedra reluzia feito cristal, quase como se estivesse iluminado pelo próprio sol.

Olhava as pedras como quem observa o vazio. Pensava em como era ruim e bom, ao mesmo tempo, ser uma pessoa instruída. Sentia-se responsável pelo poder e o conhecimento divinos que lhe foram conferidos. Às vezes, era horrível saber de todas aquelas coisas que a maioria das pessoas não sabe. Saber o porquê de não lhes contar essas verdades. O maior de todos os seus problemas era que não concordava com a política da Igreja de esconder as verdades do povo.

Tudo aquilo era um fardo muito difícil de carregar, mas possível, pois ele possuía o exemplo dado pelos deuses e sua nobreza no passado. Os deuses lutaram e deram suas vidas para salvar o mundo, libertando-o de seus demônios e, no fim, deixaram os homens livres para trilhar os próprios caminhos.

Por que tudo tinha de ser tão complexo? Por que não conseguia acreditar em tudo o que havia aprendido? Como conseguiria encontrar razões para suas dúvidas mais básicas: quem era, de onde viera, por que se tornara um monge? Talvez acreditar no destino fosse mais fácil, e seu tormento se acabasse em pouco tempo. O jovem monge, no entanto, simplesmente não conseguia acreditar no destino.

Ele ficou ali, olhando para o vazio em forma de grandes rochas, até o amanhecer. Teria uma grande viagem pela frente. Depois de pensar muito, chegou à conclusão de que ainda era muito jovem e havia ainda muitos mistérios a desvendar. Às vezes, não era muito bom ficar pensando nas coisas de forma tão complexa.

Kiorina saiu da barraca transbordando animação e disse:

- Bom dia, Archie! Não é excitante? Dentro de poucas horas estaremos no planalto de Or!

- Ah... O quê? Ah, sim, bastante.

Kiorina apanhou lenha de um pequeno monte e colocou sobre as cinzas da fogueira. Logo depois, acendeu o fogo, usando magia. A seguir, começou a preparar o desjejum.

Archibald levantou os braços, olhou para o alto, fechou os olhos e iniciou suas preces matinais. Ficou assim mais um pouco. Abaixou os braços, cerrando os punhos virados para suas costas e continuou rezando.

Kyle acabava de acordar e viu os amigos. Archibald, fazendo suas preces, e Kiorina, cozinhando raízes que flutuavam no ar. Sentiu-se bem ao acordar no campo, longe da cidade. O ar estava repleto de odores novos e puros, muito diferente do ar de Kamanesh. Sentiu vontade de limpar suas coisas. Pegou sua espada, a ombreira de metal e o braço direito de sua armadura. Sentou-se. Colocou um pouco de óleo de melanca em um pano e começou a esfregar o metal até deixá-lo brilhando.

Kiorina abriu os olhos, saindo de sua concentração, e só então o viu.

- Kyle, bom dia! O desjejum está pronto!

Kyle sorriu e continuou lustrando o braço da armadura. Archibald disse:

- Hoje teremos um longo dia de caminhada. Portanto, vamos com isso!

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