Capítulo 72
CAPÍTULO 72
Kiorina abriu os olhos e viu o céu estrelado se mover. Custou um pouco a perceber que não era o céu, mas ela que se movia. Sentiu o cheiro do mar invadi-la e a madeira fresca em suas costas. Estava num barco. Sentia um pouco de dor nos pulsos e pernas, onde havia sido amarrada. Estava livre, mas onde?
– Você está bem, Kiorina? – ouviu a voz preocupada de Kyle.
– Kyle? Onde estamos?
– Estamos num navio, indo para Dacs.
– Dacs? E quanto a Chris e meus pais?
Lembrou-se então do que havia acontecido e sentiu um baque tremendo; toda a leveza de seu despertar num só instante se perdeu. Seus olhos se encheram de lágrimas, que rolaram imediatamente por sua face. Não se moveu; chorou baixinho.
Kyle aproximou-se e lhe ofereceu o colo. Segurando a cabeça e acariciando os cabelos da amiga, ele foi recebendo suas lágrimas, que vieram por um longo tempo, incessantes. Aquele momento provocou nele muitas recordações. Lembrou-se da infância, de como adorava cuidar dos animais, dos seus cavalos, para cada um dos quais tinha um jeito de demonstrar carinho, pois cada um deles era especial. Seu âmago foi preenchido por uma grande melancolia. Sem se dar conta, chorou também, silenciosamente, por muito tempo.
Gorum, de pé na proa do navio, observava a imensidão do mar, que parecia brilhar, com o reflexo de todas as nove luas. Noites de nove luas eram raras e proporcionavam um brilho indescritível. Muitos acreditavam que essas noites traziam fortuna e boa sorte. Gorum, contemplando a natureza, foi invadido por um sentimento nostálgico. Não conseguia mais se lembrar bem do rosto de sua esposa, Rayssa, mas não se esquecera jamais da voz; também se lembrava perfeitamente da maneira como sua filha Wanda o chamava de papai. Naquela noite, Gorum também chorou, sentindo o sopro e o gosto do mar.
Noran finalmente acordou; sentia muita náusea. Andou com dificuldade para a popa do navio, apreciando aquela grande embarcação, talvez três vezes maior que o barco em que haviam escapado de Kamanesh. No caminho, um marinheiro que falava o lacorês com grande sotaque dacsiniano perguntou se precisava de ajuda. Noran, sentindo-se fraco e enjoado, aceitou o apoio do marinheiro, que o conduziu até os fundos do navio, onde ele se apoiou para vomitar no mar. Outro marinheiro trouxe água para refrescar o tisamirense. Noran estava mal e sua cabeça ainda doía bastante, mas tinha a sensação de que ficaria bom em poucos dias.
Mishtra cuidava de Archibald com muito carinho. Sentia uma coisa estranha. Algo nela havia mudado, novos sentimentos a invadiam. Olhava o céu, igual ao de Shind. Muitas vezes, em noites de verão, costumava subir nas mais altas árvores, até que pudesse observar o céu, acompanhar o movimento das luas e das estrelas, que eram tantas! Naquele momento, quase ouvia os sons da noite de Shind, tomada pelo canto dos insetos e outros animais da floresta. Era o paraíso. Aquilo era sua vida, nada tinha mais valor que sua terra, sua casa, sua gente. Agora estava afastada de tudo aquilo de que gostava, no meio de estranhos, os humanos, com seus hábitos grosseiros. O que estava pensando, afinal? No fundo, sabia que não era de tudo que gostava no modo dos silfos. Às vezes, tanto cuidado com os mínimos detalhes, com a limpeza, a postura e os gestos desagradava, como também aquele orgulho bobo, uma vaidade excessiva sob a qual muitos de sua raça viviam. Talvez por isso tivesse ido morar fora da vila. Seus compatriotas não gostavam muito dela, era estranha, não falava, não tinha os mesmos modos, mas ela não ligava; o que importava era sentir-se parte da natureza, em comunhão com tudo o que existia.
Archibald tossiu, e os pensamentos da silfa se voltaram para seu amado, com quem se importava mais que com florestas, animais, o céu e o mar. Ele abriu os olhos e, ao perceber que estava deitado no colo de Mishtra, disse:
– Saímos de Lacoresh?
A silfa acenou com a cabeça, afirmativamente.
– Eu sabia... Estou melhor, sinto-me leve, deixei para trás uma parte ruim de mim, sinto isso. – de repente, franziu a testa e se contorceu.
"O que houve, meu amor?" – quis saber Mishtra.
– Dor, estou sentindo muita dor... Isso é bom, acho que estou voltando a ser eu mesmo.
"Onde dói?" – perguntou ela, preocupada.
– No braço, peito, ombro... Ai, dói muito! Que dor! – e Archibald chorou de dor.
Mishtra, sem poder ajudá-lo, sentiu uma forte dor no peito e também chorou. Aquilo chamou a atenção de todos. Um dos marinheiros trouxe um garrafão de vinho e ofereceu, dizendo, com sotaque de Dacs:
– Beba, rapaz, beba bastante. Isso vai ajudar com suas dores.
Archibald aceitou e, em pouco tempo, voltou a dormir. Todos, novamente reunidos, o observavam, preocupados.
Kiorina abraçou Gorum, Mishtra e Noran, muito feliz por vê-los novamente. Muitas coisas ruins haviam acontecido, mas, no final, pelo menos estavam juntos.
Noran, sentado num barril, observava os demais, sentados no chão do navio, ao redor de Archibald, em silêncio.
– E agora? – perguntou Kiorina.
– Estou muito preocupado. De repente, só consigo pensar em Modevarsh, a quem devo a vida. Acho que não nos resta outra coisa a fazer: temos de encontrar o oráculo de Shimitsu. – revelou Kyle.
– Mas, onde? Não temos pistas! – disse Gorum.
– Temos, sim. – corrigiu Kiorina. – Os reinos bárbaros.
– Ou nove reinos, ou terra dos nove vales. – corrigiu Noran, falando com dificuldade. – Acho melhor começarmos a chamar esse lugar por outro nome, pois não acredito que os nativos de lá gostem de ser chamados bárbaros, ainda que o sejam.
– Temos então que encontrar uma droga de oráculo! – reclamou Kiorina.
– Calma, Kina, precisamos ter calma e paciência. Sinto que isso tem uma grande importância. É sobre meu dom, agora eu sei. Carrego dentro de mim um raro dom, transmitido por Shimitsu. Preciso aprender sobre ele, encontrar-me com seu oráculo. – disse Kyle.
– Do que você está falando, garoto? – inquiriu Gorum.
– É verdade, Gorum, foi o velho Modevarsh quem me contou. – confirmou Kyle.
– Está certo, Kyle. – disse Gorum, mais animado. – Sinto algo estranho, uma força nova, uma inspiração sobre o futuro. Apesar de tudo o que passamos, sinto nascer a esperança...
– Lembrei-me agora do que o bom velhinho me disse. Ele falou que o que eu mais devia prezar era o conhecimento. Será que ele falava do oráculo? Será esse o tipo de conhecimento que devo buscar? – disse Kiorina.
"Eu não sei muito sobre essas coisas... só sei que vocês são meus queridos amigos e companheiros, com quem estarei até o fim!" – enviou Mishtra para todos, com certo esforço.
– Eu também farei o que puder, em nome de meu mestre, para reparar os malefícios que se espalham sobre Lacoresh e os reinos vizinhos. Talvez... – disse Noran.
– O quê? – quis saber Kyle.
– Eu estava pensando na carta de despedida do meu mestre. Ele falou que um novo elo estava para surgir. Falou também sobre um tormento, que acredito já ter vindo. Ele disse que temia por todos, mas que, apesar de tudo, algo de belo surgiria. Disse também que o lugar onde impera apenas a ordem não é bom e que do tormento é que surgiria um novo elo.
– Será que podemos acreditar que disso tudo surgirá algo de bom? – disse Kiorina.
– É o que parece, minha menina! Talvez seja por isso que eu sinta essa ponta de esperança. – exclamou Gorum.
– Que bom podermos, depois de tudo, pensar essas coisas. – disse Kyle e fez uma pausa. – No entanto, vou-lhes contar uma das maiores lições que tirei do que passamos: não é porque o Sr. Kivion falou isso tudo que podemos cruzar os braços e esperar. Se não lutarmos, não agarrarmos o destino e construirmos o futuro com nossas ações, com muita força de vontade, pode ser que esse algo bom nunca surja!
– Eu sei que você não gosta quando falo nele, mas seu pai ficaria orgulhoso de ver o homem que você se tornou, garoto. – disse Gorum levantando-se e puxando Kyle para um longo abraço.
– Quanto tempo falta para chegarmos a Dacs? – quis saber Kiorina.
– Conversei com os marinheiros há pouco, e eles me disseram que, talvez, uns dois meses.
– Dois meses? – assustou-se a ruiva. – O que vamos fazer durante dois meses num barco?
– Podemos fazer um concurso para ver quem vomita menos durante a viagem. Não sei quem ganhará, mas parece que não precisamos nos preocupar em competir com Noran. – disse Gorum, rindo.
Todos riram bastante, e o navio balançou um pouco mais. Em poucos momentos, Noran levantou, nauseado, e disse, com dificuldade:
– Com licença. – e voltou à popa do navio.
Apesar de pouco apropriado, todos riram.
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