Capítulo 71
CAPÍTULO 71
Eram cerca de quinze cavaleiros montados, vestindo armaduras completas e trazendo, em suas capas, escudos e outros acessórios, símbolos dos cavaleiros de Lacoresh. Aproximavam-se rapidamente do local onde ainda havia luta. O ar cheirava a sangue; os que pereceram ainda estavam quentes.
A situação era difícil. Noran concentrava-se, buscando sua recuperação. Não conseguia pensar direito e tinha dificuldades para manter-se em pé, tudo devido ao grande esforço que acabara de realizar, somado aos esforços dos últimos dias. Gorum acordou de um pequeno desmaio e percebeu que não estava muito machucado e que haviam vencido, mas escutou barulho de cavalos, o que o preocupou. Pôs-se de pé e foi depressa na direção da carroça. Mishtra tinha Archibald nos braços e não sabia o que fazer com os virotes que estavam cravados em seu corpo, um no braço, outro no peito. Além disso, ele parecia ter quebrado o ombro com a violenta martelada que tomou do Cavaleiro Negro. A silfa apenas chorava, imaginando que o fim se aproximava para seu amado. Kyle estava atordoado e escutava o cavalgar dos cavaleiros ecoando dentro de sua cabeça. O que poderia ser feito? Olhou para o chão em sua frente e viu o corpo disforme do homem que um dia havia sido o Cavaleiro Roy. Mal podia acreditar. Iniciou uma reflexão, enquanto observava o avanço dos cavaleiros. Que tipo de loucura era aquela? Como podia estar acontecendo tanta morte, tortura e sofrimento? Por que estavam lutando, afinal de contas?
– Kyle! – gritou Gorum, com sua voz estrondosa.
Ele despertou para a realidade, sentindo todos os pêlos de seu braço se arrepiarem sob a armadura. Olhou as mãos e viu um bocado da gosma amarela que o Cavaleiro Negro secretava. Havia pingos dela em seu rosto e na armadura.
– Garoto, preste atenção! Precisamos fazer alguma coisa e logo! Não temos tempo!
Com isso, Kyle virou-se e viu a carroça parada, os cavalos inquietos, Gorum, preocupado, olhando para ele, Felear, pálido e rígido, suando tremendamente, e Mishtra, chorando, com Archibald nos braços, prestes a morrer.
Percebendo que tinha Kyle novamente, Gorum entrou na carroça e de lá retirou Kiorina, desacordada e amarrada, colocando-a sobre os ombros. Kyle correu até lá e, desembainhando a espada, cortou as tiras de couro que prendiam os cavalos no lado esquerdo da carroça. Felear, balançando a cabeça, voltou a si e acompanhou a ação de Kyle do outro lado.
Mesmo sentindo náuseas e vertigem, Noran resolveu usar suas faculdades uma vez mais. Concentrou-se nos cavalos que eram a montaria de Arete, do Cavaleiro Negro, Felear e Ruko. Mesmo sendo uma tarefa simples, demandou extremo esforço, que culminou numa hemorragia interna. No mesmo instante, fios de sangue saíram das narinas do tisamirense, que sentiu gosto de sangue na boca.
Gorum colocou Kiorina sobre o cavalo que pertencia a Arete e Kyle montou em seguida. Mishtra montou um dos cavalos da carroça, passando Archibald para os braços do gigante, que a ajudou a colocá-lo sobre a sela. Felear, montando seu próprio cavalo, foi auxiliar Ector, que gemia e pedia ajuda. Gorum montou o grande cavalo do Cavaleiro Negro. Noran atraiu para si o cavalo que pertencia a Ruko. Felear entregou a Ector o outro cavalo que retirara da carroça e ajudou o rapaz a subir. Seus ferimentos não pareciam muito sérios; conseguira retirar o virote que lhe penetrou o abdome, mas ainda tinha um no braço.
Finalmente estavam todos montados, mas era tarde demais. O grupo de cavaleiros estava próximo, não haveria como escapar. Como vencer tantos? Seria impossível, o fim se aproximava.
Algo peculiar ocorreu, então. O cavaleiro que parecia liderar a tropa destacou-se do grupo principal, que parou em seguida. Diminuiu a velocidade de seu cavalo para um trote lento. Vestia uma armadura completa de placas, com brilho prateado, e usava uma capa de um vermelho vibrante, presa ao peito por um botão dourado. Gorum tomou a frente do grupo e desembainhou uma espada menor, que coletara de um dos soldados caídos. Surpreendeu-se quando viu o brasão desenhado no grade botão dourado que prendia as duas pontas da capa do cavaleiro.
– Julius?
O cavaleiro levantou o protetor de seu elmo, revelando a face. Seus olhos azuis claríssimos fixaram-se nos olhos escuros do gigante. Era mesmo Julius, o cavaleiro Carmin.
– Olá, Gorum. – olhou para Kyle e acenou com a cabeça. – Blackwing...
A garganta de Gorum secou e ele ficou pasmo, sem palavras.
– Escute bem, Gorum, só vou dizer uma vez. Esqueçam tudo o que aconteceu. Entreguem-se a mim, sem mais lutas. Garanto a vocês todos a possibilidade de trabalhar com nosso querido rei. Suas faltas serão perdoadas com o trabalho para o reino.
– Mentira! Você se vendeu, Julius, vendeu-se para esses necromantes desgraçados. – acusou Kyle.
– Cuidado com a língua, jovem Blackwing, palavras como essas podem impedir seu perdão.
– Perdão? São eles que têm que pedir perdão e não só a nós, mas a todos do reino! Você nega as desgraças que eles trouxeram? Nossos companheiros foram transformados em monstros! – disse Kyle, irritado, apontando o corpo de Roy.
Julius Fortrail não respondeu, apenas apertou o olhar e mordeu os lábios. Gorum percebeu que ele estava em conflito.
– Por que, Julius, pelo menos me explique por que? – pediu Gorum, decepcionado.
– Por quê? Você sabe, Gorum, que sempre fui o mais racional, o mais frio, o que pensava pelo grupo, o que conseguia manter a calma, o que sempre apresentava as melhores estratégias. Eu não mudei. Continuo trabalhando com a lógica, acima de tudo.
– Então, me diga, Julius, que lógica é essa que fez você trair seu reino e seu povo em favor desses monstros?
– É simples. Você falou em trair o reino e trair o povo, mas eu não traí nem um nem outro. Como poderia trair o povo, se ele não é nada, não pode nada, simplesmente vive sua vida pobre, é oprimido, vive e morre sob a lei do sangue azul? O que pode o povo contra a nobreza? Por que aceitam os direitos da nobreza? Como trair um povo que já é traído por si? Quanto ao reino, ele simplesmente é o povo governado por um rei. O que ocorre hoje é exatamente o mesmo que sempre ocorreu: o povo continua oprimido, vivendo sua pequena vida, e um grupo de nobres governantes foi substituído por outro. Não há diferença. Veja a história de nosso reino e tente contar quantas vezes isso ocorreu. Entendam, sob o meu ponto de vista, os traidores são vocês.
Gorum ficou um pouco confuso, mas confirmou sua opinião.
– Você sabe que não é bem assim. Eles são malignos, vão trazer o mal para nós.
– Não tenho tanta certeza disso, mas não me importo. Pelo que sei, trarão o progresso ao nosso reino. Se você soubesse...
– O quê? – quis saber Kyle.
– Os planos que nosso rei tem para Lacoresh, o papel que nosso reino irá desempenhar nos anos futuros, as grandes conquistas, a justiça, nossa cultura, nossos deuses, tudo isso será espalhado por todo o mundo.
– Você está falando de guerra? – indagou Noran.
– Sim, tisamirense, é o que eu vejo pela frente, mas posso estar errado. Por isso, decidi ficar do lado de quem vai vencer, agir como sempre agi. Quero a vitória, nunca a derrota. Então, o que me dizem? Aproveitem a chance! Juntem-se a nós, vamos todos lutar por uma mesma causa! – disse e estendeu a mão aberta para eles.
– Não podemos. – disse Kyle.
– Não podemos, Julius, infelizmente teremos que lutar. – confirmou Gorum.
– Muito bem, se é assim desejam... – fez uma pausa, apertou os olhos, mordeu os lábios e decretou: – Vão, fujam! Vocês terão até o pôr do sol. Fujam de uma vez, antes que eu mude de idéia. Não somos maus. É impossível que todos sejam maus. – fez uma pausa. – Gorum, considere essa trégua uma consideração à nossa amizade, a Armand e, por conseguinte, a seu filho, Kyle. Se nossos caminhos se cruzarem novamente, porém, é bom lembrar que estamos lutando em lados opostos.
– Obrigado, Julius, e cuide-se! Espero que, um dia, você possa perceber o quanto está errado. Quando quiser lutar do nosso lado, saiba que será bem-vindo.
– Adeus, meu amigo.
– Adeus!
Imediatamente começaram a cavalgar mato adentro. Em seguida, Julius daria ordens a seus homens para que não os seguissem. Explicou que os deixou ir e que não os perseguiria até o pôr do sol, para pagar um débito de honra com o cavaleiro Gorum. Os cavaleiros que estavam sob seu comando entenderam isso bem. Assim como o cavaleiro Felear, eram pessoas honradas e, por isso, foram escolhidas por Julius para usar seu brasão, o brasão dos Carmin.
**********
Pouco antes do pôr do sol, chegaram ao ponto de encontro no bosque. Deixaram os cavalos amarrados no local e decidiram que seria mais prudente voltar para Lacoresh sob o ocultamento da carroça.
O foco das preocupações era Archibald. Estava pálido, perdera muito sangue, mal podiam acreditar que ele havia sobrevivido até então. Qualquer outro, em condições similares, já teria morrido, o que deixou Kyle e Gorum bastante impressionados. Assim que entraram na carroça, Noran deixou-se desmaiar, pois estava exausto. Kiorina já havia sido desamarrada, mas continuava inconsciente. Ector parecia recuperar-se bem, depois dos devidos cuidados.
Havia também uma preocupação com Kandel, mas seu destino era obscuro naquele momento. Era noite e a tensão maior estava por vir. Após tantos problemas, ao menos alguma coisa correu bem: o cocheiro conhecia os homens que estavam de guarda no portão lateral; puderam entrar sem revista. Em pouco tempo, chegaram até a taverna, onde encontraram o preocupado Klereon Nasbit.
– Vejo que estão quase todos aqui. Imaginei que, se voltassem, alguns de vocês poderiam precisar de cuidado. Vamos entrar pela porta dos fundos, o irmão Meinard irá cuidar dos feridos.
– Irmão Meinard? – sussurrou Archibald, sorrindo.
– Sim, você o conhece?
Archibald apenas sorriu; pensava que seu amigo morrera, junto com os outros Naomir.
– Preciso deixá-los por alguns instantes. Acredito que precisaremos trocar de esconderijo novamente, depois do acontecido. Voltarei em breve, com notícias.
Pouco depois, entravam na taverna, pelos fundos.
– Irmão DeReifos! Grande Forlon! Precisamos cuidar de você!
Archibald viu a imagem do irmão Meinard um pouco desfocada, a mesma cara de fanfarrão, apenas com um olhar muito preocupado, e sorriu.
Meinard aplicou vários emplastos de ervas curativas e invocou as forças dos sagrados ofícios. Procurou ceder de sua própria força, convertendo-a em vitalidade para Archibald. Quando terminou, os ferimentos do ex-monge haviam-se fechado e ele, dormido. Sentou-se exausto e exclamou:
– Preciso muito de comida!
Foi um pedido que viram com bons olhos, já que todos estavam famintos. Em pouco tempo, veio da cozinha muita sopa e bebidas. Comeram. Estavam preocupados com Noran e Kiorina, ambos desacordados. O irmão Meinard disse que estavam bem, apenas dormindo, e era melhor que continuassem assim. Durante a refeição, Felear e Meinard conversaram bastante. Kyle e Gorum discutiam planos de ação e fuga. Logo depois da refeição, Nasbit voltou, trazendo notícias.
– Kyle, Gorum, estão procurando por vocês em toda a cidade. Não é seguro que permaneçam aqui. Consegui que embarquem num navio que parte esta noite.
– Para onde? – indagou Kyle.
– Para Dacs.
– Ótimo. – animou-se Gorum, que não via a hora de deixar Lacoresh.
– Vou fazer os arranjos finais e venho buscá-los. – Nasbit fez uma pausa e encarou Felear. – Você embarca também?
– Não. Estive conversando com Meinard e acho que há muito trabalho a ser feito aqui. Não sei se quero me afastar do meu lar, preciso lutar por ele. Confio em Kyle para trazer-nos ajuda de fora.
– Seja bem-vindo ao nosso movimento! – disse Nasbit, animado, e se despediu.
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