Capítulo 67
CAPÍTULO 67
Depois de tudo o que aconteceu, algo parecia não ter mudado: a grandeza de Lacoresh, uma cidade milenar, que existia antes mesmo da consolidação do Reino de Lacoresh e, em tempos passados, foi uma grande e poderosa cidade-estado. Uma de suas construções marcantes, das poucas que resistiram desde a antigüidade, é o farol de Lacoresh, uma torre circular altíssima, o ponto mais alto da cidade. No topo, ficava alojado o Globo da Luz Eterna, artefato criado por um conselho de poderosos feiticeiros, no tempo de sua construção. Para Noran e seus companheiros, porém, não foi o farol o que chamou mais a atenção, mas o mar, uma impressionante novidade para todos, exceto a tripulação do barco e Gorum. Quando crianças, Kyle, Kiorina e Archibald haviam feito uma viagem para Lacoresh e viram o mar, mas, agora, era como se o vissem pela primeira vez, como Noran. Era um dia frio, típico de fim de inverno, ensolarado e com o céu completamente azul. O mar estava calmo e multitonal: bem próximo de onde estavam, verde claro e intenso; à medida que o olhar se fixava em pontos mais distantes, azul esverdeado, até se tornar profundamente azul no horizonte. Seu cheiro salgado invadiu o olfato de todos. Havia uma forte brisa impulsionando a vela do navio, que alcançou uma velocidade muito maior do que seria prudente desenvolver, enquanto estavam no rio. Centenas de pássaros sobrevoavam a região e mergulhavam no mar, em busca de alimento, compondo um ambiente muito diferente do que estavam acostumados. Kyle olhava fixamente o farol, ainda distante, recordando-se daquele passeio.
– Lembra-se de quando viemos a Lacoresh, Archibald?
– Sim, quando subimos no farol, você ficou morrendo de medo e se agarrou à perna de Gorum. – disse Archibald, sorrindo.
Gorum riu alto.
– É mesmo, você morria de medo de lugares altos! E a Kina, você se lembra? Cheguei a pensar em amarrá-la a uma corda, de tanto que se debruçava naquelas janelas!
Quando Gorum mencionou Kiorina, os sorrisos se esvaíram dos lábios de todos. Gorum foi o último a lembrar-se da situação em que estavam e parar de sorrir.
– Vamos nos preparar para a chegada no porto. Sugiro usarmos os mantos e capuzes cedidos por Alonzo. – disse Archibald.
– Noran, você não vai vestir o seu? – quis saber Gorum.
– O quê? Desculpe-me, acho que me distraí.
– Foi o mar, não? – sugeriu Gorum.
– É impressionante! Não sei o que é mais belo: o mar ou as montanhas da cordilheira de Thai.
– Esse mundo é tão estranho...
– Certamente, Gorum!
– Sabe, Noran, às vezes não dá para entender como pode haver coisas tão belas coexistindo com tanta miséria, guerra, fome, morte e tortura.
– Isso deve ser parte da sabedoria misteriosa do criador.
– Como assim? Você quer dizer dos deuses pais, aquele cujos nomes não conhecemos?
– Que diferença faz se foram deuses que criaram tudo ou apenas um deus?
– Agora me recordo, ouvi um clérigo certa vez explicando que a razão da diversidade do mundo é a existência de vários deuses criadores.
– É... mas quem teria criado esses deuses? – questionou Noran.
– E quem teria criado quem criou os deuses? – retrucou Gorum.
– É uma observação e tanto. – sorriu Noran.
– Isso é um quebra-cabeças sem solução. É por isso que assuntos de religião devem ser aceitos sem muito questionamento. Acho que inventaram isso para as pessoas não enlouquecerem pensando em quem criou o que criou o que criou e assim por diante.
– Concordo. – Noran fez uma pausa e olhou nos olhos de Gorum. – É surpreendente o que você guarda dentro de si, caro amigo.
– Sabe, meu velho, já passei por muita coisa. Deve ser a experiência.
– Certamente, mas conheci pessoas mais experientes que não tinham a visão que você tem. O que me faz pensar...
– O quê?
– Em que você realmente acredita? O que o move?
– Acredito no corte da minha espada e o que me move são minhas pernas!
– Gorum, você é impossível! – disse Noran, rindo.
– Ei, preparem-se, vocês dois! Vamos atracar logo, precisamos ficar atentos! – interferiu Kyle, duramente.
– Relaxe, garoto! Se ficar tenso assim, vai chamar mais a atenção que se sorrir e agir com naturalidade.
– Tudo bem. – disse Kyle, percebendo que estava bastante nervoso. – Diga-me, Noran, você vai nos esconder novamente?
– Se for necessário, podem contar comigo. Gorum, guarde um pouco de sua energia para quando formos buscar Kiorina.
– Certo, vou tentar.
– O que há com você, Mishtra? Está tão quieta! – disse Archibald, sem receio de ofender a silfa, que não podia falar.
"Eu não gosto muito do mar."
– Você já esteve no mar?
"Já, mas não quero falar disso, certo?" – comunicou ela, carinhosa.
– Tudo bem, minha linda. – concordou Archibald, abraçando-a.
– Olhe, Kyle, parece que os pombinhos estão se entendendo. – comentou Gorum, baixinho.
– Imagino que o afeto terá um bom efeito em Archibald.
– Puxa, garoto, há momentos em que não entendo de onde saem essas suas frases! Que tipo de comentário é esse?
– Sei lá, Gorum, não fica no meu pé, certo? – retrucou Kyle, um pouco irritado.
– Você está nervoso mesmo!
– Um pouco, mas, como disse Noran, é melhor eu guardar minha ira, minha espada, meu dom da morte para nossos inimigos.
Gorum ficou branco e sua garganta secou.
– O que houve, Gorum? – perguntou Kyle.
– Eu sei que você não gosta da comparação, mas ouvir você falar isso foi como ver um fantasma. Você falou exatamente como seu pai!
– Que nada, Gorum, é você que vê meu pai em tudo o que eu falo.
– Onde você ouviu isso?
– Isso o quê? Do que você está falando, Gorum? Está ficando louco?
– Não, aliás, acho que se não enlouqueci até hoje, não enlouqueço mais. Falo frase: ‘minha ira, minha espada, meu dom da morte’. Quem dizia isso era seu pai.
– Então, é natural que eu fale também, afinal sou filho dele, ora!
– É, deve ser algo assim, garoto. – Gorum teve um estranho pensamento, que deixou sua cabeça confusa, mas, antes que prosseguisse na sua linha de raciocínio, foi interrompido pelo tranco que o barco deu no cais e o barulho da madeira se contorcendo. Logo os marinheiros atracaram. Haviam chegado.
– E agora? – disse Kyle, nervoso.
Agora descemos e seguimos as instruções do imediato. Relaxe, é uma cidade muito grande, olhe só quanta gente, quantos barcos... A multidão vai ajudar na nossa camuflagem.
Kyle olhou ao redor e percebeu o tamanho do porto. Não podia contar a quantidade de barcos, muito menos a de pessoas. Só a região portuária era maior que toda Kamanesh. Acalmou-se um pouco, quando pensou que estar entre tanta gente seria um obstáculo real, mesmo para o mais poderoso dos necromantes.
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