Capítulo 66

CAPÍTULO 66

Era tarde no porto de Kamanesh; a cidade dormia, apenas bêbados, bandidos ou fugitivos estariam em atividade. Sem usar nenhum tipo de iluminação, algumas figuras, cujas silhuetas podiam ser vistas, caminhavam na direção de um barco, em silêncio, pois não queriam atrair a atenção. Havia alguns marujos a bordo, que se aproximaram e pareciam preparar o barco para zarpar.

– Muito obrigado pela ajuda, Alonzo. – agradeceu Gorum, carregando Archibald nos braços.

– Não há de quê. Tenho certeza de que o Sr. Atir aprovará minhas ações, quando retornar, mas, com isso, vocês ficam devendo um favor para a casa Atir, certo? – retrucou Alonzo, bem baixo.

– Qualquer coisa! – concordou, Gorum sorrindo.

– Vão de uma vez, é perigoso demais ficarem muito tempo aqui.

Sem demora, todos adentraram a embarcação. Era uma nau cargueira para expedições comerciais de curta duração, mas não estava longe de ser um navio capaz de cruzar oceanos. Alonzo deu as últimas orientações ao responsável pela embarcação e, antes de ir, revelou a Gorum:

– Quando chegarem em Lacoresh, o imediato colocará vocês em contato com os rebeldes, que poderão ajudá-los. Para nós, comerciantes, a ajuda que cedemos já ultrapassou os limites. Entenda, não podemos assumir riscos muito grandes, envolvendo-nos diretamente com a rebelião, apesar de saber que realmente ocorreu um golpe.

– Não se preocupe, Alonzo, estaremos bem.

Alonzo desembarcou, e logo os marujos colocaram o barco para descer o rio até a cidade de Lacoresh. O grupo imaginava que, descendo de barco até lá, teria chance de chegar antecipadamente à carroça que levava Kiorina. Talvez houvesse tempo de agir antes que ela fosse levada a um lugar bem guardado. Preparavam-se para dormir no compartimento de carga do navio. Mishtra havia se manifestado, informando que faria a vigília. Os outros se acomodaram em cima de sacos vazios amontoados. O local era iluminado por uma vela num castiçal preso a uma pilastra de madeira.

– Consegue falar, Noran? – indagou Kyle.

– Sim, mas minha cabeça ainda dói muito. – respondeu ele, com os olhos fechados.

– Tem idéia do que pode ter acontecido a Archibald?

– Não sei bem, mas ele estava numa espécie de transe. – disse Noran e completou: – É melhor descansarmos um pouco. Amanhã falaremos mais e perguntaremos ao próprio Archibald, quando ele despertar.

**********

Naquela noite, em alguma estrada não muito distante, havia uma carroça parada. Duas figuras estavam sentadas ao redor de uma fogueira. Assavam um grande pedaço de carne e se preparavam para a refeição. Um terceiro homem, vindo da carroça, juntou-se a eles.

– E então, Ruko, ela ainda dorme? – perguntou o homem velho, condutor da carroça.

– Sim, como uma pedra! Essa ruiva é um pedaço de mau caminho, não Felear?

Felear, um cavaleiro do duque que havia se ordenado junto com Kyle, comeu um pedaço de carne e respondeu.

– É. Ouvi dizer que é garota de Blackwing, Ruko.

– Acho que não é mais, ha, ha, ha! – zombou Ruko, que tinha péssimas maneiras e costumava cheirar mal. – O que me diz, Felear?

– O quê? – retrucou Felear, homem de cabelos castanhos, bem penteados, pele bem cuidada, muito limpo.

– Vamos acordar a garota e fazer uma festinha, só nós quatro! O que acha?

– Não! A moça é para o Sr. Yourdon, é direito dele! – alertou o condutor, afobado.

– E ainda será, velho idiota! Além do mais, como ele vai ficar sabendo? É só fazer com cuidado, que dá tudo certo.

– Esqueceu-se de que ele é um bruxo, Sr. Ruko? Ele saberá e então...

– Ora, não venha com essa, velhote, você está é com medo! Felear, o que me diz, hein?

– Não seja tolo, Ruko! Somos cavaleiros! Não somos homens sem honra, muito menos mercenários! Temos prestígio, somos respeitados. Não precisamos tomar mulheres a força! Você sabe muito bem, as donzelas se atiram para cima de qualquer um de nós. Tenha vergonha, homem! – explodiu Felear e continuou a comer.

– Ah, você e seu senso de justiça. Duvido que, quando aquele feiticeiro colocar as mãos nessa belezinha, vai maneirar e ser honrado.

– Isso é problema dele. E quem disse que feiticeiros precisam ter honra? Nós cavaleiros é que devemos resolver os problemas do reino quanto à honra. Portanto, seja honrado e zele pela reputação dos cavaleiros, pois você sabe muito bem o que acontece com aquele que a suja, não sabe?

– Sei, sei... Acho melhor irmos, então. Você e suas lições de honra e moral!

– Não se preocupe, Ruko, um dia você aprende.

**********

Archibald despertou num salto. Assustado, procurou entender onde estava. Viu Kyle, Gorum e Noran dormindo a seu lado. Escutou som de água e entendeu que estava dentro de uma embarcação. Teriam sido feitos prisioneiros? O que havia acontecido? Lembrava-se de terem sido perseguidos até a praça da Meia-Lua, em Kamanesh. Deixaram os cavalos, na esperança de mesclaram-se com a multidão e conseguiram despistar os soldados que os perseguiam. Depois, haviam lutado e, usando o martelo de guerra, ele derrubara dois soldados, mas, e depois? Ah, sim! Um cavaleiro havia se jogado do cavalo.

– Que confusão! – resmungou.

Havia uma escada vertical que dava para a proa do barco. Subiu os degraus e levantou a grade de madeira que estava encostada. Logo que saiu, recebeu pensamentos em sua mente. "Archibald, querido! Você está bem?"

– Mishtra!

Assim que o ex-monge conseguiu ficar de pé, foi abraçado pela silfa. Seguiram-se beijos e carícias. Estavam apaixonados.

"O que houve com você? Eu estava preocupada!"

– Não sei, não me lembro bem, as coisas estão um pouco confusas na minha cabeça.

"Não importa! O importante é que você está melhor!"

– E Kiorina, onde está?

"Foi capturada. Está sendo levada para a cidade de Lacoresh."

– Por Forlon! Como isso foi acontecer?

"É uma longa história."

Sentaram-se na lateral do barco e assistiram ao nascimento do dia, enquanto conversavam. Mishtra contou-lhe tudo o que havia acontecido, desde a separação, dias atrás. Depois, Archibald narrou seu confronto com Weiss, no mosteiro. Revelou que aconteceu algo estranho, muito parecido com o que ocorrera no dia anterior. Kyle havia lhe dito que parecia diferente, como se estivesse com a cabeça noutro lugar. Mishtra confirmou a impressão de Kyle com relação ao primeiro episódio e disse que parecia uma espécie de transe. Archibald estava confuso com o que ocorria consigo, ansioso por fazer alguma coisa por Kiorina, mas, ao mesmo tempo, feliz ao lado de Mishtra. Seus sentimentos estavam misturados de tal forma, que era difícil diferenciar tudo. Apesar de contar uma série de coisas para Mishtra, omitiu as questões que diziam respeito ao sangue sílfico, pois temia a reação dela, temia uma rejeição. Mais uma sensação se misturava às outras: o temor de perder o afeto de Mishtra. Sentia seu interior borbulhando e sabia que não era à toa.

Com o dia já feito, Noran, o primeiro dos três a acordar, subiu ao convés. Ao ver Mishtra e Archibald muito íntimos, teve uma sensação de desagrado. Aquilo doeu nele, mas era uma dor que não deveria existir.

– Bom dia. – cumprimentou.

– Olá, Noran, descansou bem? – perguntou Archibald.

– Sim. Através de uma técnica de meditação profunda, consegui recuperar quase todos os danos que sofri por auto-imposição.

– Mishtra estava me contando que você usou suas faculdades, indo além dos limites, para poder nos salvar. Queria agradecer seu esforço.

– Não foi nada. É o mínimo que podia fazer; afinal, estou com vocês, não estou? – disse ele, estendendo a mão para cumprimentar Archibald. Assim que suas mãos se tocaram, Noran escutou um zumbido fraco e teve uma sensação estranha.

– Algo curioso está acontecendo com você, meu caro. Precisamos tirar um tempo para investigar essa situação, não acha?

– Sim, mas logo chegaremos a Lacoresh e temos que tentar salvar Kiorina a todo custo!

– Concordo. – veio a voz de Kyle, que saía do porão naquele momento. Ele parecia melhor, apesar da bandagem branca, manchada com seu sangue, que usava, bem apertada, em torno da cabeça.

– Precisamos saber se poderemos contar com a ajuda dos rebeldes. – disse Gorum, vindo logo atrás.

– Logo saberemos. Acho que o mais prudente quando os encontrarmos será sondar suas mentes, para ter certeza de que são confiáveis e estão dispostos a arriscar suas vidas para nos ajudar. – retrucou Noran.

– É certo que os necromantes usarão Kiorina como isca para nos capturar. – disse Kyle.

– É verdade, mas eles não sabem que já chegamos. Temos a surpresa a nosso favor, o que deve nos dar uma chance. – disse Gorum.

– Talvez nem tanto, meu amigo. Eles têm diversos recursos e são poderosos. Não se esqueça de que trabalhei com eles. Talvez o prudente seja irmos mais preparados para uma emboscada, que para fazer uma surpresa. – considerou Noran.

– Eu concordo com Noran. Não podemos ser muito confiantes, é necessário termos cautela. Além de tudo, eles estão no poder. Fico imaginando que talvez até saibam que estamos neste barco e permitiram que chegássemos aqui para cair numa de suas armadilhas. – disse Kyle.

– Como poderemos confiar em alguém, então? Temos que arriscar alguma coisa, ou nada faremos. – disse Archibald.

– Isso, com certeza, Archie, com certeza. – concordou Kyle.

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