Capítulo 65

CAPÍTULO 65

Noran abriu os olhos; sua mente fora destrancada. Por alguns instantes, desejou que aquilo não fosse verdade. Era muito doloroso estar no mesmo quarto com duas mulheres nas quais causou tanto sofrimento. Ele sentia a presença delas, mas não ousava encará-las.

– Agradeço a ajuda de vocês.

Giordana levantou-se e deixou o quarto, sem dizer uma palavra. Noran compreendeu.

"Consegue andar?" – perguntou Mishtra.

– Acho que sim. – disse ele, virando-se na cama e colocando os pés no chão.

"Prepare-se, temos que tentar alcançar Gorum."

– Onde ele foi?

"Foi atrás de Kiorina. Saiu pouco antes de o dia raiar."

– Preciso beber e comer alguma coisa.

"Vamos providenciar isso rapidamente e sair."

Pouco tempo depois, estavam na estrada que levava a Kamanesh, com o sol alto. Saíam de Tanir bem depois de Gorum.

– Será difícil alcançá-lo... – constatou Noran.

Escutaram barulho de cavalos e, pouco depois, avistaram dois cavaleiros se aproximando. Noran sondou suas intenções e viu que não eram nada boas. Estavam atrás de Gorum e quem quer que o acompanhasse. Tinham a missão de capturá-lo. O superior deles disse que o gigante era um rebelde e estava acompanhado de outros, inclusive bruxas e bruxos.

– Mishtra, demonstre calma, terei de agir. – avisou Noran.

Depois de tudo o que havia passado, Noran não estava em plena capacidade de uso de suas faculdades. Mediu a força de vontade dos cavaleiros e decidiu que não era necessário ferir suas mentes. Assumiu o controle de ambos, fazendo-os parar os cavalos. Os cavaleiros desceram e se deitaram no chão. Em pouco tempo, dormiram. Se a manipulação de Noran funcionasse perfeitamente, quando acordassem, acreditariam ter bebido demais, dormido e perdido seus cavalos. Mishtra escolheu a espada de um dos cavaleiros para levar consigo e montou o cavalo cinza, após retirar dele a sela e os arreios, enquanto Noran pegou o corcel marrom avermelhado, com manchas brancas. Dispararam pela estrada com esperança de encontrar Gorum. Cavalgaram céleres pela estrada de terra batida, deixando muita poeira suspensa em seu rastro. Avistaram Kamanesh ao longe, de cima de uma colina suave. A vista forçou uma pequena parada. Era a mesma grande cidade. Em seguida, tocaram os cavalos colina abaixo.

– Encontrei! – exclamou Noran e estendeu seus pensamentos a Gorum: "Gorum, é Noran, estamos próximos, espere por nós."

Ao longe, Gorum sentiu um leve calafrio ao captar a mensagem. Esperou pouco tempo e avistou os cavalos se aproximando. Reconheceu Noran e Mishtra e respirou aliviado.

– Noran, meu caro, estava preocupado com você. Achei que ia dormir para sempre.

– Isso foi decerto uma possibilidade. – constatou Noran, gravemente.

– É bom tê-lo de volta! Vejo que conseguiram esses cavalos com cavaleiros, não foi? – disse Gorum, examinando a sela do cavalo de Noran. – É melhor deixá-los, assim chamamos menos a atenção.

Caminharam cidade adentro. Havia alguma movimentação, mas os três dificilmente seriam ignorados.

– Vou tentar nos ocultar. – anunciou Noran.

Com grande esforço, Noran procurou projetar na mente de todos os passantes a imagem de um grupo de três camponeses, o que absorveu praticamente toda a sua capacidade de concentração.

Gorum conduzia-os pelo caminho que levaria à casa dos pais Kiorina. Avistou, na mesma direção, um grande cone de fumaça escura, que se projetava para o céu. Aquilo o deixou um pouco intrigado e fez com que apertasse o passo. Quando se aproximaram mais, avistaram uma multidão concentrada no local. A casa de Kiorina ardia em chamas e, ao que parecia, as tentativas de apagar o incêndio haviam cessado.

Mishtra, sabendo que Noran mantinha a concentração para disfarçar as aparências, pensou que poderia usar suas faculdades para coletar informação, mas, antes de abrir sua mente, duas pessoas ao lado deles fizeram comentários a respeito do acontecido.

– Você viu a luta? – disse um senhor de idade, bastante curioso.

– Não, acho que pouca gente viu. Quando cheguei, apenas vi a bruxa rebelde sendo levada. – respondeu um jovem bem vestido, carregando alguns canudos de pergaminho.

– Disseram-me que era a filha de Gálius de Lars, o alfaiate. Será que essa história de ela ter retornado dos mortos para vingar a execução dos pais é verdadeira?

– Não, velho! Eu viu um desses mortos-vivos uma vez. Ela estava bem viva.

– Então, será que ela é uma dessas bruxas que tiram gente dos túmulos?

– É possível.

– É verdade que foi um professor da Alta Escola de Magia que a capturou?

– É, um jovem professor, chamado Yourdon.

– E qual a diferença entre um desses magos da Escola e os bruxos?

– Não sei direito, mas acho que é a escolha de usar os feitiços para o bem ou para o mal. A magia é algo fascinante! Eu mesmo tentei ingressar na Escola, mas não passei nos testes. Você precisava ter visto como ele desfez a camada de gelo que estava cobrindo a moça, apenas estalando os dedos.

– Soltou a bruxa? Por quê?

– Velho tolo, se não a soltasse, ela teria morrido de frio e sem ar. Além disso, não se pode sair matando as pessoas assim, sem que sejam julgadas, especialmente bruxos e rebeldes.

– E ela reagiu?

– Não, quando foi libertada, estava muito fraca e caiu.

– Foi então que os cavaleiros do Duque a levaram?

– Foi, ouvi dizer que seria levada a Lacoresh. Pelo que falaram, através dela poderão encontrar o esconderijo dos rebeldes.

– Como é difícil viver em paz! Guerras, bandidagem e agora essa história de rebeldes! Nosso rei está fazendo tantas coisas boas pelo povo... Para que essa história de rebelião?

– É a busca pelo poder, velho. Você, que já viveu tanto, ainda não aprendeu?

– Ah, meu jovem, nos dias de hoje, só se pensa em poder... Será que não vai haver paz nunca?

Após ouvir essas coisas, Mishtra comunicou-se com Gorum e Noran. "Escutaram isso? Precisamos fazer alguma coisa! Temos que salvar Kiorina desses monstros!"

– Talvez seja melhor nos encontrarmos com Kyle e Archibald primeiro. Eles já devem estar chegando. – sugeriu Noran.

Gorum estava para concordar, mas, antes que pudesse falar, sua atenção voltou-se para três cavaleiros montados, que abriam caminho no meio da multidão. Ao mesmo tempo, escutaram vários comentários.

– Mais rebeldes? – veio uma voz.

– Estão indo para a praça da Meia-Lua. – disse outra.

Noran comunicou com grande esforço, enquanto se deslocava. "Acho que devemos ir para lá também."

Gorum e Mishtra seguiram Noran, que abria caminho na multidão, fazendo com que as pessoas saíssem, sem suspeitar da manipulação que sofriam. O tisamirense começava a sentir dores de cabeça, pois, além de comunicar-se e abrir caminho, continuava provendo o disfarce para si e seus companheiros. Pouco depois, chegavam à praça da Meia-Lua. Havia muita confusão; pessoas corriam; barracas de frutas haviam sido derrubadas; o chão estava coberto de frutas pisoteadas. Escutaram alguém gritar:

– É verdade! O cavaleiro Blackwing é um dos rebeldes!

Naquele momento, puderam ter certeza de que Kyle estava envolvido na confusão. Percebendo que um confronto direto seria inevitável, Noran abaixou a camuflagem que irradiava para as mentes de todos. Ao mesmo tempo, avisou seus companheiros. Nesse momento, Mishtra terminava de retirar o arco que estava atravessado em seu tórax e preparava uma flecha, que foi encontrar as costas de um dos cavaleiros montados que passaram havia pouco por eles. Ele tombou para trás e, ao tocar o solo, deslizou e girou até atingir a armação de uma barraca de peixes, que veio abaixo, cobrindo todo o corpo com a mercadoria.

Até aquele momento, nenhum dos três havia sido capaz de avistar Kyle ou Archibald, mas viram que havia uma confusão mais adiante. Dois dos três cavaleiros juntavam-se naquele momento. Gorum desembainhou sua espada e correu na direção da luta. Mishtra preparou outra flecha e colocou um dos dois cavaleiros restantes sob sua mira. Noran esforçou-se para continuar de pé e consciente do que acontecia ao seu redor; estava exigindo demais de si e sofria as conseqüências. O cavaleiro que Mishtra tentou alvejar fugiu da mira, ao descer com o cavalo para o nível do porto, onde, poucos degraus abaixo de onde ficava a praça da Meia-Lua, Kyle lutava com um dos soldados da guarda do duque, um bom espadachim de meia idade.

Archibald estava ainda estava abatido depois da surra que levara de Weiss. Contava, porém, com o poder que invocara aos deuses para conseguir lutar. Empunhava o martelo de guerra que conseguira na batalha pela retomada de Grey. Com ele, havia derrotado dois dos soldados da guarda com certa facilidade. Um deles ainda estava consciente, agonizando, com um osso quebrado na perna direita. Durante o resgate na mina, Archibald ficara sabendo da história do martelo. Era uma arma forjada pelos anões, que possuía incomparável balanceamento. As runas gravadas no metal falavam sobre a família dos forjadores da bela arma.

Naquele instante, puderam ver dois cavaleiros montados descendo a praça da Meia-Lua. Sentiram que o fim se aproximava. Não haveria como escapar, pois logo haveria mais oponentes determinados a acabar com eles.

O soldado mais velho que lutava com Kyle disse:

– Conheci seu pai. Como você, filho de um herói, pôde tornar-se um rebelde, um antagonista do duque, inimigo do Rei? – fez uma pausa nos ataques.

– Eu não sou rebelde! Vocês todos estão sendo enganados por bruxos malignos, que tomaram o trono para si!

– Sinval! Não se deixe enganar pelos rebeldes! Acabemos com eles de uma vez! – comandou um dos cavaleiros que chegava ao local. Girava sobre a cabeça bolas de ferro presas a uma haste por correntes.

O cavaleiro que ainda estava montado avançou e atacou Kyle com as bolas de ferro. Kyle procurou defender-se com a espada, que se enroscou nas correntes da arma do cavaleiro. Com um forte puxão, Kyle foi desarmado.

O outro cavaleiro avançou como um louco para cima de Archibald. Ao aproximar-se do ex-monge, jogou-se com os braços abertos sobre o corpo de seu oponente. Com o forte impacto, Archibald deixou seu martelo cair. Os dois rolaram no chão. Quando parou de girar, Archibald tinha o corpo ferido por diversos espetos de metal que se projetavam da armadura do cavaleiro. Ficou zonzo, sem noção do que estava acontecendo e começou a ser castigado por uma série de socos que o cavaleiro direcionava contra sua cabeça e seu rosto. Começou a pensar coisas estranhas. "Então é assim?" – as palavras ecoaram dentro de sua cabeça; a sensação era de que tudo demorava muito tempo para acontecer. "Eu vou morrer aqui, pelas mãos de um cavaleiro, depois de tudo o que fiz, de tudo o que descobri? E a história do sangue sílfico, de que me servirá?" – percebeu que outro soco se aproximava lentamente, via o punho cerrado do cavaleiro. "Por que está demorando tanto? Poderia até fazer uma oração completa, antes de essa mão atingir meu rosto." – novamente foi atingido. Desta vez, acompanhou gotas do próprio sangue que subiam para o céu, iluminadas pelo sol. Pôde distinguir com perfeição detalhes do próprio rosto, refletido, de forma distorcida, numa das gotas. "Será que bebi alguma coisa? Será que é um tipo de sonho maluco?" – após aquele golpe, percebeu que o cavaleiro havia se ajoelhado, sentando-se parcialmente sobre seu abdome. Observou a maneira prazerosa com que o cavaleiro ergueu a viseira do elmo para encarar seu oponente. Seus olhos azuis e esbugalhados possuíam a mesma cor do céu naquele momento e brilhavam intensamente. "Que olhos redondos! Perfeitos e redondos! São tão bonitos, que dá vontade de guardar! Queria guardar esses olhos!" – Archibald piscou e escutou o cavaleiro gritar. Antes de abrir os olhos novamente, sentiu uma coisa molhada e gelatinosa na mão direita. Trouxe-a perto do rosto para ver o que segurava. Custou um pouco para entender. "Como esse par de olhos azuis vieram parar na minha mão?" – pensou, enquanto olhava a mão ensangüentada. Soltou os olhos e virou-se para ver o cavaleiro agonizando ao seu lado. "O que está havendo comigo? Por que as coisas estão acontecendo tão devagar?" – piscou os olhos novamente, mas o tempo que levou para abri-los foi tanto, que imaginou que dormira. No escuro, uma estranha imagem se formava em sua frente. Era um homem vestido com roupas incomuns, alguém que conhecia. Era Weiss. O que ele fazia ali, vestido daquele jeito? Que eram aqueles desenhos luminosos, com um brilho avermelhado, que fazia no chão e que permaneciam como que acesos? "Por que meu corpo está acorrentado? Por que estou nu? Por que estou deitado neste altar de pedra fria? Está tão frio... Agora ele faz estranhos desenhos em meu corpo. Seus dedos são gelados e gosmentos. O que será isso? Por que sinto tanto frio?" – abriu os olhos novamente. Kyle precisava de ajuda. Seu martelo estava enterrado na cabeça de um guarda. "Eu não lutei com esse guarda! Ah, sim, seu nome era Sinval. Ele conheceu o pai de Kyle. Agora, está morto. Kyle está morto também? Sua cabeça está sangrando, seus olhos estão fechados, mas o peito se mexe. Sim, ele respira, não morreu, apenas está dormindo. Mais um corpo com armadura? Outro cavaleiro. Deuses, quanto sangue! Também, pudera, com uma espada atravessada em seu peito! Que força! Atravessar uma espada numa couraça de aço dessas não é para qualquer um. Olha só, é Gorum, ele também está aqui. Por que eu não entendo o que ele está falando? Por que os sons estão esquisitos? Por que estou pensando tantas coisas? Será que morri? Será que esse é meu espírito? Onde está meu corpo? De quem é essa mão quente que segura meu braço? Mishtra! Como você é bonita! Que olhos lindos você tem! Existem estrelas desenhadas neles. Como nunca pude vê-las? Lindas estrelas, lindos olhos... Não entendo o que você está querendo me comunicar, Mishtra. Por que você balança meu corpo? Não consigo dizer nada, é tudo tão estranho... O que está havendo comigo? Ei, olha lá, atrás daquela lona, é Alonzo, o braço direito do Sr. Atir. Noran, que olhar estranho... Você pode matar com esse olhar. Nunca antes havia visto nele a morte. Meus olhos estão coçando, preciso piscá-los. Fogo, livros, o mosteiro... Weiss, por que você está tão lento? Foi você mesmo, desgraçado, foi você que matou minha família, que matou meu amor. Por que fez isso comigo? Você merece morrer! Sofra! Não! Por que esse sorriso? O que aconteceu? Você tem é que sofrer, você não pode sorrir! Magnífico? O que há de magnífico em morrer? Responda! Quem está puxando meu braço? Ah, sim, o sol! Mishtra, minha bela Mishtra, para onde está me levando? Estamos na Praça da Meia-Lua de novo. Por que as pessoas não nos olham? Por que ninguém parece nos ver? Alonzo continua magro e cheio de olheiras. Eu me lembro, esta é a casa do Sr. Atir. Kyle também veio. Gorum o carregou, não foi, meu amigo? Calma, Kyle, você vai melhorar. Noran? Por que tanta dor? Deuses, ele desmaiou! Que veias enormes e pulsantes Noran tem sobre a testa e a fronte! Estou sentado. A mesa de madeira avermelhada, as cadeiras estofadas com veludo vermelho, como está confortável! O Sr. Atir não está? Sobre o que estão conversando? Por que meu corpo não responde a meus comandos? Por que tantos porquês? Oh, doce Mishtra, você está aqui de novo. Limpe meu rosto, meus ferimentos. Eu vejo estrelas em seus olhos e elas dizem que você me ama. Eu sei que você me ama! Como estou feliz! Sou amado! Mas está faltando alguma coisa... alguém... Kiorina! Por que Kiorina não está aqui? O que houve com ela? Está morta? De repente, minha cabeça está pesada. Que sono... que sono..."

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