Capítulo 64
CAPÍTULO 64
O tempo de esperar e orar havia acabado. Archibald conduzia Kyle pelos corredores do mosteiro, que conhecia bem. Era tarde, nenhum dos Naomir estaria transitando por ali. A disciplina de horários para acordar e dormir era muito rígida e raramente quebrada. Isso deixava Archibald tranqüilo, mas Kyle tinha uma sensação ruim com relação ao que faziam.
Finalmente, chegaram à biblioteca. Não havia fechaduras, pois a disciplina era a grande fechadura daquele local. Apenas lá dentro, Archibald sentiu que era prudente acender a lamparina; talvez nem fosse, mas não havia alternativa, se quisesse ler alguma coisa. As estantes eram razoavelmente organizadas; Archibald rapidamente encontrou o que procurava. Pegou o volume que tinha o título Irmão Himil D. Weiss.
– É o que estava procurando? – perguntou Kyle, bem baixo.
– Um deles.
– Por que não leva e lê depois?
– Preciso ter certeza. Vou apenas folhear e ler alguns trechos, não vai demorar muito; enquanto isso, você podia vigiar a entrada, assim teremos mais segurança.
– Tudo bem.
Logo que Kyle foi em direção à entrada, Archibald procurou avidamente as partes que faltavam no outro volume. Estavam lá, estavam todas lá! Leu o seguinte trecho:
Hoje tive uma longa conversa com o irmão Weiss. O que eu esperava finalmente ocorreu, ele me falou sobre seu passado. Acredito que isso trará grandes avanços pessoais para ele. Quando esse irmão chegou ao mosteiro, não havia muitas informações a seu respeito, mas, segundo a avaliação realizada, foi considerado apto a receber o treinamento. Depois de seu acidente na guerra, ele ficou muito abalado e sabíamos que isso tinha alguma relação com seu passado. Discutimos muitas vezes a respeito da importância de conversar abertamente sobre esse assunto. A história é um pouco confusa e pode ser que eu não a tenha entendido bem. Ao que parece, Weiss tem família em Kamanesh, mas seus familiares o ignoram. Ele tem um irmão mais novo, casado, pai de um filho, que, por sua vez, se casou e tem três filhos nascidos e um por nascer. De uma forma que ainda não ficou clara, Weiss teria sido rejeitado por seu pai e seu irmão, recebido todo o legado familiar. Notei que ele nutre um grande ressentimento por seu irmão e toda a sua descendência. Ele parecia muito confuso quanto a isso tudo e, apesar de ter revelado essas informações, foi pouco generoso com os detalhes. Enfim, apesar das tristes novas que obtive, estou otimista quanto à possibilidade de avanços. Certamente precisamos trabalhar esse ressentimento, convertendo-o em sentimentos benignos.
Logo abaixo, havia mais algumas anotações, pouco significativas. Parecia que o monge orientador de Weiss tinha muita dificuldade em obter mais informações. Weiss era muito fechado. Mais à frente, Archibald encontrou outro trecho que lhe chamou a atenção. O registro havia sido feito cerca de um ano após o do trecho que acabara de ler.
Hoje Weiss retornou de sua quinta viagem a Shind, de onde sempre volta com o espírito renovado. Desta vez, porém, voltou deprimido. Ele já sabia que nunca voltaria a andar ou correr normalmente, motivo a que atribuíamos sua tristeza excessiva, antes de saber sobre seu passado. Contou-me espontaneamente algo curioso, um pouco difícil de aceitar, mas que pode ser verdade. Perguntou-me se sabia o que acontecia com filhos de silfos e humanos. Respondi que ouvi falar pouco sobre o assunto. Ele disse que, quando não aberrações, nascem seres amaldiçoados. Revelou que seu pai era filho de um silfo e de um humano; conseqüentemente, tinha o sangue amaldiçoado nas veias. Disse que pensava em abandonar a ordem. Tivemos uma longa conversa, falamos sobre os deuses, não seria do feitio deles amaldiçoar pessoas desde o seu nascimento, sem dar a elas uma chance de provarem ser boas, trabalhadoras e felizes. Isso pareceu confortá-lo um pouco.
Archibald parou por alguns instantes para refletir e viu que já se passara muito tempo. Seria melhor seguir o conselho de Kyle e levar o livro para ler depois. Procurou o que falava sobre ele próprio e, com os dois no braço, seguiu em direção a saída. Ainda não podia ver Kyle, mas escutou um ruído. Disse baixo:
– Silêncio, Kyle! A história de Weiss é muito estranha... acho melhor irmos. Lerei o restante depois.
– Estranha? – indagou muito baixo uma voz familiar, que não era a de Kyle.
– Kyle?
– Coloquei seu amigo para dormir.
– Irmão Weiss?
– Quem mais, caro Archibald? Diga-me, jovem, até que ponto chegou na minha estranha história?
Archibald ficou sem ação e escutou o passo arrastado do monge, que, ao aproximar-se, foi iluminado por sua lamparina. Usava um manto dos Naomir e apoiava-se num bastão.
– Leu sobre meu irmão e sua descendência?
– Li.
– O que mais? Leu sobre o desgraçado do meu pai? Leu sobre como ele recusou seu primogênito, passando todos os bens para o idiota do Meinil, meu irmão?
Archibald franziu a testa ao escutar aquele nome, que lhe era familiar. Podia enxergar melhor Weiss, que parecia ter envelhecido um pouco, desde a última vez.
– O nome o faz lembrar algo? Aposto que não teve tempo de chegar na parte em que meu orientador escreveu seus ridículos relatos a respeito da minha identidade, quando revelei que, na verdade, não me chamava Weiss, nome que inventei, por não suportar o sobrenome do meu pai. Meu nome verdadeiro é Himil DeReifos.
O coração de Archibald disparou. Weiss era seu parente? Aquilo não fazia sentido algum! De repente, algumas peças foram-se montando em sua cabeça. Seu avô se chamava Meinil DeReifos e teve um filho homem, seu pai, que teve quatro filhos, sendo ele o mais novo.
– Você é irmão de meu avô?
– Sim, sorria, somos uma família!
– E quanto à história do sangue dos silfos? É verdade?
– Infelizmente é, e você também carrega sangue sílfico nas veias.
– Você está envolvido com os necromantes, não está?
– Mais do que você pode imaginar, rapaz. Agora que sabe, tem duas opções: juntar-se a mim ou morrer por minhas mãos.
– Por que acha que eu vou fazer seu jogo?
– Há dois motivos: primeiro, você não tem opção; segundo, preparei você para me suceder. – disse Weiss, sorrindo prazerosamente.
– Como assim?
– Acompanhei você desde o nascimento, planejei todos os eventos importantes de sua vida, conheço você, sei como vai agir.
– Como pode alguém planejar tudo? Isso não faz sentido!
– Por exemplo, sabe quando seus pais e irmãos morreram, atacados por bandidos? Você acha que foi obra do acaso?
– Não acredito...
– E sua namorada? Você ia fugir com ela, não? Se conseguisse, eu o perderia. Tive de dar um jeito...
– Não faz sentido, são mentiras! Você é um mentiroso! Você não tinha poder!
– Não zombe de mim, fedelho! Você pensa que o sangue dos silfos traz apenas desvantagens? Acha mesmo que sou um velho sem poderes? Ha, ha, isso é engraçado.
Archibald parou e pensou rápido em tudo o que passou e na possibilidade de Weiss estar dizendo a verdade. Pensou em Kyle, Mishtra, Kiorina, Gorum. Pensou na guerra dos bestiais. Enfim sabia que Weiss era um dos necromantes ou estava intimamente ligado a eles. Além disso, era seu parente, mas, e daí?
– Velho desgraçado, espera que eu acredite nessas loucuras?
Weiss chegou bem perto e acertou, com o bastão, a mão de Archibald que carregava a lamparina. Ela foi ao chão, quebrou-se e espalhou o óleo, que imediatamente se inflamou. Weiss ainda desferiu uma seqüência de fortes golpes contra o abdome, o tórax e o rosto de Archibald, derrubando-o.
– Acha que tolero zombaria vinda de minha própria família?
Archibald estava zonzo. Tentou levantar-se, retirou o bastão que carregava nas costas e posicionou-se para lutar.
– Você sabe o que é ter uma família? – indagou o jovem.
– Isso não importa, rapaz. Vou lhe oferecer a última oportunidade de colaborar comigo. E então, o que deseja? Poderei oferecer-lhe qualquer coisa: dinheiro, poder, mulheres, basta querer!
– Seu comportamento é vergonhoso! Não quero nada disso!
– Você não sabe, jovem, mas acabou de decretar sua sentença de morte.
Weiss avançou sobre Archibald, desferindo-lhe uma quantidade tal de golpes, que o rapaz mal podia aparar. O ex-monge sentia dores por todo o corpo, mas, misteriosamente, podia suportá-las de maneira fabulosa. Ele caiu sobre os joelhos, sentindo gosto de sangue na boca; também escorria uma grande quantidade de sangue de suas narinas; além disso, imaginava que pudesse ter quebrado um ou dois ossos.
– O que há com você, moleque? Como consegue ser tão controlado? Como pode não dar vazão à ira, depois de saber que matei todos de quem você já gostou, até mesmo seu amigo tolo e inútil, Kyle Blackwing?
– Você matou Kyle? – perguntou Archibald, entre os dentes.
– Claro! Ele agora dorme o sono eterno! Sucumbiu, assim como você e seus amigos inúteis irão sucumbir.
– Chega! Já agüentei demais! – gritou Archibald, enfurecido.
– E o que vai fazer, moleque? Apanhar mais?
Archibald levantou-se e começou a golpear Weiss num ritmo frenético e violento. O monge sorriu e se defendeu dos ataques, um após o outro, parecendo ter o controle da situação.
– Agora está melhor. – disse Weiss, com dificuldade. – Parece que valeu a pena investir tanto em você.
Archibald continuava o ataque e, a cada novo golpe, sua fúria aumentava, até que suas ações passaram a ser mecânicas, sem envolver nenhum pensamento. Weiss falava outras coisas, mas Archibald já não era capaz de interpretar o que ouvia.
O fogo havia atingido uma das estantes e se alastrava rapidamente. Archibald continuou atacando, até que aconteceu o inevitável: seu bastão atingiu com muita violência a garganta de Weiss, que caiu, largando seu bastão e levando as mãos ao ferimento. Os olhares de Archibald e Weiss se cruzaram e o monge sorriu. Observava a postura de Archibald, o brilho de ódio em seus olhos, sua respiração de animal enfurecido e a extrema tensão de seu corpo. Murmurou:
– Aconteceu! Magnífico! Aconteceu... é magnífico... – e morreu, com um sorriso maravilhado nos lábios e os olhos vidrados em Archibald.
– Archie!
Archibald virou-se e viu a imagem de Kyle, que parecia estar bem vivo. Kyle assustou-se ao encarar Archibald, pois seu rosto estava transfigurado e, por um momento, teve a impressão de que seus olhos possuíam um terrível brilho avermelhado.
– Archie, estão todos mortos! Todos os Naomir estão mortos!
Archibald voltou a si e entendeu o que Kyle disse. Sentia muita dor nas costelas e no braço esquerdo, o suficiente para bambear suas pernas e fazê-lo cair. Kyle retirou-o rapidamente da biblioteca, que ardia em chamas, no meio das quais viu o corpo de um Naomir, mas não pôde reconhecê-lo. Antes de sair, teve a impressão de que aquele corpo se mexera; imaginou que fosse um apenas um espasmo.
Saíram em direção ao pátio do mosteiro, onde havia um pequeno estábulo. Livraram todos os animais e pegaram dois. Quando chegaram a uma certa distância do mosteiro, observaram que ele estava tomado pelas chamas. Archibald, ainda zonzo, não entendia bem o que se passava. Desceu do cavalo com a ajuda do amigo e dormiu. Kyle não conseguia tirar os olhos do mosteiro. Observou a construção ser consumida pelas chamas, até o amanhecer. Sentiu fome e se lembrou de buscar as coisas que tinham deixado atrás do mosteiro, dentre elas, mantimentos.
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