Capítulo 61

CAPÍTULO 61

– Noran, você consegue sentir se Mishtra está por perto?

Noran parou de andar, colocou a mão esquerda sobre a fronte, fechou os olhos e concentrou-se por alguns momentos, durante os quais puderam ouvir o som de pássaros e insetos da floresta de Shind.

– Estranho, até pouco tempo atrás, podia sentir sua presença e ela não estava longe.

– Será que foi morta? – indagou Kiorina, preocupada.

– Morta? Não. A morte de alguém com que se tem um laço não passa despercebida, mesmo a uma distância muito maior.

– Então, como você explica isso? – disse Gorum, retirando a espada da bainha.

– Não sei, pode ser uma interferência ou mesmo alguma propriedade da floresta.

– Vamos seguir, ela sabe se cuidar. – sugeriu Kiorina.

– Isso é verdade. – veio uma voz grave, serena, um pouco rouca e familiar.

– Rodevarsh! – exclamou Noran.

Andando como quem flutua, o silfo ancião saiu de dentro de um denso arbusto. Vestia uma fina capa de seda negra, que cobria todo o seu corpo, inclusive os braços, cruzados.

– O que você fez com ela? – inquiriu Noran, num tom exaltado, ao mesmo tempo em que transmitia a Kiorina e Gorum uma mensagem mental. "Preparem-se, ele é um dos necromantes!"

Rodevarsh caminhou calmamente, aproximando-se dos três. Seus cabelos cor de neve se moviam de maneira estranha, como se tivessem vida própria. Concentrava o olhar de seu único olho em Noran, sem sequer desviá-lo para Gorum e Kiorina.

– Vim pessoalmente aprisioná-los. Sugiro que não lutem, pois seria em vão e poderia causar mortes indesejadas.

Gorum disse, com uma ira perfeitamente controlada.

– Olha, Sr. silfo, se o senhor fez algum mal a Mishtra, tenha certeza de que providenciarei ao menos uma boa morte indesejada.

– Você tem a língua afiada, velho cavaleiro; eventualmente, ela pode lhe causar um belo ferimento.

– Somos tão temperados, tão controlados, não somos? – disse Noran, ironicamente.

– Querendo ou não, jovem tisamirense, você está infectado pela mesma moléstia que matou seu querido mestre.

– Do que você está falando? Que moléstia?

– Uma moléstia muito rara. – disse Rodevarsh, enquanto Noran o olhava. – Você me irrita! Essa é sua moléstia e também era a de Kivion; assim como o matei por ela, matarei você!

– Não! – gritou Noran. Sua fúria subiu a um patamar nunca antes alcançado. A ira transformou-se numa espada de pura energia mental, que ele orientou com violência na direção da mente do silfo, na intenção de destruí-la completamente.

Aconteceu, no entanto, que Noran ficou inteiramente rígido e, após uma forte contração de todos os seus músculos, caiu no chão. Rodevarsh esboçou um enorme sorriso, que se transformou rapidamente numa risada rouca e sádica e logo numa gargalhada terrível e alta, que intimidou qualquer ação de Kiorina e Gorum, os quais não puderam fazer nada além de olhar o silfo com horror. Rodevarsh gargalhou com as mãos dentro da capa que cobria seu corpo. Quando retirou a mão esquerda, segurava uma espécie de bola de cristal profundamente azul e perfeitamente polida. Kiorina gaguejou um pouco, o que não costumava fazer.

– O-o-o q-que é isso?

– Isso, minha linda flor de fogo, é o Orbe do Progresso.

Gorum levantou sua espada e avançou contra Rodevarsh.

– O que você fez com Noran, miserável?

Rodevarsh moveu-se tão rápido, que parecia apenas um borrão. Uma série de golpes se sucederam e, num piscar de olhos, Gorum tombou no chão, apenas com o cabo da espada na mão. Pedaços da lâmina estavam espalhados ao redor de seu corpo. Gorum contorceu-se no chão, tossiu e gemeu um pouco. Rodevarsh virou-se para Kiorina e sorriu.

– Agora você, pequena flor de fogo.

Kiorina estava recitando um feitiço poderoso, mas sua habilidade já era tal, que não precisou gesticular ou falar para fazer o encantamento; apenas cerrou os olhos e surgiu do nada uma chama que avançou na direção de Rodevarsh, pegando-o de surpresa. Quando o atingiu, houve uma explosão tão forte, que o arremessou para trás, além da própria Kiorina. O estrondo ecoou pela floresta. A feiticeira, um pouco atordoada, conseguiu levantar-se. Viu que Rodevarsh também estava se colocando de pé.

– Surpreendente! – disse ele. – Não imaginava que você estivesse tão forte, menina.

O silfo desprendeu o botão prateado que prendia sua capa à gola da túnica avermelhada que vestia. A capa e parte da túnica estavam queimadas. Com as mãos, ele jogou seus cabelos, que estavam sobre o rosto, para trás da cabeça, movimento de vaidade que provavelmente salvou sua vida, pois, nesse momento, seu braço foi atingido por uma flecha, cuja ponta não penetrou sua cabeça por um triz. Na direção oposta, Mishtra rapidamente preparava uma outra flecha. Rodevarsh urrou e deu um salto inacreditável. Pulou para trás, girando no ar, o que resultou numa cambalhota perfeita. Antes de atingir o solo, porém, partiu-se em dezenas de pedaços escuros, que não chegaram a tocar o chão, nos quais surgiram asas; um bando de pássaros se espalhou, voando para todos os lados. A única coisa que tocou o solo foi a flecha manchada com o sangue de Rodevarsh, que Mishtra havia atirado.

A silfa aliviou a pressão que fazia sobre o arco e suspirou silenciosamente, mas não relaxou por muito tempo. Gorum começava a se recuperar e se pôs de pé. Mishtra se esforçou e conseguiu transmitir seus pensamentos para Gorum e Kiorina, simultaneamente. "Preparem-se para fugir! Há uma dezena de batedores do meu clã se aproximando. Eles acreditam nas mentiras de Rodevarsh. Acreditam que fomos nós os assassinos dos outros anciãos do meu clã."

Parecia que Noran não recobraria a consciência no tempo necessário, talvez nem a recobrasse mais. Apesar das contusões, Gorum estava bem, com forças para correr e ainda carregá-lo nas costas.

"Rápido, por aqui!" – foi o pensamento de Mishtra.

Kiorina tentava recuperar um pouco do fôlego perdido, para gerar a explosão de fogo, e corria como podia. Mishtra tinha que diminuir seu ritmo, se queria que os dois a acompanhassem. Em poucos momentos, escutaram barulho de água corrente.

"Dentro do córrego teremos mais chance de despistá-los." – transmitiu Mishtra, olhando para trás.

Entraram no córrego, cuja água estava gelada, próxima da temperatura de congelamento. Não puderam suportar o frio por muito tempo e, contrariando a lógica, voltaram para a mesma margem de onde vieram.

"Conheço um esconderijo deste lado do riacho; é melhor nos escondermos aqui."

Mishtra ajudou Gorum a subir com o corpo de Noran para a copa de uma árvore, que mostrava sinais de ter sido queimada havia uma ou duas estações, pois ela resistira e sinais indicavam que, com a chegada da primavera, viriam os brotos. Em sua copa, havia algo como o resto de uma construção. Assim que se alojaram numa espécie de câmara suspensa, Kiorina colocou sua mágica para funcionar, aquecendo todas as roupas e secando a água gelada.

"Acha que ele está bem?" – perguntou Mishtra a Gorum, sem palavras.

– Seu corpo parece estar em bom estado, seu coração é forte. – respondeu Gorum, examinando Noran.

– Que árvore estranha... – comentou Kiorina.

"Foi a casa de um ancião do meu clã, chamado Nefrish. Ele foi morto por bandidos pouco antes de vocês chegarem a Shind."

– Tenho a sensação de que sei a laia desses bandidos... – comentou Gorum.

– Agora percebo. Com todos os anciãos fora do caminho, Rodevarsh deve ser o líder do seu clã. – sugeriu Kiorina.

"Percebi que meus companheiros estão muito irados, e não é para menos, pois acreditam que assassinamos Lourish, Lalith e Roubert."

– Roubert? – Gorum olhou para baixo e lamentou-se.

– Você o conheceu, não foi, Gorum? – quis confirmar Kiorina.

– Sim, nós lutamos juntos na guerra dos bestiais, na minha juventude. Era um silfo de honra incomparável.

– Ao que parece, as pessoas de bom caráter não resistem às conspirações desses malditos! – exaltou-se Kiorina. Seus olhos verdes se encheram de lágrima. Não se via mais o olhar de uma menina; nele não havia inocência, perdida talvez cedo demais. Aquele olhar agora refletia algo mais que uma simples mágoa. Havia nele ódio pelos necromantes e suas terríveis ambições, pelo que faziam com as pessoas, pela ruína que provocavam, pelas vidas perdidas. Ela mesma perdera sua liberdade, a chance de estudar, de viver em paz, de amar. Ela então dava vazão às generosas lágrimas que rolavam silenciosamente por sua face.

Gorum sentiu o impulso de consolá-la, mas ficou inibido pelo olhar penetrante da moça. Ele sabia que aquela menina era agora uma mulher, transformação que ocorreu ali, diante de seus olhos. Ela não precisava falar mais nada, ele sabia vê-la e entendê-la.

– Nós vamos impedi-los, Kiorina, e também faremos com que paguem por tudo o que fizeram.

Com a fala de Gorum, Kiorina despertou da espécie de transe em que se encontrava. Pela primeira vez, depois desse tempo todo, reparou como Gorum havia envelhecido: seus cabelos estavam mais brancos, sua barba, totalmente grisalha, havia rugas profundas em volta dos olhos do gigante, e sua testa estava definitivamente marcada. Apesar disso tudo, ele ainda tinha um grande espírito de luta. Nada parecia ter tomado o espaço do seu lado bondoso e bem humorado, que, nesses dias difíceis, se manifestava com menor freqüência. Tudo parecia perto do fim. Aos poucos, as manifestações de bom-humor e até de bondade pareciam, cada vez mais, ter menor importância, diante dos problemas que surgiam, um após o outro.

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