Capítulo 60

CAPÍTULO 60

Kyle teve uma estranha sensação nostálgica, ao ver o mosteiro no entardecer. Sobre a colina, coberto de gelo, seu brilho era intenso, com a luz do sol poente. Os cristais que compunham suas muralhas confundiam-se com o gelo, trazendo seus contornos para o mesmo tom avermelhado do sol. Ali tudo havia começado. Já não conseguia precisar quanto tempo se passara desde a última vez. Aquele era o segundo inverno desde que Kyle e Archibald se reencontraram no interior daquele mosteiro.

Archibald sentia um grande estranhamento. Estava diante do local que havia transformado sua vida, reformado sua índole, o local onde sua fé foi alimentada. Ali passou por um severo treinamento até se ordenar monge Naomir. Agora, tudo aquilo se confrontava com sua recusa; em sua cabeça, havia deixado de ser monge quando sentiu no corpo a fúria e matou seres inteligentes com as próprias mãos. Sem dúvida, o local lhe trazia muitas recordações, mas não estava ali para isso, e sim atrás de respostas que tinha a esperança de encontrar na grande biblioteca.

– E então, Archie, o que vai ser?

– Não sei, Kyle. Fico imaginando se a corrupção dos necromantes chegou neste lugar.

– Se fosse dar um palpite, acho que não deveríamos nos apresentar.

– É verdade. Ainda que não saibam dos necromantes, podem ter sido enganados por eles e acreditarem, por exemplo, que somos criminosos.

– Ou hereges! – sugeriu o cavaleiro, num tom brincalhão.

– Que tal criminosos, hereges, assassinos e bruxos? – Archibald brincou, descontraído.

Kyle sorriu, mas logo parou, ao se lembrar de algo.

– Archie, sabe aquele velho esquisito de um olho só?

– O irmão Ourivart?

– Esse mesmo! Quando estive aí, ele me mostrou uma passagem que dava para o interior do templo subterrâneo.

– Como assim? Que passagem?

– Então você não sabe? Existe uma passagem que vai do meio do paredão de rochas, atrás do mosteiro, até o templo subterrâneo.

Archibald ficou olhando para Kyle, surpreso, mas também desconfiado.

– Tem certeza de que não está confundindo alguma coisa?

– Tenho, confie em mim. Vamos dar a volta. O paredão é muito íngreme, mas acho que conseguiremos escalar.

Archibald duvidou, mas não quis se opor. Apenas algum tempo depois, quando Kyle mostrou a fenda na parede rochosa, deu o braço a torcer.

– Espere aí! Como é que você nunca me falou disso antes?

– Não sei, acho que faltou oportunidade. Além do mais, sempre achei que era uma passagem conhecida por todos no mosteiro. Como é que eu ia saber?

– Tudo bem, isso agora não é o mais importante, e sim como vamos subir até lá.

Kyle coçou o queixo, pensativo. Seus dedos produziam um pequeno barulho ao entrar em contato com a barba rala.

– O dia ainda não acabou, podemos arriscar uma escalada agora, ou esperar para fazê-la amanhã cedo.

– E quanto ao gelo, Kyle? As rochas devem estar escorregadias.

– É verdade. Desse jeito, acho que o momento para subir não vai fazer tanta diferença.

– Vamos subir logo, então. Afinal, não temos tempo. Precisamos encontrar Gorum e os outros daqui a dois dias, em Kamanesh.

Kyle concordou, partindo para a escalada. Depois dos primeiros minutos, o cavaleiro deparou-se com uma protuberância que dava um bom apoio. Percebeu que havia uma escada, similar à que descera anteriormente, construída de maneira que, olhando de baixo para cima, não podia ser facilmente identificada.

– Olhe, Archibald, uma escada!

Archibald, que seguia Kyle, tentou visualizar alguma coisa e disse:

– A única coisa que consigo ver é esse seu traseiro sujo.

Kyle sorriu; apoiando-se nas tais rochas, começou a escalar com facilidade. Logo, Archibald também pôde usar a escada. Antes do anoitecer, estavam na entrada da passagem. Haviam deixado a maioria das coisas que trouxeram no sopé do paredão. Levavam apenas suas armas. Kyle havia colocado o cinturão que prendia a bainha de sua espada sobre o ombro, de forma que a arma ficasse em suas costas. Archibald seguiu a orientação de Kyle e fez o mesmo com seu bastão. Deixou o martelo de guerra para trás, por causa do peso.

– E agora? – indagou Kyle.

– Acho melhor esperar. Quando for bem tarde e todos estiverem dormindo, agiremos.

– Certo. Vamos tentar descansar um pouco.

Estava escuro e ficaram em silêncio, escutando o vento, sem conseguir dormir. Depois de algum tempo, Kyle sussurrou:

– Archie, você está acordado?

– Estou.

– Por que estamos aqui? Quero dizer, qual a verdadeira razão para estarmos aqui?

O ex-monge apenas disse:

– Olhe o céu, Kyle, veja como está cheio de estrelas!

– Estou olhando. – retrucou Kyle, observando as estrelas que apareciam através da fenda. – Fico imaginando se os outros estão bem; se o percurso deles foi tranqüilo, devem estar próximos de Kamanesh.

– Mishtra... – murmurou Archibald. – O que deu nela para ela me beijar daquele jeito?

Kyle deu um sorriso, que seu amigo não pôde enxergar.

– Acho que é uma coisa que acontece com as mulheres; de uma hora para outra, elas resolvem gostar de um sujeito. – fez uma pausa e então perguntou: – Você gosta dela?

– Não sei. – falou pausadamente; ambos estavam tranqüilos. – Existe uma forte ligação; pode parecer loucura. mas é algo como um laço sangüíneo.

– Laço sangüíneo?

– É e não estou falando apenas no sentido figurado. Nosso primeiro contato foi quando tivemos a primeira luta com os bestiais.

– A primeira?

– É. Você se lembra de que fui salvo de um dos bestiais por uma flechada?

– Você acha que foi ela?

– Eu tenho certeza de que foi ela.

Kyle levantou as sobrancelhas e fez cara de admiração, que, naquele escuro, ninguém poderia ver.

– Depois, ela me salvou de novo, estancando o sangue da minha ferida e me carregando em seus braços. – disse Archibald, apalpando o ombro que fora ferido. – Isso não é sangüíneo o suficiente?

Kyle ficou em silêncio.

– Pensando melhor, acho que gosto dela, sim. – revelou Archibald. – Kyle, lembra-se de quando conversamos sobre o destino?

– Sim, foram nossos últimos dias de paz.

– O que lhe falei... não sei...

– Eu me lembro bem. Você me ensinou que o destino dependia das decisões que tomamos.

– Eu não tenho mais certeza disso. Aliás, quando falei, já não tinha. Por favor, me desculpe por não ter sido sincero com você.

– Do que você está falando, Archie? O que disse é verdade! Eu testei, vi a coisa acontecer. Durante a guerra, levantei minha voz, mudei o destino, senti que tinha esse poder de mudar as coisas, percebi que todos têm.

O ex-monge escutou aquilo surpreso. Naquele momento, percebia que, em termos de fé, Kyle estava bem à frente dele. Depois de tudo o que havia acontecido, sua fé nos deuses e em si ficara fragilizada. Percebia que estava cedendo ao caminho da corrupção. Após uma luta interna, revelou, um pouco agitado:

– Eu menti, Kyle, me perdoe. Menti para você e para os outros. A razão de estarmos aqui é eu ser um egoísta. Precisava descobrir sobre o meu passado e o de Weiss. Estamos aqui apenas para satisfazer um interesse particular meu. Coloquei sua vida em risco por razões mesquinhas.

Kyle escutou a confissão, um pouco decepcionado.

– Eu compreendo, Archie. Tudo bem, você está perdoado, mas precisa entender uma coisa: somos amigos, ora! Se tivesse me pedido, eu viria com você, não precisava mentir para mim, entende?

Archibald consentiu.

– O que você precisa saber? – perguntou Kyle.

– Muita coisa, Kyle, muita coisa.

– Olha, sei coisas dolorosas de seu passado. Você perdeu sua família e depois sua garota, de forma trágica. Não sei se teria suportado, se fosse comigo. Agora, o que mais precisa descobrir?

– Eu perdi a memória de muitas coisas. Durante meu treinamento, de alguma forma, apagaram um pouco da minha memória.

– Eu nunca ia imaginar uma coisa dessas, Archie! Por que não me falou nada antes?

– Falar o quê? O que eu devia falar, se nem tinha idéia de que essas coisas haviam acontecido?

– Por essa eu não esperava... Como conseguiu saber dessas memórias apagadas?

– Tudo começou quando, um dia, encontrei-me com Reno e Barne, os irmãos de Déria. Reno me agrediu e queria me matar. Fui salvo por Alonzo, empregado de Atir. Depois disso, comecei a me lembrar de algumas coisas, nada muito conclusivo. Algum tempo depois, resolvi verificar se, na biblioteca da Catedral, havia alguma informação a meu respeito, pois sabia que os superiores guardavam anotações sobre cada um dos membros da ordem. Encontrei um livro que tinha como título meu nome. Li coisas do meu passado das quais não me recordo e percebi que realmente haviam feito alguma coisa com a minha cabeça.

– E quanto a Weiss, por que você quer descobrir sobre o passado dele?

– Estou certo de que ele está envolvido com o que me fez perder parte da memória. Além disso, algumas páginas estavam arrancadas do livro que tinha o nome dele. Fiquei imaginando que poderia haver uma cópia mais completa desse livro.

– Muito bem, Archibald, obrigado por falar a verdade. Agora entendo melhor suas motivações. Se estivesse em seu lugar, talvez tivesse agido como você. Por isso você tem meu perdão.

– Obrigado, meu amigo! – naquele momento, Archibald sentiu que todos os laços de amizade que tinha com Kyle não só se reatavam, se fortaleciam.

– Agora, o que temos a fazer é esperar mais um pouco.

– É verdade, não tenho mais tanta fé nisso nem tenho certeza de que alguém vá me ouvir. Neste momento, apenas sinto que preciso orar, pedir proteção para nossos amigos, pedir pelos que sofrem e também pedir sabedoria para fazermos o que for certo.

– Concordo, Archie. Vamos esperar e orar.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top