Capítulo 6

CAPÍTULO 6

Ao cair a noite, as luzes mágicas iluminaram o interior da Santa Catedral de Kamanesh. Os sinos tocaram, emanando vibrações pelas ruas da cidade, mas sua cantiga foi atenuada pela forte chuva, que caía desde a madrugada. Com esse tempo, poucas pessoas sairiam de suas casas naquele início de noite, exceto as que iriam ao batismo de Armand, filho de Jeero e Ellis DeFruss.

O choro do bebê ecoava na câmara principal da Catedral, cuja altura era superior a quinze homens. Todos os presentes queriam ver o bebê e, ao se aproximarem, diziam palavras doces, tentando acalmá-lo, sem muito sucesso. Muitos perguntavam o que havia de errado com os olhos dele, e a mãe, um pouco nervosa, respondia que ele ainda não abrira bem os olhos.

Estavam presentes a família Lars e todos os seus empregados, além de Kyle, Gorum, Julius e os amigos de Jeero, freqüentadores da Taverna da Lua. Archibald estava na antecâmara, atrás do altar, juntamente com os jovens acólitos da Catedral. Vestia-se como os monges Naomir, destoando dos finos mantos brancos dos acólitos. O sacerdote deu boas-vindas aos presentes e iniciou a cerimônia. O bebê continuava a chorar, não parando um momento sequer.

O irmão Weiss acompanhava a cerimônia à distância, da parte de trás da nave, perto dos portões. No momento em que o bebê deveria ser colocado sobre o altar para ser abençoado pelos sete deuses, o velho monge Naomir pôs-se a caminhar com dificuldade em direção a ele, chegando ao altar junto com a criança, que chorou ainda mais forte. Weiss colocou sua mão sobre a testa do menino, que finalmente se acalmou. Foi um alívio para todos, principalmente para Ellis, que estava muito nervosa com o desconforto do filho.

Os nomes dos deuses foram evocados, e a criança foi batizada, seguindo um detalhado ritual. O nome Armand foi repetido várias vezes, e Gorum sentiu-se tocado.

- Gorum, você está bem? - perguntou Kyle, discretamente.

Gorum não respondeu; apenas se levantou e saiu.

Kyle sentiu a mão de Julius segurando-lhe o ombro, impedindo que se levantasse. Olhou para Julius e notou a tristeza nos olhos azuis do veterano.

- Deixe-o ir. - disse Julius, pesaroso.

- Mas o que... - e Kyle foi interrompido por um gesto de Julius, indicando que falariam sobre o assunto depois.

Terminada a cerimônia, Ellis levou Armand para casa na carruagem do Sr. Lars, e todos foram comemorar com um jantar num salão anexo à Catedral. A mesa era bem grande, com mais de trinta lugares preparados. Sentaram-se à cabeceira da mesa o Sr. Lars, sua esposa, Jeero e Julius. Kyle, Kiorina e Archibald sentaram-se na outra extremidade, estando os dois primeiros lado a lado e o outro em frente. Havia muitos funcionários da casa Lars e alguns amigos de Jeero sentados nas demais posições.

- O que há com você, Kyle? - perguntou Archibald.

Kyle não respondeu. Tinha o olhar fixo no prato à sua frente e brincava com os talheres.

- Kiorina? - Archibald chamou-a, sem conseguir entender por que ela se fixava, contrariada, nos enormes lustres e suas centenas de velas. - Ei, vocês dois! - disse ele, mais alto. - O que está havendo?

- Ah... nada! não é? - dissimulou Kyle, empurrando seu cotovelo contra o braço de Kiorina.

- É... - confirmou ela, fazendo pouco caso.

- Não sei não... Parece que algo estranho aconteceu. - disse Archibald, virando-se para ver se o jantar seria servido logo. Quando olhou de volta, os dois estavam do mesmo jeito novamente. Ele falou para Kiorina: - Parece que seu pai e o Cavaleiro Carmim estão se dando muito bem!

- É? Ótimo! - disse Kiorina, não mais animada que na última vez.

- Kiorina, você está assim só por causa de ontem à noite? - perguntou Kyle.

- Não... foi um problema lá na Alta Escola... mas vamos deixar isso de lado! - animou-se Kiorina e dirigiu-se a Archibald: - Conte-me como foi todo esse tempo no mosteiro. Dizem que os monges precisam trabalhar muito!

- Pode parecer estranho, mas aqui tenho mais trabalho do que lá, o que não faz muita diferença, pois aprendi a me acostumar com o trabalho. Trabalhar muito me dá tempo para pensar.

- É mesmo? Em que, por exemplo? - quis saber Kiorina interessada, ignorando a presença de Kyle.

- Não... você não quer realmente saber, são questões de nossa religião, discussões sobre a doutrina dos deuses, entende?

- Claro! Sabe, é engraçado ver você falando assim, tão calmo, sobre assuntos religiosos. - ela esboçou um sorriso e continuou: - É difícil acreditar que você esteja tão calmo e controlado... Justo você, que era tão brigão e nervoso... - e foi interrompida por uma cutucada de Kyle.

- Tudo bem, Kyle, não precisa disso, eu aprendi a conviver com meu passado em meu presente. - avisou o monge, colocando vinho em seu copo.

Kyle, envergonhado, não disse nada.

- Como eu ia dizendo... - continuou Kiorina, lançando para Kyle um olhar gelado - você era tão nervoso e agora é um homem calmo e responsável. É impressionante o que o poder divino pode fazer com uma pessoa!

- É verdade, mas não se trata de intervenção divina e sim da combinação de força de vontade, disciplina e fé!

Kyle ia falar alguma coisa, mas foi interrompido por um acólito, que trazia um dos pratos. Durante o jantar, a conversa entre os três amigos de infância, finalmente juntos, não aconteceu, pois cada um dos três estava com algum problema em mente. A conversa não passou de alguns comentários sobre o festival e o filho de Jeero. No fim, cada um deles seguiu uma direção diferente, sentindo o quanto tudo havia mudado.

**********

Kyle colocava mais lenha na lareira da oficina. Ele e Julius haviam saído da Catedral há pouco, mas, ao chegar, não encontraram Gorum.

- Kyle, meu jovem, o chá está pronto? - perguntou Julius, enquanto pendurava a capa perto do fogo para secar.

- Quase, ainda não está no ponto. - Kyle mexia o pequeno caldeirão suspenso acima do fogo. - Julius, agora você pode me dizer o que está havendo com Gorum? Eu nunca o vi daquele jeito! - e colocou a tampa de volta no caldeirão.

- Assim que o chá estiver pronto. É uma longa história. É melhor que estejamos sentados, confortáveis e com algo quente para beber. - disse o veterano, que se sentou perto da lareira.

- Aonde ele foi? Será que volta esta noite?

- Acalme-se, meu jovem, ele vai ficar bem. - fez uma pausa e perguntou novamente: - E então, como está o chá?

- Pronto! - mergulhou uma jarra no caldeirão - Aqui está...

- Sente-se, vamos falar sobre o passado. - tomou um gole e perguntou - O que Gorum lhe contou sobre seu pai?

- Ele conta histórias em que o senhor, ele e meu pai estavam sempre juntos, as grandes batalhas e aventuras por que passaram...

- Sabe, meu jovem, estou certo de que o que Gorum lhe contou é verdade, mas há alguns fatos que ele parece ter omitido...

- O que, por exemplo?

- Foram muitas coisas que aconteceram, algumas bem duras para meu grande amigo... - Julius estava com um olhar muito triste naquele momento.

Kyle não disse nada, e o silêncio permaneceu por uns instantes, quando só se ouvia o estalar da lenha úmida queimando e o barulho da chuva do lado de fora.

- Você sabia que Gorum já foi casado?

- Gorum? Casado?

- É... imaginei que ele não lhe contaria...

- Mas por que ele não me contou? - Kyle o interrompeu.

- Calma, rapaz, tenho muitas coisas para falar. Se você ficar interrompendo, vamos ter uma noite muito longa! É, ele foi casado com uma bela jovem, chamada Rayssa. Ele a conhecia desde garoto. Casaram-se muito cedo, antes mesmo de ele se tornar um cavaleiro. Eles eram muito apaixonados e tiveram uma filha, Wanda. Nessa época, por volta dos nossos dezesseis ou dezessete anos, eu e seu pai já éramos escudeiros e treinávamos duro para ser cavaleiros. O duque Dwain era um garoto como nós, e seu pai, Edwain, era o duque na ocasião. Dois anos depois, seu pai e eu já éramos Cavaleiros da Segunda Ordem, e Gorum havia aberto uma oficina em Tanir para consertar armaduras. Foi então que aconteceu... Houve o primeiro ataque dos bestiais. Gorum viu sua esposa e filha serem mortas pelos malditos. Tentou lutar para protegê-las, mas eles eram muitos e, no fim, ele só não morreu porque recebeu a ajuda de Armand. Quando se deu conta do que havia ocorrido, queria morrer. Com as notícias de que a guerra contra os bestiais havia começado, encontrou um motivo para continuar vivo. No início, o ódio dirigiu seu treinamento. Nunca vi ninguém se dedicar tanto aos treinos quanto Gorum. Rapidamente, ele estava entre os melhores cavaleiros de todo o reino, sendo escolhido para integrar uma das forças especiais do Duque. Durante a guerra, nos aproximamos muito, ele, seu pai, eu e Tarne, o Cavaleiro Esmeralda.

- Cavaleiro Esmeralda?

- É. Nós éramos conhecidos como "os quatro". Cavalgamos por toda a extensão do Condado de MontGrey e fomos até os pântanos cinzentos de Yersh. Lideramos grandes tropas contra as forças dos bestiais. Modéstia à parte, éramos os melhores no que fazíamos. Poucos meses antes de seu pai morrer, o duque Edwain morreu envenenado. O jovem Dwain recebeu então o título. Suspeitamos de uma conspiração interna no reino, mesmo quando, dias depois, pegaram o assassino e o executaram. O que vou lhe contar agora é o que realmente se difere do que se conta por aí sobre a morte de seu pai. Na verdade, Armand não foi morto pelo capitão da guarda ao proteger o jovem duque Dwain, como dizem. O capitão da guarda estava envolvido, mas seu pai morreu pelas mãos de Tarne, o Cavaleiro Esmeralda. A traição de Tarne foi tão suja, que ficou decidido não mencioná-la na versão oficial das histórias da guerra. Naquele dia, apenas eu não alcancei o palácio a tempo de lutar por Dwain. Armand, Gorum e Tarne chegaram. A batalha com o capitão da guarda aconteceu, de fato, mas seu pai era muito bom para perder para ele, mesmo ferido como estava. Gorum, havia meses, desconfiava de que houvesse alguma coisa errada com Tarne, mas não comentou nada comigo ou com seu pai. Foi então que, enquanto seu pai foi até a sala do trono, ele seguiu Tarne até o salão dos cavaleiros do Duque, onde escutou uma conversa de Tarne com outro cavaleiro, na qual discutiam planos de traição. Gorum ficou irado com ambos, não aceitou a desonra daqueles cavaleiros e os desafiou para um combate. Matou o cavaleiro. Com Tarne, no entanto, a luta foi mais difícil. Gorum porém triunfou e encostou sua espada na garganta do traidor. Em vez de matá-lo, disse que ele era uma vergonha para todos os cavaleiros. Sob a humilhação da derrota, expulsou-o do palácio, advertindo que, se fosse visto novamente em sua frente, o mataria. Gorum ficou no salão pensando por algum tempo, depois de Tarne haver-se retirado, humilhado e cabisbaixo. Não conseguia pensar no que fazer naquele momento. Tentava tirar algum sentido daquilo tudo. Quando desceu até os jardins e viu o cavalo de Tarne ainda amarrado, percebeu que algo estava errado. Ele correu até a sala do trono. Quando chegou, viu o Duque parado, olhando o corpo do capitão da guarda perto da saída do salão. Ao olhar para o outro lado, viu Tarne abraçado com Armand. Seu pai estava sorrindo, com o rosto virado para Gorum, que não teve tempo de gritar, antes que a expressão de Armand mudasse demonstrando dor, a dor de quem havia sido traído. Tarne então o soltou e ele caiu, com um punhal no peito. Tarne escutou passos em sua direção e, ao virar-se, tinha um sorriso no rosto, o último, pois encontrou a espada de Gorum.

Kyle ficou em silêncio por um bom tempo, Julius também. Tudo o que haviam contado para ele sobre a morte de seu pai era mentira. Ele se transformara num herói por uma história falsa.

- Eu não entendo... Por que Gorum não o matou antes? Ou, ao menos, por que não prendeu o Cavaleiro Esmeralda?

- Kyle, Tarne, o Cavaleiro Esmeralda, era irmão de Gorum...

- Por que você está me contando isso agora? - perguntou Kyle, com lágrimas nos olhos.

- Porque Gorum se culpa por tudo isso, pela morte de sua família, de Armand, por ter matado o próprio irmão...

Kyle não disse nada, apenas calçou as botas, montou em seu cavalo e abriu a porteira.

- Aonde você vai, Kyle? Eu disse a você que ele vai estar bem! - Julius precisou gritar, pois o vento e a chuva que entravam na oficina eram muito fortes, mas Kyle não respondeu. Seguiu cavalgando pela chuva, naquela noite repleta de relâmpagos e trovões.

**********

Kyle cavalgara até Tanir, rumo ao antigo poço que Gorum disse ter construído com seu pai, quando jovem, e onde estavam enterradas as pessoas de sua família. Ao se aproximar, viu, definida por relâmpagos, a silhueta de uma figura enorme. Kyle desceu de seu cavalo, andou até Gorum e o encarou. Viu então que ele estava de olhos fechados, parado como uma rocha sob a chuva.

- Ele lhe contou? - perguntou Gorum, quase imóvel.

- Sim. - disse Kyle, sentindo muita raiva.

Gorum balançou a cabeça positivamente, num movimento quase imperceptível.

- Se você está imaginando o porquê, foi por eu ter pedido. Eu não seria capaz.

- Por que você nunca me contou?

Gorum não respondeu.

- Por quê? Vamos, seu grande idiota, por quê? - repetia Kyle, enquanto socava o peito de Gorum.

Gorum engoliu seco, não se moveu, apenas balbuciou:

- Eu sinto muito...

- Por quê? Por quê? Por quê? - Kyle repetia cada vez mais baixo, até que abraçou seu amigo e chorou.

Depois de algum tempo abraçados sob a chuva, Gorum disse:

- Garoto, seu pai, antes de morrer, me pediu para tomar conta de sua mãe...

- E de mim?

- Ele não sabia que ela estava grávida. Sinto muito. Quando você nasceu, sua mãe não agüentou e morreu... Desde então...

Depois disso, voltaram para casa, em silêncio.

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