Capítulo 56
CAPÍTULO 56
Lentamente, Kyle recobrou os sentidos. Seu rosto, ainda abatido, estava livre das chagas, assim como os braços, pernas, mãos e pés. Ao seu redor, extremamente fatigados, estavam seus companheiros, sentados no chão irregular. As primeiras imagens que começaram a se formar para Kyle foram estranhas, visões de um lugar escuro, que balançava, produzindo um grande ruído. Imaginou estar de volta à sua barraca, nos dias da guerra. Sentiu o calor de mãos que envolviam as suas e, intuitivamente, sussurrou:
– Kiorina? É você?
– Sou eu, Kyle. – disse ela, com lágrimas nos olhos. – Tudo vai ficar bem.
– Onde estou? Como cheguei aqui? – perguntou, fazendo força para identificar o lugar.
– Estamos nas proximidades da mina.
– Trouxemos você e libertamos todos os outros. – veio a voz de Gorum.
– Gorum? Você também está aqui? – disse Kyle, levantando a cabeça.
Kiorina ajudou-o a sentar-se. Gorum agachou-se, oferecendo-lhe um de seus fortes apertos de mão.
– Fico tão feliz de estar com vocês! Estava num tipo de pesadelo, do qual pensei que nunca acordaria.
Uma voz estranha a Kyle surgiu, mais distante.
– Foi um bom trabalho, meus caros, ele irá se recuperar muito bem. – disse Alunil, com a voz envelhecida. Conversava com Vekkardi, Radishi e Noran, que estavam alguns passos além de Gorum.
– Quem mais está aqui? – quis saber Kyle, começando a focar melhor as imagens.
– Estão conosco o Sr. Alunil, Vekkardi, Noran, Radishi e, fora da barraca, Archibald e Mishtra. – respondeu-lhe Kiorina. – Você estava muito doente quando o encontramos. É uma longa história, mas, resumindo, conseguimos libertar todos os que estavam escravizados na mina, graças à ajuda do Sr. Alunil, juntamente com seu discípulo, Vekkardi, e do amigo de Noran, Radishi. O Sr. Alunil é um silfo com grandes conhecimentos mágicos, o que permitiu que estejamos conversando neste momento.
Com imagens se formando cada vez mais detalhadamente, Kyle pôde identificar Kiorina e Gorum à sua frente e, logo atrás, algumas figuras borradas. Forçou a voz para ser escutado.
– Sr. Alunil. – procurando levantar-se, foi ajudado por Gorum e Kiorina.
– Sim, meu jovem. – disse Alunil, placidamente.
– Eu não o conheço, mas gostaria de agradecer por ter ajudado meus amigos e a mim.
– Aceito com sinceridade sua gratidão, jovem Kyle Blackwing. – disse o velho silfo, apoiando sua mão sobre o ombro de Kyle. Depois, virou-se para seu discípulo e disse: – Vekkardi, vá chamar Archibald e a pequena Mishtra. Agora que Kyle está melhor, temos muito o que conversar.
Kyle, ainda cansado, sentou-se. O vento castigava as lonas da barraca, produzindo um barulho constante e ritmado. O amanhecer estava próximo, e todos sentiam a noite não dormida e os esforços do dia anterior. Através da lona escura, mas não totalmente opaca, podiam ver a claridade do dia que se aproximava.
Archibald e Mishtra entraram e se sentaram, pouco atrás de Kyle. Estavam todos sentados e Alunil, de pé, bastante compenetrado, de frente para o grupo. Fez-se silêncio.
– Fico feliz pela atenção de vocês. disse o velho e pigarreou. – Imagino que todos têm consciência de que as coisas não são nada boas. Penso também que estão curiosos com relação à minha transmutação. Acho que lhes devo uma breve explicação. Alunil não é meu nome verdadeiro; quando nasci, meus pais me chamaram Modevarsh.
Mishtra olhou para o velho silfo, com espanto. Ele, percebendo a reação dela, retrucou:
– Sim, minha jovem, sou Modevarsh, irmão de Rodevarsh, um dos anciãos do conselho do clã de Shind. Estou vivo, apesar de muitos acreditarem que estivesse morto. – deu um pequeno sorriso e continuou. – Tive que deixar o clã por motivos particulares, há tempos. Operei sobre meu corpo uma forte transmutação, quase perfeita. Tornei-me forte e vigoroso como um jovem, mas, para isso, abri mão de algumas capacidades mágicas, incluindo a da cura. – fez uma pausa. – Agora sabem porque retornei a este corpo velho, fraco e doído. Talvez seja hora de permanecer na minha forma original. – olhou para o alto e coçou sua delicada barba branca. – Lembro-me de uma conversa que tive com o bom amigo Kivion, cerca de duzentos invernos passados. Na ocasião, conversávamos sobre as histórias que nosso avô de sétima geração costumava nos contar, lendas da era maldita. Tenho certeza de que todos vocês já ouviram falar nesse período de grandes guerras, que devastou o mundo, milênios atrás. Conta-se que muitos dos deuses glorificados em sua religião tiveram atuações heróicas nessa época, também chamada de guerra de milênios. Tudo o que se refere a esse tempo, porém, é obscuro, pois havia pouca organização, o que fez com que a grande maioria dos livros desse período se perdesse. Bom, Kivion e eu discutíamos sobre como diferenciar as lendas da história real, pois havíamos percebido que era muito fácil criá-las. Tomávamos o exemplo de meu irmão mais novo, Rodevarsh, duzentas e dezesseis primaveras mais jovem que eu, o qual, quando criança, adorava ouvir histórias. Certa vez, contei a ele uma lenda, criada por mim. Eu havia acabado de fazer uma viagem a Thayfoon, uma cidade belíssima, na ilha de Nish, atual capital do império dos silfos do mar. Lá, tive a oportunidade de ler muitos livros, numa grande e antiga biblioteca. Havia alguns que foram escritos durante a guerra de milênios. Tomei muitas notas e criei uma fábula, que contei para meu irmão e outros tantos jovens. Eu mesmo ainda era jovem e imprudente, não tinha mais que trezentas primaveras. O fato é que muitas gerações se passaram e eu me esqueci dessa história. Um dia, disseram-me que Rodevarsh iria fazer uma jornada em busca do Orbe do Progresso, que era uma invenção minha! A jornada para a qual meu irmão se preparava era muito perigosa; tentei dissuadi-lo, explicando que o Orbe do Progresso era fruto da minha imaginação, mas ele não aceitou minha palavra, pois, durante anos e anos, havia feito daquilo um ideal. Tomou essa decisão depois de estar com os silfos do mar e ler outras lendas, nas quais eu me inspirara. Achou que estava dizendo que o orbe era invenção minha por estar preocupado com ele. Fiquei sem ver meu irmão por dezoito outonos. Quando ele retornou, usava um tapa-olho, pois perdera seu olho esquerdo. Aquilo me fez um mal tremendo. Julguei-me culpado por aquela mutilação. Meu irmão, no entanto, estava imensamente feliz, pois havia encontrado o Orbe do Progresso! Na ocasião, fiquei muito confuso, aquilo me deixou sem dormir direito por meses. Cheguei a pensar que podia ter feito confusão, que li sobre a lenda e imaginei tê-la criado. Quase enlouqueci e decidir viajar para Thayfoon novamente. Na época, viajar para lá era difícil, pois o império dos silfos do mar havia se tornado uma região muito perigosa. Mesmo assim, fui. Passei anos pesquisando e relendo diversos livros e não encontrei uma referência sequer sobre o Orbe do Progresso, que, no entanto, vi, da maneira que havia descrito por mim, com todas as suas propriedades mágicas. Achei que estava enlouquecendo. Retornei a Shind e fui visitar Kivion, em Tisamir. Discutimos sobre o assunto e ele me deu uma boa explicação para aquela história. Disse-me que, além dos dons mágicos que possuo, poderia, sem saber, possuir também alguma capacidade ligada ao Jii, a energia que tudo cerca, estudada pelos sábios de Tisamir. Investigamos e descobrimos que eu possuía a capacidade de receber mensagens de outros tempos, através dos sonhos, das quais, no entanto, não podia recordar-me. Estudei minhas capacidades no Ermirak e aprendi a lidar com elas. Tudo o que aprendi, no entanto, ainda é pouco, se comparado ao que precisamos saber para tentar evitar que um grande mal domine o nosso mundo. Esse mal vem de profundezas obscuras e possui forças imensas. O efeito que todos vocês já puderam perceber e sentir, no entanto, pode ser comparado a uma semente apenas das grandes árvores de Shind.
– Desculpe-me, Sr. Modevarsh, mas por que está nos contando toda essa história? – perguntou Kyle. – Por que o senhor me curou?
– Porque preciso que vocês realizem uma grande tarefa.
A cura de Kyle, sua recente libertação e as palavras de Modevarsh trouxeram de volta a Kiorina algo que ela não sentia há muito tempo: excitação. "Qual seria essa grande tarefa?" – pensava a ruiva.
– O que lhes pedirei não é algo simples e vocês aceitarão apenas se desejarem. Vocês devem ir ao berço dos nove vales, os reinos bárbaros, e procurar o oráculo de Shimitsu. Encontrando-o, poderão perguntar a ele como exterminar esse mal que germina em nosso mundo. Em meus sonhos e meditações, descobri que o oráculo de Shimitsu é a chave para deter o mal, que avança sobre nosso mundo com ferocidade incrível.
– Como poderemos encontrá-lo? – quis saber Archibald.
– Esse é um mistério que vocês terão de resolver, mas sei que existem relatos sobre o oráculo em livros nas antigas bibliotecas de Thayfoon.
– Meu mestre havia me advertido sobre o que estamos passando; acredito que tenho um papel a cumprir nesse caso. Em nome de Kivion, aceito sua tarefa. – disse Noran.
– Eu também vou. – disse Kyle.
– Poderemos impedir que esse mal caia sobre Lacoresh? – perguntou Kiorina, preocupada.
– Infelizmente, Louni Bal, o reino de Lacoresh e seus habitantes, já está engolfado pelas forças do mal. Os necromantes, representantes desse mal, derrubaram seu rei e colocaram no lugar um de seus líderes, o Arquiduque Maurícius. – disse Modevarsh.
– Maurícius agora é o rei? – assustou-se Gorum.
– Sim. Seu rei assim como muitos outros que se opõem aos ideais dos necromantes foram mortos ou aprisionados. O reino de Lacoresh neste momento é um instrumento do mal.
– Será que meus pais estão bem? – disse Kiorina, com lágrimas nos olhos.
– Não há como dizer. De qualquer maneira, devemos nos mover. A manhã já chegou e, em pouco tempo, os necromantes estarão em nosso encalço. Vocês devem ir a Lacoresh e conseguir um navio para os reinos bárbaros; enquanto isso, Vekkardi, o bom Radishi e eu teremos muito o que fazer por aqui.
– Iremos então em busca do oráculo? – indagou Gorum.
Kiorina, Mishtra, Archibald e Kyle se entreolharam e acenaram positivamente. Modevarsh, sem querer perder mais tempo, indicou o caminho e disse:
– Sigam então, meus jovens e bravos. Encontrem o oráculo de Shimitsu e tragam-me as boas-novas.
Despediram-se respeitosamente de Modevarsh. Para cada um, o velho silfo fez recomendações específicas, em voz baixa.
– Não deixe os maus sentimentos tomarem conta de você, minha filha. Procure a purificação de suas dores através do amor e da amizade. – disse a Mishtra, de quem se despediu com um beijo na face.
– Seja forte e preze o conhecimento mais que tudo. Para alguém de coração bom como você, isso é o mais importante. É através do conhecimento que você poderá ser útil às pessoas que quer bem. – disse a Kiorina, que ouviu tudo com muita atenção.
– Continue com seu senso de humor e não deixe cair o moral desses jovens. Mais importante que a força, é a determinação. Surgiu para você uma oportunidade de equilibrar-se com seu passado; deixe-o onde ele deve ficar e abrace o futuro. – disse a Gorum, de quem se despediu com um abraço.
– Medite sempre e lembre-se de Kivion. Aceitando você como discípulo, ele lhe deu um voto de confiança. Também confio em você e no seu julgamento. – disse a Noran, que agradeceu a confiança de Modevarsh, sentindo estranhamente a proximidade de seu mestre.
– Você, mais que todos, tem uma grande batalha a travar. Quando estiver em dúvida, escute seu coração, pois tudo o mais estará contra você. – Archibald ouviu as palavras de Modevarsh e lembrou-se de trechos dos escritos sagrados que falavam sobre provações. Entendeu, naquele momento, que sua vida sempre fora uma grande provação. Segundo o que lera, somente os escolhidos para tarefas divinas passarão pelas mais difíceis provações. Sentiu medo e despreparo e recorreu imediatamente às orações, que havia deixado de lado. Sentia sua fé abalada e precisava de fortaleza. Por isso, rezou bastante.
Por último, Kyle se aproximou. Agradeceu mais uma vez a Modevarsh por lhe salvar a vida. O silfo lhe disse:
– Eu lhe trouxe de volta porque você carrega em si uma chama especial. Deixe o que está oculto aflorar. Você possui uma rara capacidade entre os seres humanos, assim como seu pai.
– Você conheceu meu pai?
– Seu pai, seu avô e seu bisavô. Sua família possui um dom especial, ensinado por Shimitsu. Você deve desenvolvê-lo. Aprenda a meditar com Noran, pois, através da meditação, esse dom será libertado.
– Do que você está falando?
– Confie em mim. Quando o momento chegar, você saberá. Encontre o oráculo e desenvolva seu dom.
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