Capítulo 53

CAPÍTULO 53

Amanhecia uma manhã úmida e cinzenta. Um pouco de luz penetrava por frestas nas janelas e portas da sala luxuosamente decorada. Noran encontrava-se sentado numa das cadeiras de encosto alto, revestidas por veludo púrpura. Com os pés descalços sobre a mesa, inclinava a cadeira, procurando um ponto de equilíbrio inalcançável, o que durou toda a madrugada, jogo que refletia o que se passava em seu interior.

Sentia-se estranho, fora de si, em todos os sentidos. Tentava encontrar um ponto de equilíbrio para a sua razão. Vivia, nos últimos meses, um pesadelo, no qual assassinou, torturou, foi desumano. Tornara-se um criminoso. No início, tudo foi feito com a intenção de ajudar seus amigos, mas a situação passou a dominá-lo. Foi por isso que não quiseram recebê-lo em Tisamir, quando foi buscar auxílio. Sabiam o que aconteceria, enxergaram através de sua alma e o que viram não tinha sido nada bom.

Recorreu a seu amigo Radishi e traçaram um plano perigoso demais: conceberam uma maneira de enganar seu captor, o sujeito que havia subjugado sua vontade, o homem que moldara sua conduta e o transformara num agente do mal, Arávner. Seu plano havia funcionado, Arávner nunca chegou a suspeitar, não havia como! Com a ajuda de Radishi, conseguiu esconder tão profundamente qualquer intenção ou pensamento contrários aos planos de Arávner, que, em sua vontade, progressivamente, as boas intenções tornaram-se ausentes. Arávner ficou tão convencido de sua lealdade, que lhe conferiu a posição de senhor da fortaleza e boa parte das próprias responsabilidades, até que voltasse de suas viagens.

Agora, depois da vinda de Vekkardi, voltaram à mente de Noran sua bondade e sua ética, o que não foi suficiente, no entanto, para apagar as ações e pensamentos do Noran que havia surgido, o que escondia seu rosto, no início por auto-censura, depois como forma de amedrontar e torturar seus inimigos.

Se seu mestre, Kivion, pudesse vê-lo, ficaria envergonhado. Sentia-se envergonhado de uma maneira extrema. Pensou em se matar. Não suportava mais o tormentoso confronto entre o bem e o mal em si. A única maneira daquilo acabar era uma das partes se impor. Pensou nessas coisas durante todo aquele dia, em que ninguém se atreveu a interromper sua meditação, nem mesmo o insano Kurzeki.

Anoitecia. Pequenos pontos de luz alaranjada adentravam a sala, deixando-a turva. Noran sentia seu estômago doer, sua garganta urgia por água, mas o único movimento que conseguia ainda fazer era aplicar força com os pés sobre a mesa, procurando equilibrar a cadeira sobre duas de suas pernas.

"Noran..." – ecoou uma doce voz feminina em sua mente.

– Hum?

"Ajude-me, Noran..."

"Quem está aí?" – pensou ele.

"Por favor, ajude-me a ajudá-lo..." – disse a voz trêmula, quase sofrendo.

"Espere! Eu a conheço."

"Sim, por favor, acalme-se e pense em algo bom, pense em coisas boas, só assim poderei sintonizar meu pensamento com o seu."

"O que posso pensar? Que bondade me restou?"

"Procure! Tente! Eu sei que você pode. É a primeira vez, em meses, que consigo fazer contato."

"É você, não é?"

"Sim, sou eu mesma..." – veio a voz, enfraquecida.

"Por que você veio? Por que quer me ajudar? Olhe para mim!" – pensava Noran, com grande carga de ira.

"Eu vejo o mal em você, sim, um grande mal!"

"Pois, então, vá embora! Eu poderia contaminá-la! Para mim, não há mais esperança... Sou uma vergonha para meu mestre... para meus amigos... para mim!"

"Não diga isso! Kivion não ficaria envergonhado."

"Não? Como sabe?"

"Ele esteve lá, não se lembra? Você sabe que ele esteve onde você está agora."

"É verdade... Ele me estenderia a mão, me ajudaria... Ninguém é perfeito nem é sempre bom... Eu entendo. Preciso me ajudar, prevalecer, me redimir, combater o mal em mim e fora de mim... fora de mim!"

Noran abriu os olhos e percebeu que estava sentado na sala com os pés para o alto. Equilibrava-se em dois pés da cadeira em que se sentava, o que não durou mais que um piscar de olhos, até ele cair. Olhou à sua volta; estava escuro. Levantou-se, foi até a porta e a abriu. Saiu da sala atapetada e andou sobre o chão gelado, sem fazer nenhum ruído. Chegou num salão maior, iluminado por dois lustres repletos de velas acesas. Havia uma estante na altura da cintura sobre a qual estavam diversos objetos, dentre os quais copos e uma jarra com água. Noran matou sua sede. Dirigiu-se a uma das paredes, coberta de máscaras de todos os tipos e materiais. Escolheu uma de metal esverdeado, envelhecido e fosco. Colocou-a sobre o rosto, afixando-a com tiras de couro afiveladas. Parecia ser tarde da noite; a fortaleza estava calma e vazia, como era habitual. Escutou passos vindos do salão seguinte e, em seguida, a voz de Kurzeki.

– He, he, he... Como está, jovem mestre? Imagino que esteja melhor. He, he, he...

– Sim. – respondeu moderadamente, controlando-se para não chamá-lo de verme desprezível ou coisa pior.

– O prisioneiro resistiu, está vivo. He, he, he... por enquanto... he, he, he... da maneira como o senhor instruiu! – disse Kurzeki, coçando uma de suas pequenas feridas na orelha.

– Muito bem. – disse, com a voz abafada, pois a máscara tinha orifícios apenas para os olhos.

– Ele está nas catacumbas, jovem mestre.

– Leve-me lá.

– Como quiser... he, he, he... como quiser, oh, mestre das máscaras! He, he, he, he....

Pouco tempo depois, encontravam-se nas catacumbas, sob a fortaleza. Era um local úmido, escuro e frio. Havia ratos e insetos em abundância. Ao chegar na cela em que estava Vekkardi, Noran ordenou que Kurzeki fosse embora. Antes de atender seu senhor, no entanto, ele tirou de sua roupa um pedaço de papel, dizendo:

– Sua esposa enviou-lhe este bilhete...

Noran estreitou os olhos, pegando o papel dobrado. Colocou-o no bolso e disse:

– Depois cuidarei disso... – e fez sinal para que o louco se fosse.

Kurzeki saiu correndo e pulando loucamente, enquanto suas estranhas gargalhadas ecoavam por toda a catacumba. Noran aproximou-se do corpo de Vekkardi estirado no chão.

– Você está acordado? – indagou, retirando a máscara.

Vekkardi rolou os olhos, tentando focalizá-lo, mas sua visão não se estabilizava; enxergava apenas borrões e o que escutava se misturava, sendo alguns sons ampliados e outros distorcidos.

– Ahn? Há alguém aí?

Noran aproximou-se mais de Vekkardi, agachando-se.

– Sim, sou Noran, de Tisamir, e você é Vekkardi, o cavaleiro errante que salvou minha vida um dia.

– Radishi? – disse a voz embriagada. – Radishi, é você?

– Não, sou Noran... Escute, vou ajudá-lo.

– Radishi, eu fiz o melhor que pude, acho que consegui, libertei Noran, libertei seu amigo...

– Acalme-se... Deixe-me ajudá-lo. – Noran segurou Vekkardi pelos braços, auxiliando-o a ficar de pé. – Vamos, precisamos comer e depois buscar minha esposa.

Deram mais alguns passos cambaleantes e Vekkardi replicou:

– Você se casou, Radishi?

– Sim. – disse Noran, aceitando ser chamado de Radishi. – Acho que foi o melhor que fiz antes de enlouquecer...

– Então, é isso: você ficou louco e agora acredita ser Noran... Entendi.

Noran pensou que havia alguma coisa errada com Vekkardi, talvez algo que os necromantes tivessem feito, algo que tivesse bebido. Esperava que o efeito fosse passar. Seguiram pelos corredores escuros da catacumba, escutando gemidos e gritos das pessoas e criaturas aprisionadas ali. Pela primeira vez, em meses, aqueles sons voltaram a causar arrepios em Noran, certamente um sinal de que seu antigo eu começava a retornar. Quando terminaram de subir as escadarias, Vekkardi demonstrou alguns sinais de melhora; sua visão voltou e ele pôde então enxergar Noran.

– É você, Noran? – disse, franzindo as sobrancelhas.

– Vejo que você está melhorando...

– Sinto-me muito estranho, mas agora me recordo. Eu... – olhou para seu próprio torso e apalpou o abdome. Encontrou um ponto de carne dura no local onde uma das flechas havia perfurado. – Cicatrizou? Como?

– Ordenei que cuidassem de você.

– Mas o que aconteceu? – olhou a máscara que Noran trazia amarrada a uma das mãos.

– O que aconteceu, de certa forma, foi algo muito simples... Fui corrompido pelo mal, ou melhor, por um mal de enormes proporções, que está corrompendo todo o reino de Lacoresh.

Vekkardi já reunia forças para andar por si só. Noran vestiu a estranha máscara de metal esverdeado e instruiu Vekkardi a andar na frente. No caminho, encontraram-se com alguns iniciados da seita dos necromantes, que não ousaram fazer quaisquer indagações, temendo as represálias de Noran. Limitaram-se a cumprimentá-lo reservadamente e a observar o estranho com ligeira desconfiança. Os dois subiram a escadaria que levava a uma das torres da fortaleza. Chegando ao topo, Noran advertiu:

– Ela está acordada, é melhor tomarmos cuidado.

Vekkardi retornou um olhar confuso, pois não havia entendido o comentário de Noran, que retirou de seu cinturão uma argola de metal com algumas chaves e abriu uma série de trincos e fechaduras. A porta se abriu com um pequeno rangido. O quarto era amplo e parecia ser bem cuidado. Do seu interior, veio uma leve fragrância de flores. Havia um grande portal de madeira aberto do lado oposto. Como a porta ainda estava aberta, formou-se uma forte corrente de vento gelado, apagando a maioria das velas do lustre. O portal dava para uma sacada, onde a silhueta de uma figura feminina podia ser vista. Estava de costas para o quarto, contemplando o silêncio noturno, enquanto o vento fazia o tecido do seu vestido esvoaçar. Entraram e Noran fechou a porta, cessando a corrente de ar. Na quase penumbra, aproximou-se da mulher, que parecia não se importar com a presença dos visitantes.

– Mishtra. – disse Noran. – É hora da ir.

Atendendo ao chamado de seu esposo, a silfa se virou. Possuía um triste semblante e fixou o olhar sobre Vekkardi, fazendo esforço para reconhecê-lo.

"Não nos conhecemos?" – indagou ela mentalmente.

Vekkardi surpreendeu-se, mas, após alguns instantes, respondeu:

– Sou Vekkardi, nos encontramos uma vez, lembra-se?

Ao escutar o nome, Mishtra conseguiu se lembrar. Rememorou o tempo em que estava livre, em contato com a terra, quando podia deitar-se na grama, sentir o orvalho da manhã.

– Vamos. – insistiu Noran, olhando para baixo, sem poder encará-la.

"Onde? Buscar mais pessoas boas como Vekkardi para corromper?" – perguntou Mishtra, através de pensamentos dirigidos apenas a Noran.

– Não. Na realidade, foi ele que veio nos resgatar. Trouxe-me de volta. Permita-me estabelecer contato e lhe explicar.

Noran abriu sua mente para Mishtra, que logo percebeu a vergonha e o arrependimento profundo dele, que começou a expor os acontecimentos passados detalhadamente, numa velocidade incrível. Explicou seu encontro com Radishi e seu perigoso plano para enganar Arávner, que trouxe efeitos terríveis. Ele se expôs para a silfa de tal modo, que ela foi possuída pela compaixão, mesmo com todo o ódio que nutria por ele havia meses. Ao terminar de explicar tudo, Noran viu-se ajoelhado aos pés da silfa, chorando e dizendo, com a voz embargada:

– Mishtra, por favor, perdoe tudo que fiz... Se não puder, tente ao menos compreender que quem fez aquelas coisas não fui eu...

Mishtra não se mexeu; apenas rolaram lágrimas de seus olhos. Apesar da compaixão que sentia por Noran, ainda não era capaz de perdoá-lo.

– Senhorita Mishtra, por favor, me escute. Precisamos ajudar nossos amigos, que, neste momento podem estar precisando de nós. – disse Vekkardi, preocupado.

Mishtra franziu a testa e olhou desconfiada para ele, que acrescentou:

– Meu irmão, Kyle, Kiorina, Gorum, Archibald.

Mishtra enxugou as lágrimas, se recompôs e enviou pensamentos a Noran.

"Levante-se! Temos que ajudar nossos amigos."

"Então, você me perdoa?"

"Perdoar?" – pensou, com semblante odioso. "Não ligue para meu perdão, ele não é importante."

"Não? O que é importante, então?" – quis saber Noran.

"Ajudar nossos amigos! O que mais?" – respondeu Mishtra e acrescentou um pensamento que não revelou a seu esposo: "Depois... minha vingança!"

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