Capítulo 5
CAPÍTULO 5
A chuva era uma das mais fortes daquele ano, um pouco incomum para a estação. Estava tão intensa, que nem mesmo os obstinados feirantes da Feira da Meia-Lua haviam montado suas barracas naquela manhã. Apesar de não ser bom para os negócios, as pessoas, em geral, não se aborreceram muito, já que, com aquela chuva, a manhã tornava-se perfeita para descansar em seus lares aconchegantes, recuperando-se do festival da noite anterior.
Kyle e Gorum estavam sentados perto da forja na oficina. Suas roupas estavam penduradas perto do fogo, secando. O festival fora interrompido na noite anterior com a forte chuva, que ainda perdurava.
Em meio a trovões, barulho de chuva e de goteiras, Kyle e Gorum tomavam chá quente e conversavam sobre o festival. Com nuvens muito escuras, a manhã parecia noite. O fogo da lareira iluminava o rosto de Kyle. Ele olhava fixamente o vapor que saía de seu copo.
– Diga-me, garoto, onde foi parar Kiorina? – quis saber Gorum, depois de beber um gole de chá.
– Ah... você sabe...
– Onde garoto? – perguntou Gorum impaciente.
– Ela sumiu, eu não a vi mais.
– Kyle, você deveria ter ficado ao lado dela, não é uma atitude boa para um cavaleiro deixar sua acompanhante simplesmente sumir.
– Não foi tão simples assim... eu cheguei a ir atrás dela.
– Claro, eu sei...
– Pelo menos a chuva começou apenas no fim do festival, quando a maioria das pessoas já havia ido embora. – disse Kyle, tentando mudar de assunto.
– É mesmo? Isso não altera o fato de que você não vem dando a Kiorina o tratamento que ela merece. Você não retorna metade da atenção que ela lhe dá.
Kyle levantou-se e disse em tom mais alto:
– Olha aqui, Gorum, você não sabe o que aconteceu! A culpa não foi minha! Aquela garota é completamente maluca e sumiu sem deixar pistas! -terminou de falar e pegou a sela de seu cavalo.
– Onde você pensa que vai, garoto?
Kyle fingiu não ouvir. Desistiu da sela e montou o cavalo em pêlo. Puxou a corda que prendia o portão, que subiu, e saiu cavalgando pela chuva.
Gorum, ainda sentado, balançava a cabeça negativamente e dizia:
– Se ele se parecesse um pouquinho menos com o pai... nem falou nada sobre o vestido dela!
Gorum levantou-se e foi até o portão para fechá-lo. Observou Kyle sumir no meio da chuva e da trovoada. Antes de fechar o portão, viu uma carruagem vindo da direção para onde Kyle havia cavalgado. Esperou e a carruagem parou em frente à sua oficina. Abriu-se a porta, e Gorum pôde ver seu amigo Julius Fortrail descer.
– Gorum, aquele não era o Kyle?
Gorum balançou a cabeça, confirmando. Julius correu para dentro da oficina e disse:
– Para onde ele vai com tanta pressa?
– Não me pergunte, meu amigo, não me pergunte...
**********
Kyle cavalgava pelas ruas de Kamanesh em meio à chuva. Algumas pessoas observavam sua passagem pelas janelas de suas casas. Seu cavalo levantava muita água ao passar pelas grandes poças. Depois de alguns minutos, ele havia chegado a seu destino, o local onde deveria estar o acampamento dos artistas que haviam feito apresentações no festival. Ficou decepcionado ao perceber que eles não estavam ali. Pensou que poderiam ter mudado o acampamento de lugar e decidiu passar na Taverna da Lua para ver se alguém sabia algo. Chegando lá, ficou surpreso ao ver que havia muitas pessoas comemorando. Ao entrar, ouviu:
– Kyle Blackwing, junte-se a nós! Vamos comemorar!
– Comemorar? – disse Kyle, surpreso.
A taverna estava cheia, como numa noite de farra. Lá estavam alguns dos feirantes e o pessoal da companhia do pai de Kiorina, Sr. Lars.
– É! Venha comemorar! – disse um homem. – Ontem à noite nasceu o filho do nosso grande companheiro Jeero!
Kyle ficou surpreso e foi cumprimentar o novo pai. Com toda aquela animação, acabou-se esquecendo do que queria perguntar e juntou-se ao grupo.
– Kyle! – disse Jeero, levantando-se – Depois daquela história que o Duque contou sobre seu pai e considerando tudo o que sabemos sobre ele, estive pensando se você me daria a honra de me permitir dar ao meu filho o nome de seu ilustre pai, Armand.
– Cl... claro, Jeero, é uma honra para mim também! – disse Kyle, cada vez mais surpreso do respeito que obtinha por ser filho de quem era.
– Então, está decidido! – disse Jeero, com força.
– Um brinde ao filho de Jeero, Armand DeFruss! – disse Bal, o dono da taverna, e acrescentou: – Rodadas por conta da casa!
Todos gritaram, muito alegres, e a comemoração se estendeu por quase todo o dia.
**********
Kiorina estava entediada, toda aquela chuva lhe dava muito sono. Agora teria mais uma aula teórica sobre a história da Alta Escola. Queria muito sair para ver o filho de Jeero, que havia nascido na noite anterior. Estava em uma das varandas internas da escola, observando a chuva cair na fonte no centro do jardim. Seu tédio foi interrompido por uma curta e baixa comemoração.
– Consegui! – disse uma voz distante.
Ela olhou diretamente para baixo e viu Chris Yourdon, andando no meio da chuva. Havia algo incomum naqueles passos. Ao observar melhor, viu que ele, na verdade, flutuava, e que a chuva não o tocava, mas se desviava dele. Correu pelas escadas e, ao chegar lá embaixo, chamou-o:
– Chris, ei, Chris!
Ele se virou, abriu um dos olhos e começou a flutuar em sua direção.
– Kiorina de Lars, o que você deseja?
Ela fechou os olhos e respirou fundo, tentando conter-se. Mesmo após fechar os olhos, podia ver a imagem de Chris em sua mente, um belo jovem de longos cabelos castanhos, olhos da mesma cor e traços delicados. Finalmente, disse:
– Estou disposta a perdoar você, se me ensinar como se faz isso.
Chris Yourdon aterrissou suavemente, pegou a mão direita de Kiorina, curvou-se e a beijou, num gesto de verdadeiro cavalheirismo.
– Elementar, minha cara Kiorina! Você já aprendeu a levitação pelo vento, não?
– Sim... mas isso era obviamente uma espécie de domo, e os domos só são ensinados a partir do quarto círculo!
– É claro que uma técnica mais simples, aplicada inteligentemente, pode provocar efeitos além dos esperados. Se você investigasse um pouco mais a magia, saberia disso.
– Você vai dar uma de grande mestre ou vai me dizer logo como fazer? – disse Kiorina, impaciente.
– Certo! Você deve fazer o encanto, direcionando a energia exclusivamente para a sola de seus pés.
– E daí? Isso não me deixa seca!
– É... mas, com isso, você deixa energia de sobra para concentrar-se em uma pequena camada de vento ao redor de seu corpo! – disse Chris, virando-se e soltando uma risadinha.
– Por que esse risinho cínico agora?
– Se eu disser, você não vai gostar...
– É melhor você dizer logo, senão... – ameaçou ela, segurando a gola dele com ambas as mãos.
– Calma! – pediu, enquanto retirava as mãos dela de sua roupa. – Se você quer mesmo saber, eu diria que o motivo para você ainda estar no segundo círculo é não ter ainda percebido que você deve moldar a mágica e não deixar que ela lhe molde.
Aquilo soou como um insulto, o que, de certa forma, era, e fez com que ela perdesse a cabeça e invocasse um feitiço rapidamente e com muito ódio. Com as mãos direcionadas para o peito de Chris, ela deu um grito. Uma forte rajada de vento, então, o arremessou em direção à chuva. Ele caiu sentado em uma poça de água, alguns passos atrás.
Aquele grito e a cena chamaram a atenção de todos os que ali passavam e também dos que estavam nas varandas internas dos três andares da Alta Escola.
Chris, ao levantar-se completamente molhado, ainda disse, em tom de piada:
– Viu o que eu disse? Você nunca vai conseguir fazer magia da forma elegante como eu faço! Ainda tem muito o que aprender... – levantou-se e saiu rindo, atitude que a deixou com mais ódio ainda. – Ah... – disse ele – obrigado pelo banho. Eu estava mesmo precisando me refrescar!
De repente, Kiorina tomou um grande susto: estava em outro lugar, antes que pudesse piscar os olhos. Logo, veio outro susto: viu mestre Alexanus na sua frente, com uma cara nada boa.
– Explique-se!
– É culpa do... – voltou atrás, ao ver expressão de seu mestre, e finalizou: – minha.
– Ótimo! Assim não teremos mais problemas. – pegou um papel sobre a mesa, estendeu a mão e o entregou a ela, dizendo: – Aqui está sua última advertência. Se você continuar com esse comportamento, serei forçado a rebaixá-la de círculo.
Ela mal teve tempo de olhar o papel e ele completou:
– Não pense que não sabemos de suas pequenas escapadas! Agora, por favor, retire-se.
**********
Archibald andava pelos corredores laterais da fria Catedral de Kamanesh. Com a chuva e a luz dos relâmpagos que atingiam seus enormes vitrais, o ambiente era iluminado com uma diversidade de cores e luzes. A Catedral estava fechada. Desde que chegara em Kamanesh, seu novo superior, o irmão Weiss, havia-lhe designado os serviços mais difíceis e pesados. Não que Archibald se importasse muito, mas certamente isso tinha feito com que ficasse muito ocupado e cansado.
Seu dia inteiro, desde a madrugada, tinha sido limpar e arrumar a Catedral, preparando-a para a cerimônia de batismo do filho de um dos empregados do pai de Kiorina. O irônico era Kyle ter ido buscá-lo para o festival e isso ter-se transformado em trabalhar, trabalhar e trabalhar. "O que eu podia esperar?" pensou Archibald. Ele carregava as cadeiras de um salão para o outro e pensava em muitas coisas. "Grande Aianaron, dai-me forças!" sussurrou, ao erguer mais uma cadeira. Elas eram muito bonitas, com motivos religiosos esculpidos, feitas com madeira muito pesada. Enquanto as carregava para compor o círculo principal perto do altar, pensava nas histórias dos deuses. Aianaron era o deus da força e da coragem, filho primogênito de Forlon e Ecta e patrono dos guerreiros. Archibald admirava, especialmente, dois deuses: Aianaron e Shimitsu, o deus da magia. Esses foram os deuses que lutaram na grande guerra ao lado dos seres humanos, até o último momento. Pelo menos é o que se conta para os fiéis da Real Santa Igreja. Ao se tornar um monge Naomir, porém, Archibald descobriu que essa não é a pura verdade. Aliás, ele percebeu que aprendia as coisas de sua religião muito paulatinamente e que, somente quando fosse um membro mais confiável da ordem, a verdade lhe seria revelada. Ele sabia que ela era mais dura e fora reformulada nas bases da religião para que o povo comum pudesse compreender e viver sem grandes conflitos espirituais. Desde que alcançou alguns conhecimentos secretos com os monges Naomir, sua fé ficou abalada. Não conseguia ainda compreender bem por que a verdade não era dita. A maioria de seus pensamentos se voltava para isso, durante os dias e as noites.
– Irmão DeReifos, como vão os preparativos? A cerimônia será em breve. – veio uma voz do outro lado do salão.
Archibald limpou o suor da testa e respondeu:
– Só faltam cinco cadeiras, senhor. – e olhou para seu superior. O irmão Weiss era um senhor de idade avançada, cabelos ralos e andava com certa dificuldade.
– Ótimo! Quando terminar, prepare meus trajes.
Archibald deu uma risada e pensou "Como diria o irmão Meinard, trabalho, trabalho e trabalho! A real purificação, mas nunca na hora de uma refeição!
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