Capítulo 47
CAPÍTULO 47
Grey ardia em chamas. Os navios da esquadra despejavam uma chuva de fogo sobre a cidade, forçando os bestiais a fugirem de suas tocas, desesperados. Os que se reuniam não conseguiam se organizar; com isso, apesar de estarem em maior número, começavam a perder a batalha que se travava fora da cidade.
As tropas de Lacoresh haviam descido da porção elevada do vale no meio da madrugada. Foram guiados pelas chamas que incendiavam os arredores da cidade. Os bestiais, certamente, não esperavam um ataque noturno, mas, mesmo assim, se preparavam para a batalha. Acreditava-se haver mais de dez mil bestiais para fazer frente à investida do exército de Lacoresh. Contando com a força da esquadra que desembarcaria, os números haviam sido calculados como quatro para um. Seria uma batalha decisiva para a guerra, todos sabiam disso.
Ali, em meio a fogo e sangue, estava em jogo uma série inimaginável de interesses. Num dos navios da esquadra certamente estaria o próprio Arqueduque Maurícius, primo do Rei. No castelo, estava o Conde de MontGrey, apreensivo, observando a batalha de sua torre, acompanhado pelo general Graff. Nas tropas, estavam Kandel, Archibald e muitos outros, lutando por suas vidas. Do lado de dentro das muralhas, Gorum preparava seus homens para o momento oportuno de abrir os portões e lutar pela liberdade. Em outros tantos lugares, estavam pessoas de todos os tipos, que sentiriam a repercussão dos eventos daquele dia que mal havia começado.
Archibald descia na retaguarda da tropa, acompanhado de seis de seus companheiros monges Naomir. Escutava o tintinar das espadas logo à sua frente. As hordas de bestiais haviam se encontrado com o exército de Lacoresh na dianteira, e ele não conseguia saber como as coisas estavam andando. O barulho infernal aumentava, assim como os gritos de agonia cada vez mais freqüentes e próximos. Logo percebeu que, a qualquer momento, os bestiais chegariam até seu grupo. Pouco antes da luta, o monge superior havia distribuído cristais energéticos, de onde poderiam retirar substrato para a invocação dos poderes dos sagrados ofícios. Cada um recebeu um cristal de bom tamanho, de brilho azulado, e o pendurou no pescoço. Archibald invocou as bênçãos de Aianaron, para trazer ao seu força e destreza superiores e viu o quanto os cristais eram fortes, pois recebera enorme carga do seu.
Um primeiro bestial surgiu em sua frente. Corria, apontando para o monge uma lança. Apesar da pouca luz, Archibald pôde ver o olhar enfurecido da criatura. Sentiu um frio na barriga e entregou-se à vontade dos deuses. De certa forma, não controlava suas ações e agia mais por reflexo que por reflexão. Esperou parado até o último instante, quando deu um passo para o lado, deixando a lança passar a apenas um triz de seu corpo, e golpeou a face do bestial com seu bastão de batalha. Escutou um estalo e imaginou que o bastão se rompera. Surpreendeu-se ao ver que, na realidade, a face da criatura havia afundado, e uma lasca de osso fora projetada para fora da pele, fazendo-a tombar, girar sobre seu próprio eixo, com os pés projetados para o alto, e atingir o chão com as costas. Estava mais forte do que imaginava.
Logo surgiu outro bestial, que carregava sobre a cabeça um martelo de guerra com as duas mãos. Preparou um golpe fatal para Archibald, que girou sobre o corpo, quase encostando no chão, para ficar ao lado da criatura. O bestial se surpreendeu com o movimento e desferiu o golpe, atingindo o vazio. O monge, então, alvejou sua nuca e, com um forte golpe, quebrou seu pescoço e o bastão. Archibald deixou-o de lado e apanhou o martelo do bestial. Era uma arma muito bem feita, com desenhos gravados em sua lateral. Definitivamente não se tratava da arma de um bestial. O martelo era muito pesado para ser manejado, mas, com a força conferida pelo cristal, foi fácil fazê-lo.
O monge abateu mais dois bestiais e pensou por quanto tempo ainda o cristal seria capaz de lhe conferir tanta força. Avançou por entre os homens e sentiu o horror da batalha: sangue e corpos para todo lado, gritos de agonia e lutas sem fim. Viu um de seus companheiros morrer. Não o conhecia bastante, pois era de outro mosteiro, que ficava próximo a Lacoresh. Pediu por sua alma e continuou a lutar. Avançou em direção a um bestial, que segurava a espada numa das mãos e o escudo na outra. Tirou-lhe a vida, antes que ele pudesse se defender. Logo se deparou com outro, que parecia não o perceber, virando-se e se pondo a lutar com um soldado. Archibald achou estranho e então sentiu um frio na barriga, um calafrio na espinha e gelou. Pensou ter morrido, apesar de continuar lutando. Estaria morto?
"Calma! Você não morreu!"
– O que é isso, quem está falando comigo? – perguntou Archibald, em voz alta, abaixando sua guarda.
Logo um monge seu companheiro gritou ao lado:
– Irmão DeReifos, com quem está falando? Preste atenção na sua guarda!
Archibald retomou a guarda e viu mais um bestial passar por ele sem o perceber. Não entendia o que estava acontecendo.
"Archibald!" – veio novamente a voz em sua cabeça. – "Vim ajudá-lo a resgatar Gorum!"
– Quem está falando?
"Um amigo!"
– Amigo? O que está havendo? Por que os bestiais parecem não me ver?
"Estou cuidando para que eles não o vejam."
– Mesmo? Para quê?
"Para que você possa se adiantar e chegar até as muralhas."
– O que eu posso fazer que o exército e a esquadra não vão poder?
"Confie em mim, não há tempo a perder!"
– E a chuva de rocha e fogo sobre a cidade, como poderei atravessá-la?
"Não se preocupe, vá de uma vez!" – ordenou a voz, com delicadeza.
Archibald então pôs-se a correr pelo meio da batalha, presenciando seu avanço.
**********
O general Graff havia vestido sua armadura da placas e sua capa verde escura. Não o fazia havia tempo. Estava ao lado do Conde de MontGrey, na sacada da torre, de onde o nobre não saía de forma alguma e só permitia a entrada de seus homens de segurança e do General.
Graff emagrecera e estava abatido. Seus olhos não brilhavam mais com as batalhas. Havia envelhecido muito durante o cerco. Observava os riscos de fogo que cruzavam o céu escuro saindo do mar e atingindo vários pontos da capital do condado. A chuva de fogo trazia a ruína final à sua cidade. Detestava os bestiais e não temia seu futuro, o que o conde temia terrivelmente, apesar da pouca importância que dava aos bestiais, vendo-os apenas como instrumentos da seita maligna que atormentava seu sono. Temia por sua filha e por sua própria vida. Naquela manhã, acordou suado, tivera um pesadelo terrível. Uma sombra havia aparecido e dito que ele sofreria as conseqüências por revelar o segredo. Graff viu que os navios pararam de disparar e aproximavam-se.
– Veja, senhor, eles estão vindo! Vão nos tirar daqui.
– É? E depois?
– Depois iremos falar com o Rei sobre as coisas que você me contou.
– E o que é tão importante que merece a atenção de nosso querido monarca? – a voz veio de trás deles.
– Cavaleiro Roy! O que o traz aqui? – indagou Graff.
Roy vestia apenas uma armadura leve, e seu rosto pálido estava desprovido de expressão. Deu então um pequeno sorriso e disse:
– Vim buscá-los, é hora de partirmos!
– Como passou pelos meus guardas, cavaleiro? – demandou o conde.
– Guardas? – respondeu, surpreso. – Eles já foram encaminhados, meu senhor, é um momento crítico...
– Sei... – disse o conde, apertando os olhos. Gotas de suor escorriam pelo seu rosto.
O general olhou para ele e, vendo sua expressão contorcida, disse:
– O que há, meu senhor?
O conde olhou o general nos olhos e tomou uma atitude que o pegou desprevenido: empurrou-o sacada abaixo. Desequilibrado pelo peso da armadura, o general não conseguiu se segurar, girou com as costas na sacada e caiu na escuridão. Seu grito pôde ser ouvido na região do castelo, apesar dos sons da batalha. O conde, totalmente transtornado, disse ao cavaleiro:
– Você é um deles, não é? Não é, seu desgraçado?
Roy observava as contrações involuntárias no rosto do conde e disse, friamente:
– Sua intuição é boa, meu senhor!
– Eu sabia! Não me mate! Eu faço o que vocês quiserem. Veja, eu já matei o general, ele foi a única pessoa para quem falei de vocês! Isso me redime, não?
– Isso me poupa um trabalho, senhor. – disse Roy, sorrindo.
O conde, tentando fixar um sorriso forçado, disse:
– Então, somos companheiros, não somos?
– Talvez sejamos! – disse o cavaleiro, desembainhando sua espada.
– Ei, espere aí! Eu o matei! Ele era o único que sabia!
– É o que você acha, conde estúpido! Ele contou para Gorum e mais uns tantos! Faz idéia de quantos problemas isso pode nos render? – antes que o conde pudesse responder ou reagir, Roy atravessou-lhe a espada no peito, atingindo seu coração.
O conde, com um olhar de horror, tentou respirar, mas caiu morto, sentado na sacada da torre.
Roy retirou uma lanterna a óleo que estava na parede e quebrou-a no chão. Logo viu o fogo tomar o tapete, a cama, as cortinas da torre.
– Agora, Gorum e os outros!
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