Capítulo 46
CAPÍTULO 46
Três dias depois das revelações de Kandel, a cabeça de Archibald ainda fervilhava. Dezenas de teorias haviam se formado e se desmanchado, levando-o a sentir uma grande necessidade de voltar a Kamanesh, para consultar livros na biblioteca a respeito dos mortos-vivos.
Apesar de não ter certeza do que estava acontecendo, sabia que os boatos sobre feiticeiros que estariam apoiando os bestiais eram verdadeiros, fossem eles humanos ou não. Confiava na descrição que Kandel fizera, mostrando que o feiticeiro não era um bestial. Andou pelo acampamento e escutou estórias nas rodas dos soldados sobre aparições e bruxos. Sentia o medo deles e não entendia por que os monges Naomir não estavam em peso na guerra. Na realidade, não entendia muitas coisas, e a guerra lhe parecia cada vez mais estranha. Por que não estudara mais sobre guerras? Se o tivesse feito, talvez pudesse compreender melhor o que acontecia.
Os soldados pareciam ansiosos. Sairiam em marcha para Grey ao amanhecer. O mensageiro vindo da capital trouxe a notícia de que a esquadra dos novos navios de Lacoresh partira com destino a Grey. Havia cerca de trinta embarcações carregadas com a guarda da capital, comandada pelo próprio Arqueduque Maurícius, o primo do Rei. As naus eram equipadas com balistas e catapultas preparadas para arremessar muitas cargas incendiárias.
Ao saber que a capital ficaria sem sua guarda, Archibald teve um mal pressentimento. Pensou que, no entanto, ninguém poderia atacar a capital sem passar pelos exércitos e fortes espalhados pela fronteira do Condado de MontGrey. As informações que obtivera certamente trariam mudanças, se levadas às pessoas certas. Decidiu que, contrariando as ordens, deixaria o acampamento e procuraria Mestre Landerfalt, Heirich ou, talvez, ambos.
Fazia os preparativos e deixava a barraca, quando ouviu seu nome ser pronunciado. Havia um homem montado, recebendo instruções de um soldado, que apontou sua barraca. Quem poderia o estar procurando? O homem se aproximou. Não usava uniforme do exército nem parecia ser um guerreiro.
– Archibald DeReifos?
– Sim, sou eu.
– Finalmente! – disse o homem, suspirando. Parecia satisfeito. Desmontou e aproximou-se, revelando ser apenas um rapaz. Retirou algo da sacola de couro que carregava junto ao peito. – Uma carta para você. – disse, entregando um envelope ao monge.
Archibald examinou e percebeu que havia um selo que não reconhecia. Agradeceu. O rapaz disse que havia sido muito difícil encontrá-lo. Logo montou e se foi. O monge levou o envelope para dentro de sua barraca, colocou-se próximo à lanterna que ficava pendurada numa haste e o abriu. Era uma pequena nota, escrita com uma caligrafia muito boa. Dizia:
Archibald,
Tenho notícias de seus amigos Kyle, Kiorina, Mishtra e Noran. Estão todos vivos e presos. Preciso do seu auxílio. Você deve partir para Grey e participar da quebra ao cerco. Assim que tivermos Gorum conosco, nos encontraremos. Queime este bilhete. Não o mostre a ninguém. Não confie em ninguém.
Um amigo.
Archibald leu e releu a nota, mal podendo acreditar. Depois de tantos meses, havia uma esperança, afinal. Seus amigos estavam vivos! Quase se esqueceu de que estava indo para Kamanesh e ponderou sobre essa decisão. Concluiu que não haveria tempo. Voltou a se preparar, não mais para uma viagem, mas para uma batalha.
Na manhã seguinte, marchou com os soldados em direção a Grey. Havia alguma apreensão. Esperavam notícias dos batedores, para saber se seria possível chegar próximo da cidade sem confrontos. Era um tropa formidável, com mais de três mil homens, incluindo uma força de cavalaria com aproximadamente trezentos cavaleiros, um destacamento especial de jovens magos formados pela Alta Escola, além de um pequeno grupo de monges Naomir, ao qual Archibald se integrara.
Ao cair a noite, ergueram um acampamento provisório. Os magos da Alta Escola se prepararam para criar um show de luzes, caso os bestiais se aproximassem, pois luzes fortes à noite causavam danos em seus olhos sensíveis. Após o início do uso dessa defesa, os bestiais começaram a preferir os fins de madrugada ou de tarde para fazer seus ataques, horário em que seus olhos já estavam um pouco mais acostumados à claridade.
Foi uma noite tão tranqüila quanto a situação permitia. Logo cedo, o acampamento foi desfeito e seguiu-se a marcha. No início da tarde do dia seguinte, chagaram a seu destino, Grey. Havia uma elevação de onde se podia avistar o vale no qual a cidade fora erguida. Arrasada pelos bestiais e convertida num grande acampamento de sujeira e escombros, ela não era mais a sombra do que havia sido. Mal era possível identificar as construções, com exceção do castelo e da catedral, ainda protegidos dos bestiais pela muralha interna. Avistaram alguns bestiais, mas muitos mais deveriam estar escondidos nas ruínas da cidade. No céu, centenas de aves carniceiras, freqüentadoras assíduas das pútridas ruínas de Grey.
Era um dia de sol e, para muitos, a primeira vez que avistavam o mar, para onde as atenções estavam especialmente voltadas, pois de lá viria a esquadra que comporia a força de ataque a Grey. Formaram um acampamento no alto, bem à vista dos bestiais, que certamente já sabiam de sua vinda antes de chegarem.
Archibald observava como o mar mudava de tons à medida que a distância aumentava: esverdeado perto da costa, um azul brilhante na maior parte e azul bem escuro próximo ao horizonte, com milhares de traços brancos das ondas de tamanho progressivamente menor, que oscilavam em padrões ritmados. O vento era fresco e havia um odor diferente, bastante agradável. A visão, de certa forma, colocou a cabeça do jovem monge para descansar.
Bandeiras oscilando nas torres do castelo chamaram a atenção de todos. Estavam se comunicando. Archibald pensou que Gorum certamente estaria lá, em algum lugar. Ficou inquieto, pois, ao visualizar a situação, surgiram mais questões em sua mente. Deixou seu grupo e foi procurar o cavaleiro Kandel. Enquanto atravessava o acampamento, vinham-lhe à memória as conversas que tivera recentemente com seus colegas de Ordem, nas quais especulava sobre a atuação de forças sobrenaturais na guerra, mas eles, acostumados a seguir dogmas e orientações dos superiores, pareciam desprovidos de curiosidade investigadora e tendiam a não dar muita importância às histórias de assombração e feitiçaria que Archibald contava, o que o deixava muito irritado.
Quando encontrou Kandel, ele estava reunido com outros cavaleiros, discutindo planos de ação. Teve que esperar um pouco para poder falar com ele. Finalmente, os cavaleiros se separaram, cada qual indo em direção às respectivas tropas, para passar orientações.
– Por favor, Kandel! – o monge teve que falar mais alto, para conseguir a atenção do cavaleiro.
– Irmão DeReifos?
– Podemos conversar um pouco?
– Um pouco apenas, pois o tempo está escasso! – disse Kandel, que vestia uma armadura completa de metal, na qual se via um brilho levemente azulado. Na cabeça, um elmo com espigas na parte superior, que revelava apenas uma parte de sua face.
– Eu tenho uma pergunta.
Kandel sinalizou apenas.
– Por que os bestiais não tomaram Grey de uma vez por todas? Quero dizer, olhe só a quantidade deles! Eu não sou especialista em guerras e em cercos, mas poderiam facilmente ter tomado o que resta daqui! Então, responda-me, Kandel, por que, depois de tantos meses, eles ainda não tomaram Grey?
Kandel pensou por alguns instantes. Havia algumas razões, mas nenhuma delas parecia boa o suficiente, não encontrava um motivo convincente.
– Já pensei um pouco nisso, Irmão DeReifos, e, para falar a verdade, não vejo um motivo forte o bastante, especialmente depois de tudo o que vi nesta guerra.
Ficaram em silêncio, escutando ao longe o ruído do mar, os tambores dos bestiais, que haviam começado a soar desde que haviam chegado, e as conversas embaralhadas de seus companheiros do exército.
– Como o que se comenta por aí, acredito que você já considerou sadismo, por exemplo, o trunfo de possuir nobres para barganhar... – arriscou Archibald.
Kandel confirmou com um gesto. Archibald alterou o tom de voz, mostrando sua inquietude com a situação.
– Mas isso não faz sentido sob a perspectiva dos bestiais. Não acredito que tenham real compreensão do desgaste emocional que sofrem os nossos companheiros de Grey. Para eles, fariam mais sentido torturas físicas, trabalhos forçados e humilhação direta. Além do mais, se a intenção fosse ter um trunfo para barganhas, eles também poderiam ter capturando os nobres e os mantido como prisioneiros. – o monge gesticulava bastante e procurava ser convincente. – Sem falar que essa idéia de barganha também não faz o menor sentido! Já houve alguma barganha com os bestiais até o momento? Eles compreendem isso?
– Até que sim, fizemos pequenas trocas algumas vezes. – disse Kandel, puxando pequenos fios da barba loura, que cresciam abaixo de seus lábios. – Mas há lógica no que você disse; realmente faz pouco sentido esse cerco persistir por tanto tempo, principalmente se considerarmos a impaciência desses bichos.
– Vê o que estou dizendo? – Archibald estava entusiasmado. – Eles estão sendo comandados por mentes superiores, isso tem que virar consenso! Já sondou os cavaleiros? Quantos deles acreditariam que existe algo por trás disso tudo?
– Uns poucos, principalmente os que estão na guerra desde o princípio. O problema é que a grande maioria deles é formada por novatos, ordenados para substituir os que pereceram nas batalhas. O general e os capitães possuem uma mente muito estreita e tendem a desacreditar as teorias, principalmente quando elas ficam mais complexas. Costumam dizer que mais vale pensar em boas estratégias de batalha, que em estórias de fantasmas.
– E quanto aos nobres?
– O barão de Whiteleaf era um homem muito inteligente e preocupado em dar atenção a qualquer informação, mas morreu nas mãos dos bestiais, na queda de Amin. Seu filho, o jovem barão Aaron, tem tido grande participação na contenção dos bestiais ao norte, inclusive conseguindo fazê-los recuar. Ouvi dizer, no entanto, que é muito sanguinário e pouco receptivo a novas idéias. Quanto aos outros, como sabe, não participaram diretamente da guerra; estão apenas recebendo e enviando ordens de suas fortalezas.
– Entendo.
– Portanto estamos com essa situação diante de nós, uma batalha iminente e não temos como levar muitas explicações aos nobres que estão longe e tampouco mudar a mentalidade dos comandantes da tropa, que estão preocupados essencialmente com as estratégias de batalha. – lamentou-se Kandel.
– Bem, se não podemos mudar nada agora, faremos depois, combinado? – disse o monge, estendendo a mão para o cavaleiro.
Trocaram um aperto de mãos e assumiram o compromisso de defender suas idéias junto aos superiores. Antes que Kandel fosse embora, Archibald disse:
– Espere! Tenho um presente para lhe dar.
Kandel parou.
– Por favor, desembainhe sua espada. – pediu o rapaz.
A espada assobiou ao deixar a bainha. Era uma bela peça, com cabo de madeira avermelhada com entalhes simples e lâmina afiada e longa, um pouco mais longa que o padrão. Archibald colocou as mãos sobre a lâmina e entoou um rápido cântico. Kandel sentiu vibração em sua mão.
– O que você fez?
– Abençoei sua espada em nome dos deuses, para que você use sua força sabiamente.
– Obrigado, irmão DeReifos, e que os deuses lhe acompanhem.
– Força e coragem de Aianaron! Que os deuses nos acompanhem a todos.
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