Capítulo 44
CAPÍTULO 44
Desde que Noran falou com Mishtra pela última vez, na fortaleza de Arávner, passaram-se meses. Durante todo o tempo, ele pensava se valeria a pena seguir daquela forma, como um agente colaborador da seita dos necromantes. Sua moral corroía-se pouco a pouco e ele temia estar definitivamente sucumbindo à corrupção.
Praticamente todos os dias, tinha experiências desagradáveis. No sono, sentia alívio da culpa, mas, ao acordar, tornava-se novamente consciente de suas faltas, e o peso voltava.
Com freqüência, lembrava-se das estórias que seu mestre lhe contava sobre o mal, momentos em que sentia um forte impulso para abandoná-lo. Em seguida, porém, pensava em Mishtra e Kiorina e na responsabilidade que assumira. Não participava do mal por opção; era necessário. Pelo menos era assim que pensava, no princípio. Logo terminou o inverno e chegou a primavera. Apesar do verde, das flores e dos animais voltarem aos campos, nada era belo. A guerra continuava, e as forças dos bestiais nunca paravam de chegar, vindas das terras pantanosas do oeste. Já havia um total envolvimento de todo o reino de Lacoresh, que subestimara a força daqueles seres. Os desta guerra não eram os mesmos da guerra de vinte anos passados, e cada nova horda que chegava trazia surpresas. Primeiro foi a que arrasou Xilos, composta por terríveis guerreiros bestiais, possuidores de armas de primeira linha e protegidos por fortíssimas armaduras. Depois vieram os bruxos-bestiais, que se juntaram às hordas na conquista de Amin e de diversos outros pontos de resistência de Lacoresh, na região do condado de MontGrey. Enfim, tropas de elite montadas em corcéis glabros.
O Reino de Lacoresh estremecia ante a ferocidade e o avanço dos bestiais, que, Noran sabia, recebiam grande apoio da seita dos necromantes. Esse conhecimento era para ele uma grande tortura interior.
Ainda havia três focos de resistência na região de MontGrey: os acampamentos na região norte, próximos à fronteira do baronato de WhiteLeaf, os fortes construídos às pressas próximos das fronteiras do Ducado de Kamanesh, e Grey, a capital, cujo cerco durava muitos meses, sendo sua queda esperada para qualquer momento.
Noran tornara-se um filho da noite. Viajava através dos domínios dos bestiais ou dos humanos acompanhado de necromantes, como Clefto e Arete, do cavaleiro Blautreks e de alguns aprendizes da seita. Ia em missões nos cinco baronatos, no Ducado de Kamanesh, ou mesmo na capital, Lacoresh. Participava de interrogatórios e ações de eliminação de testemunhas das atrocidades cometidas pelos necromantes. Notou que havia membros da seita praticamente em todas as cidades em que esteve e mesmo entre os exércitos que combatiam os bestiais.
Quando percebeu que tudo caminhava para uma grande destruição, Noran decidiu arriscar sua vida e a vida de seus companheiros. Pensou que a vida de tão poucos não justificava a morte e o sofrimento de tantos, através das loucuras estavam sendo planejadas por aqueles homens.
Aproveitando-se de uma viagem que faria ao baronato de Fannel, que o deixaria por algum tempo longe de Arávner, Noran começou a forjar seu plano de ação. Iria realizar uma variação do que já havia feito uma vez. Prepararia sua mente para comportar e esconder de Arávner um conjunto de fatos e pensamentos relativos a seu plano. No passado, escondeu fundo em sua mente a manipulação que realizou para conquistar a afeição de sua amada, Giordana. Era engraçado. Aprendera a realizar o processo para fins egoístas e, agora, o usaria para o bem de muitos, algo que seria um avanço sob a perspectiva de seu mestre. Lembrou-se de como o encapsulamento da memória fora feito e que se tornara tão profundo que ele próprio se esqueceu dos fatos que procurou esconder. Desta vez, teria de ser mais preciso, estruturado e muito planejado.
Estavam na capital do baronato, Liont. O barão Fannel e seu filho Adam, necromante iniciado, já eram colaboradores da causa. Havia necessidade de expandir influências nas províncias de Durunt, Vaomont e Manile, na parte montanhosa do baronato, que eram importantes produtoras de vinhos e carne. Além disso, possuía as melhores guildas de artesãos de todo o Reino, sendo o principal centro de ourivesaria e lapidação. Também abrigava a famosa escola de escultura de Audilha, chefiada pelo famoso mestre Carulvo.
As províncias da região montanhosa eram mais isoladas, e povo de lá tinha costumes diferentes, mas nada que interferisse no bom andamento das coisas. Desde que repassassem a parte devida dos tributos e prestassem as homenagens ao Rei, não haveria problemas.
Em breve, Noran e seus comparsas estariam viajando rumo ao norte para a província de Durunt. Ele sabia que ficariam pouco tempo lá e que precisava rapidamente arquitetar tudo. Na noite que passariam em Liont, começaria seu plano.
Liont era uma cidade muito bonita e de ares agradáveis. Casas de madeira, pintadas com cores alegres, como o amarelo e o azul claro, telhados avermelhados e verticalmente inclinados. Possuía diversas praças e belos jardins, com flores de todos os tipos e cores. Era dividida pelo rio Aluviris, que descia das montanhas até o planalto de Or, onde entrava em numa caverna; a partir daí, não se sabia mais que rumo seguia.
Era um alívio para Noran estar em um lugar como aquele, em vez de nos fétidos campos dos territórios dominados pelos bestiais. Arranjaram quartos numa estalagem muito limpa, onde eram servidas apetitosas aves assadas. Comia na companhia de Clefto e de dois aprendizes, escutava a conversa deles, mas raramente lhes dirigia a palavra. Observava como os ares da cidade modificavam um pouco o comportamento daqueles homens. Estavam mais bem dispostos e tiveram uma conversa descontraída. Detestava seus comportamentos paradoxais: em certas ocasiões, portavam-se educadamente e não demostravam nada da maldade que encerravam em si; outras vezes, à noite, atiravam-se a suas atividades macabras, com sacrifícios, insanidade malévola, sede de sangue e de poder. Lembrava-se, com isso, dos ensinamentos de seu mestre sobre a inconstância e a falsidade dos seres humanos. No entanto, nunca imaginou que poderia haver casos tão extremos como os que presenciava agora.
Logo após o jantar, recolheram-se. Noran trancou a porta e observou seu quarto, que estava muito arrumado. Havia a cama, com lençóis limpos, a mesa, com uma bacia azul, um jarro de vidro com água e uma lamparina a óleo acesa; outra, presa acima da porta, iluminava o quarto com tons alaranjados e dançantes. Retirou a faixa que usava na testa, lavou as mãos e o rosto, sentou-se na cama e retirou as botas e meias, procurando afastá-las, por causa do odor desagradável. Tirou a camisa e atirou-se na cama. Estava cansado. Seu primeiro impulso foi dormir e esquecer seus problemas. Deitou-se e fechou os olhos. Relaxou o mais que pôde. Concentrou-se e gradualmente abandonou o corpo. Observou o quarto, bastante escurecido. Sua percepção nesse estado captava poucas cores, tornando tudo meio cinza, mas trazia mais definição aos objetos.
Procurou não olhar para o próprio corpo deitado na cama, pois sabia que aquela visão lhe seria perturbadora. Flutuou através da janela e deparou-se com os contornos de Liont pela noite, seus telhados angulosos e as luzes cinza-amareladas saindo das janelas. Avançou pela cidade e notou que havia pouca atividade no mundo invisível, em geral apenas espectros ocasionais sem força suficiente para perturbar a ordem do mundo físico, e fluxos do Jii, que acompanhavam as pessoas. Tudo muito calmo, se comparado às terríveis energias que pairavam sobre o território dos bestiais. Atravessou a cidade rapidamente, sem dar muita atenção aos detalhes. Ao passar perto do castelo, percebeu uma perturbação nos fluxos de energia e observou com mais cuidado. Havia energias densas ao redor de uma das torres, uma energia negra, que já havia visto algumas vezes. Decidiu afastar-se. Temia que, de alguma forma, quem ou o que fosse responsável por aquelas perturbações pudesse comprometer sua missão.
Flutuou de forma célere rumo ao norte. Em pouco tempo, havia chegado a seu destino, Tisamir. Logo sentiu-se confortado pelos contornos familiares e pela boa energia que emanava da cidade. Sua presença foi detectada de imediato. Sem ser reconhecido, recebeu uma onda de energia que o arremessou longe. Pairou no ar tomado pela surpresa e pensou: "O que houve? Por que fui atacado?" Concluiu que aquilo acontecera devido ao fato de sua alma estar demasiadamente carregada de energias negativas e de culpa, impedindo que ele fosse reconhecido. Precisaria então fazer uma abordagem mais direta. Aproximou-se dos limites da cidade e enviou um pensamento: "Por favor, deixem-me entrar, sou Noran, discípulo de Kivion." Esperou algum tempo, sem obter resposta. Flutuou novamente para Tisamir. Como previu, não foi repelido dessa vez.
"Noran, o que houve com você, meu amigo?"
Noran reconheceu quem lhe falava: era seu amigo Radishi. Apesar de não estar presente, sentia a projeção de seus pensamentos.
"Radishi, eu vim porque preciso de ajuda."
"Percebo, sinto más influências sobre você..."
"Sim, envolvi-me com assuntos dos homens de Lacoresh."
"Eu sei, meu amigo; também sei que coisas terríveis estão acontecendo. Como posso ajudá-lo?"
"Mesmo sabendo da filosofia de nosso povo quanto à não-interferência em assuntos externos, precisei vir pedir ajuda. Muitos sofrem e, devido ao meu comportamento, mais sofrimento foi gerado."
"Sim, entendo, caro Noran. Como posso ajudá-lo? Diga-me. Al’ne’ir me escolheu por causa da nossa amizade."
"Como assim?"
"Fui escolhido para ser o porta-voz de Tisamir. Somente eu recebi permissão para falar com você."
"Entendo, já não sou bem-vindo em Tisamir, não é?"
"Entenda, meu amigo, você se envolveu demais. Penso que deveria ter buscado a pessoa que Kivion foi selecionar junto aos silfos e voltado."
"A passagem de Kivion teve grande impacto sobre mim, assim como a carta que ele me escreveu."
"Uma carta? Seria um intrusão perguntar pelo conteúdo?"
"Não, meu amigo, não tenho segredo com você. Tratava-se de um poema de despedida, que previa o surgimento de um novo elo. Pelo que entendi, para isso acontecer, todos passarão por tormentos e provações."
"Bem, isso pode-se encaixar bem com as últimas predições de Kursh’ne’tou."
"De que modo?"
"Não sei, é só uma intuição."
"Certo..."
"Afinal, existe alguma maneira de eu lhe ajudar?"
"Sim, vou lhe contar meu plano..."
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