Capítulo 42
CAPÍTULO 42
A sensação de andar sem poder enxergar era terrível. Mesmo Noran, apesar de suportar melhor o fato de estarem com os olhos vendados, sentia-se perdido. As mãos atadas atrás das costas também incomodava bastante, especialmente Kyle, que se sentia incapaz de lutar. Noran estabelecera contato mental com seus três companheiros, Kyle, Kiorina e Mishtra.
Mishtra lhe contara que havia sido atingida por um feitiço poderoso, que sugara totalmente suas forças. Com isso, vários homens encapuzados, liderados por Laern, puderam capturá-la sem dificuldades.
Foram obrigados a colocar as vendas antes de chegarem a seu destino. A faixa que cobria os olhos de Kyle possuía uma falha, deixando-o capaz de enxergar seus pés, o chão e os pés e pernas de outros que se aproximavam e se afastavam eventualmente. Desse modo, pôde acompanhar um pouco o que estava acontecendo. Ao descer do coche, viu o chão iluminado por tochas, construído de blocos de rocha escura. Havia montes de neve acumulados nos cantos. Viu também alguns detalhes do corrimão de pedra, quando subiram uma longa escadaria. Tiveram que fazê-lo com extrema cautela, pois o chão estava escorregadio. Ao chegar, pôde ver a parte inferior de uma porta de madeira avermelhada, com detalhes geométricos entalhados. Umas das figuras com mantos escuros passou à sua frente e abriu a porta.
Parecia um amplo salão, pois não era capaz de ver seu fim. O chão era composto de blocos de rocha clara e escura intercalados, formando uma grande superfície xadrez. Ali os passos de todos começaram a soar mais alto, demonstrando a boa acústica do lugar, provavelmente por o salão possuir teto alto. Foram conduzidos por Laern até outro cômodo, cujo chão era coberto por um enorme tapete púrpura escuro, quase negro. Logo, os passos cessaram.
Laern disse a eles que se sentassem. Sentiram grandes cadeiras de madeira com o assento acolchoado. Kyle imaginou que o assento e o encosto fossem feitos de um veludo da mesma cor do tapete.
Estavam muito apreensivos. Kyle distraía-se um pouco, tentando ver o que acontecia pelo buraco em sua faixa, enquanto Kiorina suava frio e pensava em seus pais, Dora, os mestres na Alta Escola e seus colegas. Sentia vontade de chorar, mas as lágrimas não vinham. Às vezes, sentia calafrios ao pensar que podia confrontar-se com outras terríveis criaturas evocadas pela magia negra daqueles homens e até morrer.
Mishtra mantinha a calma e imaginava se teria oportunidade de vingar-se. Mataria muitos daqueles homens, como matara alguns, dias atrás, nos arredores de Xilos.
Assim que passos foram ouvidos no recinto, Noran pressentiu uma poderosa presença e cortou o contato com seus amigos abruptamente. Após um terrível arrepio na nuca, começou a concentrar suas energias em construir escudos mentais, um em cima do outro, os mais fortes que jamais construíra. Transformava-se em um rochedo tremendamente pesado e intransponível. Fechar-se tanto trazia sérias conseqüências, como a percepção cada vez menor do mundo invisível e suas nuanças.
Ficaram sentados por alguns momentos, envolvidos por um silêncio angustiante, do qual surgiu uma voz sinistra, muito clara e levemente rouca, entoando palavras quase musicalmente.
– Então, vejamos! Não saiu exatamente como planejado, acredito, mas o resultado é deveras interessante.
Noran, procurando manter a calma, perguntou:
– É você o senhor de Laern Tiorish?
– Noran de Tisamir! O pródigo discípulo de nosso famoso Kivion Haimasheritin, grande mestre da Ermirak! – disse a voz, parecendo deliciar-se com cada sílaba pronunciada.
Noran surpreendeu-se. Quem quer que fosse, sabia o nome completo de seu mestre, fato conhecido certamente por pouquíssimos indivíduos. Não resistiu e perguntou:
– O senhor é um silfo?
– Um silfo? Você acredita mesmo que eu seja eu um silfo? – o tom de voz foi alterado. – Julga-me mal, Noran de Tisamir! Não pertenço a essa infeliz raça... sem ofensas a você, prezada Mishtra. Não diz nada? Ah, ia-me esquecendo que é muda... Oh, bela silfa infeliz! Rwa... hahaha! – terminou soltando uma sinistra e sarcástica gargalhada.
– Escuta aqui, seu imbecil com voz de mestre de cerimônias, diga logo o que quer! E se for nos matar, faça-o logo! – explodiu Kyle.
A voz continuou rindo, mais suavemente. Kyle pôde ver o estranho se aproximando, suas botas de veludo escarlate com fechos dourados, suas pernas vestidas em calças folgadas, feitas com um tecido negro, macio e reluzente. Quando viu suas pernas por inteiro, percebeu que se tratava de um homem bastante alto. Andava calmamente em sua direção.
Noran parecia sentir sua aproximação e esperou um pouco.
Logo Kyle foi capaz de ver suas mãos, grandes e brancas. Dos dedos projetavam-se unhas grandes como as de algumas mulheres, muito bem tratadas, semitransparentes e lustrosas.
O homem segurou o rosto de Kyle pelo queixo e o levantou. Com isso, Kyle foi capaz de ver a túnica aveludada que ele vestia, uma peça muito bem trabalhada e luxuosíssima, algo superior ao que se via na nobreza.
– Sim, Kyle Blackwing, você tem extrema semelhança com seu pai. Posso imaginar seu olhar!
Kyle sentiu um arrepio com o frio toque daquele homem e ficou intimidado, até que seu rosto foi empurrado para o lado e solto.
– Vo-você, conheceu m-meu p-pai?
– Sim, é claro! Você tem uma tremenda semelhança física com ele, caro Kyle. Imagino que também herdou os dons que seu pai possuía.
– Dons?
– Ah... não se preocupe! Isso é ignorado por todos, até pela própria lenda que surgiu em torno de sua ilustre figura...
– Como assim? Do que está falando, seu maldito? – exaltou-se Kyle.
– Pode esbravejar, meu jovem! Talvez você sobreviva para explorar seus dons...
Viu o homem caminhar em direção a Kiorina.
– O que temos aqui? Uma pequenina flor mal cuidada... Kiorina, não é mesmo?
Kiorina suava e falou, com um nó na garganta:
– O senhor vai nos matar?
– Acalme-se, pequena flor! A morte é demasiadamente doce, uma libertação, cuja maravilha não é do merecimento de vocês.
– O senhor vai nos machucar? – disse a ruiva, com a voz embargada, quase chorando.
Ele se aproximou e acariciou os cabelos cor de fogo da garota.
– Ah, criança... Machucar? Talvez, depende do comportamento de vocês... Se forem bons meninos e meninas, posso cuidar para que meus subordinados não lhes façam mal.
– Quem é você, afinal? – demandou Noran.
– De hoje em diante, podem-me chamar de mestre!
– E o que devemos fazer então, mestre? – indagou Kyle, ironicamente.
– É bom ver que, ainda que a contragosto, se dirige ao seu senhor adequadamente. Quer saber qual será destino de vocês? Digamos que, inicialmente, minhas minas carecem de mão de obra!
– Trabalhar numa mina? Você deve estar brincando! – escarnou Kyle.
– Sou um senhor indulgente, por isso o perdoarei. Acredito porém que devem se preocupar com o bem-estar dessa pequenina flor de fogo e de sua amiga silenciosa. Afinal, a mina está cheia de homens trabalhando duramente, sem folga, e há também meus subalternos, nas mesmas condições de carência afetiva; temo que eles possam fazer algum mal a elas...
Noran entrou em erupção. A simples possibilidade de suas amigas serem vítimas da violência fez com que desistisse de todas as barreiras, preparando-se para um eventual ataque mental. Disse:
– Desprezível! Juro que, se alguma coisa acontecer com elas, irei destruir sua mente de forma jamais vista!
– Aha! Então, discípulo de Kivion, você levantou suas asas!
Ao abaixar as barreiras, pressentiu um ataque. Antes que pudesse reerguer suas defesas, porém, foi atingido por uma fortíssimo ataque mental. Pensou estar liquidado. No entanto, o ataque não visava à destruição de sua mente, apenas colocá-la sob controle. Sentiu-se dominado. Uma espécie de gaiola foi colocada ao redor de sua mente. Apesar da prisão, foi capaz de captar o nome da criatura, Arávner.
"Vamos estabelecer algumas regras a partir de agora, caríssimo Noran." – disse a ele, através de pensamentos.
– Estou ouvindo... – disse Noran, assustado.
"Faremos um acordo de cavalheiros! Eu me comprometerei em assegurar a integridade física das moças e você fará exatamente o que eu disser... O que acha disso?"
– Como posso discordar?
"Perfeito! Oh... você não sabe como é bom ter alguém assim, com as suas habilidades, agindo ao nosso favor!"
Fez-se silêncio.
Então Arávner gritou, em êxtase:
– Kurzeki! Traga-nos vinho, vamos comemorar!
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