Capítulo 38

CAPÍTULO 38

Noran e Kiorina haviam discutido o assunto rapidamente e, mesmo sem concordar em todos os detalhes, decidiram que seria muito arriscado permanecer em Xilos, pois poderiam ser perseguidos novamente por Laern Tiorish e seus homens. Seguiram em direção às minas, a fim de integrar a caravana que iria se formar nos próximos dias. Havia uma pequena vila que ficava próxima das entradas das primeiras minas, com cerca de cinqüenta casas, a maioria delas abandonada por causa da guerra, só restando uns poucos habitantes no local.

Na vila, havia uma estalagem grande, na qual ficavam hospedados trabalhadores temporários das minas e, às vezes, pessoas de Xilos que tinham negócios lá. Estava quase deserta, apenas com o dono, um velho, e seu assistente, um sujeito muito alto e forte, que costumava trabalhar nas minas antes de sofrer um acidente que o incapacitou. Chamavam-se Tibur e Goover.

Tibur recebeu-os, enquanto Goover preparava um quarto para os três. Tibur era um pouco careca no topo da cabeça, mas das laterais brotavam cabelos longos, de um branco quase amarelo. Tinha uma barba mal feita e usava uma faixa de tecido surrado amarrada na testa. Estava atrás do balcão e seus dedos estavam sujos de tinta. Parecia ansioso para fazer a inscrição dos novos hóspedes em seu livro.

Tibur falava um pouco arrastado e tinha uma voz engraçada:

– Seus nomes, por favor.

– Kiorina De Lars, Noran e Mishtra. – respondeu Kiorina.

O velho anotou os nomes no livro, que parecia ser bem antigo.

– Apenas um quarto, senhorita De Lars?

– Sim.

Tibur fez um gesto de incompreensão, arqueando as sobrancelhas e projetando o lábio inferior para a frente, e terminou de fazer o registro.

– O que traz essas belas senhoritas a um lugar com este, em tempos tão perigosos?

– Viemos apenas esperar pela caravana que vai para WhiteLeaf. – disse Kiorina, sorrindo, pois havia simpatizado com o velho.

Ele fez um gesto curto de concordância com a cabeça e os lábios. Sempre fazia gestos exagerados com os lábios. Logo desviou sua atenção para Mishtra.

– Que pena que já não enxergo bem... ah... o tempo! – disse para si mesmo, olhando o corpo da silfa.

Mishtra olhou-o com desprezo e enrolou-se no manto que trazia.

– Não se ofenda, moça, só estava tentando vê-la melhor... Já não enxergo muito bem, sabe? – disse Tibur, que possuía nos olhos umas manchas esbranquiçadas.

Noran não parecia estar em sintonia com aquela conversa. Olhava a estalagem e os detalhes de sua construção, as falhas e marcas da madeira das paredes e do teto, os objetos que ficavam em cima do balcão e a organização das velas no lustre. No geral, o local parecia abandonado e empoeirado, além de ser uma construção bastante antiga.

Tibur saiu de trás do balcão. Tinha um pouco de dificuldade para andar. Olhou à sua volta e resmungou:

– Realmente, é uma pena... Como se não bastassem as assombrações que assustavam a clientela, agora isto: uma droga de guerra! Porcaria de bestiais! – deu dois passos e completou: – É o fim!

Kiorina aproximou-se, colocou a mão sobre os ombros do velho e disse:

– Calma, senhor Tibur, nós vamos vencer a guerra, e as coisas vão enfim melhorar.

As últimas palavras do velho capturaram a atenção de Noran, que, infelizmente, não compartilhava o ponto de vista de Kiorina. Desde que se deu conta do que poderia estar acontecendo, passou a ser comum que sua mente se perdesse em divagações. Pensava em todas as implicações do que estava acontecendo, e as poucas conclusões a que chegou não eram nada animadoras.

– O senhor mencionou assombrações? – indagou Noran, interessado.

– Acho que eram apenas histórias...

– Mas sua clientela diminuiu, não foi?

– Sim...

– Se eu dissesse que nós vimos uma dessas assombrações, o senhor acreditaria?

Tibur deu de ombros e projetou o lábio inferior para frente.

– Suponha que existam tais assombrações... O senhor teria alguma história que ouviu e que gostaria de nos contar? Imagino que tenha ouvido muitas histórias por aqui, não?

– Sim, muitas histórias... especialmente nas minas, sobre mineiros desaparecidos. Histórias terríveis, meu filho!

Goover desceu as escadas e disse, com uma voz muito grave:

– Senhor, o quarto está pronto.

– Eu gostaria que o senhor nos contasse algumas delas depois de nos trocarmos.

– É claro, meu filho. Eu contaria ainda que você não pedisse. He, he, he.

Aquela noite prometia ser especialmente fria. Antes de o sol se pôr, nevara e ventara bastante. Muitos rangidos puderam ser ouvidos, provenientes das janelas, além dos assobios provocados pelo vento ao passar por frestas na madeira.

Goover havia preparado um cozido verde e pastoso de raízes, que, apesar de não cheirar muito bem, tinha um sabor razoável. Estavam todos ao redor de uma grande mesa de madeira escura, construída com grossos cortes, que parecia inquebrável. Ela estava posta, com pratos fundos, copos de couro e colheres de madeira para seis pessoas.

Kiorina, muito curiosa, após comer um pouco do cozido, perguntou:

– Senhor Tibur, para quem é esse prato?

O velho mastigava um pedaço de raiz e disse, com a boca cheia:

– O outro hóspede... mmm... um rapazote.

– Um garoto estranho... Ainda não chegou; ele, às vezes, sai e só volta no dia seguinte. – disse Goover.

O velho comentou, ainda com a boca cheia:

– É... imagino onde dorme...

Houve um pequeno silêncio, mas, em seguida, os barulhos de todos à mesa voltaram. Aproveitando-se da pausa, Noran disse:

– Senhor Tibur, lembra-se das histórias? Poderia nos contar uma delas, por gentileza?

– Ah, sim, uma história de assombrações... he, he, he... – o velho mudou a postura em que se encontrava; corrigindo a posição da coluna, elevou a cabeça sutilmente e passou a mão sobre a barba rala. Continuou: – Vou lhes contar a história de Gulfar, o fantasma das minas. É uma história muito popular entre os mineradores. Sempre que falamos em mineração, nos lembramos dos anões. Uns dizem que foram eles que, há muito tempo atrás, ensinaram para os humanos os segredos da fundição dos metais e da feitura de armas. São histórias que vão longe no passado, tão antigas, que não estão nem nos mais velhos livros que conhecemos. Até mesmo os motivos pelos quais os humanos perderam o contato com os anões não são conhecidos.

Mishtra parecia um pouco incomodada com a história. Um dos elementos da cultura dos silfos alimenta aversão aos anões, bem menor agora, provavelmente porque a maioria dos silfos e dos anões costumam viver sem se encontrar nem uma vez sequer.

– Dizem que Gulfar foi um anão que não queria abandonar estas minas. Na época, os anões decidiram abandonar a região e migrar para a Cordilheira de Thai, que fica ao norte. Gulfar resistiu, pois não queria abandonar uma mina que era muito rica não só em prata, mas também em cristais de sargentium e diamantes.

– Cristais de sargentium? – perguntou Noran.

– É o que dizem... Eram cristais muito raros, que já não se encontram mais.

Kiorina franziu as sobrancelhas para Noran e disse:

– Dizem que esses cristais possuíam propriedades energéticas naturais, Noran; nunca ouviu falar?

– Não.

– Dizem que apresentam um brilho amarelado, estranho. – disse Kiorina.

– Talvez já tenha ouvido falar dele com outro nome...

– Aqui se fala muito em encontrar cristais de sargentium. – disse Tibur. – Acredita-se que quem usa jóias feitas com esses cristais vive mais. Gulfar era obcecado por essas pedras e viveu minerando e produzindo colares, anéis e coroas com elas. Dizem que era o patrono de uma família de anões e que, com o tempo, as pessoas de sua família foram embora, até que ele ficou sozinho. Teria vivido mais de quinhentas primaveras, até morrer trabalhando na mina. Muitos caçadores de tesouro já procuraram o túmulo que Gulfar construiu para si mesmo, onde se acredita existir um grande tesouro.

– Isso não parece assustador; na verdade, é excitante! Alguém já achou uma pista de onde fica o túmulo de Gulfar? – perguntou Kiorina, exaltada.

– Calma, a melhor parte ainda não chegou... Dizem que a obsessão de Gulfar com a mineração de mais tesouros era tanta que, quando morreu, seu espírito ficou preso nas minas e continua minerando até hoje. O pior: dizem que, se um minerador encontrar cristal de sargentium, o fantasma de Gulfar aparece para ele, carrega-o até seu túmulo e o tranca dentro dele, junto com seus tesouros.

– Que horrível! – exclamou Kiorina.

– Não se sabe como essa história surgiu, se é ou não verdade, mas o fato é que há mais ou menos quinze anos foram vistas diversas assombrações nas minas. Quando algum trabalhador desaparece, isso é atribuído às assombrações, entre elas Gulfar, o fantasma das minas.

– Interessante, muito interessante. – disse Noran.

Um novo silêncio se fez e passos foram ouvidos. Escutaram um rangido forte e, em seguida, a porta da estalagem se abriu. Uma rajada de vento e flocos de neve invadiram o lugar e algumas das velas se apagaram. Kiorina sentiu um frio na espinha; lembrou-se da aparição que havia enfrentado recentemente e da dor que sentira, gelada e cortante.

– Não é nada, apenas o outro hóspede do senhor Tibur. – disse Noran.

Kiorina deu um suspiro e Goover também. Tibur levantou-se e retirou uma vela do candelabro para levar até as outras, a fim de reacendê-las.

– Chegou a tempo para o jantar, Ian. Goover preparou um cozido de raízes. – disse ele.

O garoto aproximou-se. Tinha um andar diferente, gingava um pouco; possuía longos cabelos escuros, bastante lisos, até a cintura; era bem magro, mas os músculos eram bem definidos. Vestia uma calça de couro marrom-fosco, apertada, e um blusão negro. Colocou seu casaco escuro sobre outra mesa.

– O que houve? Até parece que viram um fantasma! – disse Ian.

Todos riram. Ian ficou sem entender; apresentou-se:

– Meu nome é Ian, prazer em conhecê-los.

– Sou Noran, de Tisamir, essa é Kiorina de Lars, de Kamanesh, e essa é Mishtra.

O rapaz sentou-se e serviu-se do cozido. Mishtra olhava-o com interesse. Seu tipo físico, magro e musculoso, lembrava um silfo. Ela estava atenta aos movimentos dos rapaz, precisos e elegantes, à moda dos silfos.

"Noran, está me ouvindo?"

"Sim, recebi seus pensamentos."

"Esse rapaz não é normal..."

"Eu também percebi."

Enquanto Noran e Mishtra se comunicavam, Kiorina disse:

– Ian, posso fazer uma pergunta?

O rapaz, que parecia um pouco reservado, terminou de mastigar, engoliu e respondeu:

– Sim, é claro.

Kiorina estava muito curiosa, mas, ao mesmo tempo, sem jeito.

– De onde você é?

– Sou um viajante, filho de viajantes, não possuo cidade natal.

– Desculpe-me se sou intrometida, mas o que faz num lugar como este, durante uma guerra?

– Uma boa pergunta, senhorita. Fico imaginando o mesmo sobre vocês... Diga-me, senhor Noran, o que o fez sair de Tisamir para vir até esta vila, no inverno, durante uma guerra?

– Negócios.

– Hum, presumo que veio de Kamanesh também a negócios, não é mesmo, senhorita De Lars?

– Sim e, por favor, me chame de Kiorina.

– Pois é, eu também estou aqui a negócios. Coincidência, não?

– É verdade. – disse Kiorina.

– Infelizmente, a verdade não existe. O que há são apenas meias verdades.

– Ponto de vista interessante, senhor Ian. – disse Noran, intrigado com o rapaz.

– O que o senhor acha, senhor Noran? Acredita na verdade absoluta?

– Sim, mas sua existência não impede que existam meias verdades. Na realidade, as meias verdades só existem por falta de informação sobre um determinado assunto ou situação.

– Entendo... – comeu outra colherada do cozido, tranqüilamente, e continuou: – E qual é a verdade absoluta?

Novamente um silêncio breve, ao fim do qual Noran disse:

– Para nós, ela é inalcançável, pois somos extremamente limitados.

– É como o caso da religião, você acredita ou não!

Kiorina franziu a testa e demandou:

– Então você não acredita nos deuses?

– Perdão, mas não disse isso, apenas que existem pessoas que acreditam e outras que não. Nunca quis ofendê-la.

– Não... não foi nada... – disse ela, um pouco sem graça.

Noran examinou cuidadosamente o rapaz e disse:

– Sabe, Ian, você me lembra muito um viajante que conheci recentemente, um homem extraordinário chamado Vekkardi.

O rapaz engasgou com a comida e cuspiu no prato. Depois disso ficou vermelho e começou a tossir sem parar. O velho Tibur despejou água em um copo e imediatamente ofereceu a ele, que bebeu rapidamente.

– Desculpem-me... – disse o rapaz. Arrastando a cadeira para trás, ficou de pé e completou: – Lembrei-me de uma coisa que tenho para fazer.

– Ian é seu primeiro nome ou é seu sobrenome? – quis saber Noran.

– Como?

– Você ouviu, rapaz, ou poderia chamá-lo Rikkardi?

– Riki, o quê? Do que o senhor está falando?

Noran desamarrou a faixa que costumava usar amarrada sobre a testa e revelou seus sinais, dizendo:

– Não tente me enganar. É óbvio que você não se chama Ian; é como se eu pudesse ler Rikkardi escrito em sua testa.

– Uau! Você é um iniciado de Tisamir! Você, quero dizer, o senhor é capaz de exercer influência nos padrões através da manipulação do Jii...

– Hmm, onde aprendeu sobre essas coisas, jovem Rikkardi?

– Rikkardi? – indagou Tibur. – Seu nome não é Ian, rapaz? E que conversa é essa de Jii?

– Desculpe-me, senhor Tibur, tive de mentir sobre meu nome, porque não queria ser encontrado pelo meu irmão, que deve estar me procurando.

– Seu irmão é Vekkardi, de quem o senhor Noran falou há pouco, não é?

– É... – disse Rikkardi, envergonhado. – Perdoem minha mentira, sinto-me muito mal por ter mentido...

– Tudo bem. – disse Kiorina. – Ninguém vai morrer por causa disso...

– Tudo bem, Rikkardi. – concordou Noran. – Acredito que há um bom motivo para estar fugindo de seu irmão...

– Sim... mas como conheceu meu irmão?

– Ele salvou minha vida e pediu que, se encontrássemos você, disséssemos que ele está à sua procura. – disse Noran.

Rikkardi concordou com o cabeça.

– Eu imaginava que ele estava por perto... Meu irmão sempre tem um bom julgamento, se ele o salvou e pediu seu auxílio... – pensou por uns instantes e disse: – Eu vou lhes contar por que estou aqui e as coisas que descobri. Acredito que vocês vão poder me ajudar.

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