Capítulo 37
CAPÍTULO 37
Estava muito frio. Era um inverno de tons brancos e avermelhados. As notícias trazidas pelos batedores e mensageiros espalhados pelo Condado de MontGrey eram preocupantes para todos, especialmente para Kyle. Durante toda aquela gélida noite, ele tentou dormir, mas simplesmente não conseguiu; ficou encolhido dentro de sua barraca, tremendo. Escutava o irritante barulho que o vento produzia na lona. Com os olhos abertos, não podia ver nada mais que sombras e impressões; quando os fechava, visualizava cenas vermelhas, puro sangue, puro horror. Seu corpo doía, sua cabeça doía. Sabia que o melhor a fazer era pegar no sono, esperar o novo dia, descansar um pouco ao menos.
Nos poucos instantes de sono nessa terrível noite, sonhou com a batalha de Grey. Centenas de bestiais. Sangue por toda a parte. Um cheiro horrível de carne podre, fezes, sangue. A lembrança lhe trazia náuseas. Na ocasião, por algum motivo, talvez o calor da batalha, havia suportado; não vomitara, como vários de seus homens, durante ou após o confronto com os bestiais.
Não acreditava que pudesse haver algo pior que aquilo, mas havia... As notícias de que Xilos fora atacada, o que provocou muitas mortes, deixaram Kyle abaladíssimo. Como se não bastasse, foi informado de que novas hordas de bestiais haviam sido avistadas e se aproximavam. Kiorina estava em Xilos e, segundo o relato, a horda que estava se direcionando para Grey mudou de rota e chegaria em breve a Xilos. Não havia como evitar, essa cidade também seria tomada. Perderia seus amigos, talvez seu reino fosse tomado, seu lar, Gorum, Kiorina e Archibald. Cedia à fraqueza, sentia-se só e, quando ficava só, era um outro homem. Temia.
A luz. Finalmente havia amanhecido. Iria encarar seus homens. Na frente deles, tudo aquilo mudava. Não estava mais só. Não podia transmitir suas fraquezas a eles, precisava ser forte e, surpreendentemente, o era.
As instruções eram claras: deveriam aguardar os reforços. "Aguardar? Isso não está certo!" – pensou Kyle, enquanto saía de sua barraca, no acampamento ao redor de Amin. Agachou-se para equipar-se com as peças de sua armadura. Estavam sujas de sangue seco em camadas. Kyle não se preocupava em limpar-se havia algum tempo. Poucos estavam de pé, a maioria procurava descansar em suas barracas. Não havia nada a fazer, senão aguardar os reforços que viriam de WhiteLeaf.
O sol não podia ser visto. Kyle contemplava o céu coberto de várias tonalidades de cinza; onde o sol estaria, visualizava uma mancha de um cinza claro e brilhante, quase branco. Em terra, tudo estava branco, recoberto com finas camadas de neve e gelo. Dirigiu-se para a cidade, alcançando os estábulos em pouco tempo. O momento de maior tensão daquele dia havia passado, afinal, já era manhã e, durante o dia, as chances de um ataque dos bestiais eram pequenas.
Foi até a baia em que estava seu novo cavalo, dado pessoalmente pelo Duque. Lembrou-se dele e imaginou se a guerra de vinte anos atrás teria sido assim tão terrível. "Teria o Duque realmente lutado nessa guerra?" – imaginava, observando a inquietude do animal.
– Vamos. – disse ao cavalo. – Nós dois vamos dar um longo passeio. – retirou o animal e preparou-o para montar. Enquanto colocava os apetrechos sobre o cavalo, o animal comia.
Saiu dos estábulos e foi à procura do cavaleiro Kandel. Avistou-o próximo à porteira de um cercado, usado para prender o gado, nos tempos em que havia gado. Estava com seus cabelos dourados soltos, movimentando-se em ondas, movidos pelo vento. Parecia observar algo ao longe, mas não havia nada, a não ser neve por todos os lados. Percebeu que alguém montado se aproximava, porém não se virou para ver quem era.
– Kandel? – chamou Kyle, procurando uma confirmação.
– Sim. – respondeu ele, ao reconhecer a voz de Kyle.
– Vou direto ao assunto. – Kyle, ainda montado, respirou duas vezes e continuou: – Preciso deixar meus homens por uns dias.
Kandel, que parecia não tomar conhecimento da presença de Kyle, virou-se para encará-lo. Suas grossas sobrancelhas estavam fortemente arqueadas e sua testa, franzida.
– Como?
– É como disse, precisarei ausentar-me. Tenho assuntos pessoais para resolver. – olhava de cima para baixo, confiante.
– O que você acha que está havendo? Acredita que viemos passear? Tem idéia do que está acontecendo? – demandou Kandel, em tom autoritário.
– Sim, senhor! Uma guerra. É isso o que está acontecendo! – disse Kyle, sem se deixar intimidar.
– E então? Você tem responsabilidade com o Duque, com seus homens e com nosso destacamento! O que acha que vai acontecer com seus homens se você se ausentar? – o tom irônico mostrava a crescente irritação de Kandel.
– Incorporarão temporariamente outros pelotões... – disse Kyle, calmamente, fitando bem seu interlocutor. O olhar dos dois homens era pesado e profundo; havia neles cansaço, guerra, morte.
Ficaram se encarando por alguns momentos.
– Acredito que você não vai mudar de idéia, a não ser pela força... – considerou Kandel, procurando se acalmar.
Kyle apenas continuou parado.
– Muito bem, o que está havendo? Aonde você vai e quantos dias pretende demorar?
– Vou a Xilos e pretendo voltar antes que os reforços de Whiteleaf cheguem.
– Xilos? Não foi para lá que seus amigos foram?
Kyle confirmou com a cabeça.
– Muito bem, vá. Direi aos outros que você foi para Xilos em missão de reconhecimento avançado.
– Obrigado, senhor! – disse Kyle, com firmeza, e tocou seu cavalo.
Antes que ele se distanciasse demais, Kandel chamou-o.
– Blackwing!
Kyle fez com que o cavalo parasse e se virou.
– Não espere mais favores meus.
Kyle acenou, esboçou um pequeno sorriso, virou-se e seguiu em frente.
Aproveitaria o dia para avançar o mais possível; à noite, procuraria um esconderijo e rezaria para que os bestiais não o encontrassem. Antes de anoitecer, o que acontecia bem cedo nessa época, fez um pequeno fogo para derreter neve e dar de beber a seu cavalo. Imaginava se o animal suportaria a viagem. Procurou uma árvore grossa para montar abrigo para ele e seu cavalo passarem a longa noite. Havia trazido muita lona grossa e escura. Precisou manter o fogo aceso para terminar o serviço, após o que, abriu um buraco no chão para fazer um novo fogo dentro do abrigo. Havia trazido lenha seca da cidade, cuidando para que fosse emitida pouca fumaça. Por fim, exausto, dormiu.
Com a chegada da luz, sabia que havia sobrevivido. Seu cavalo parecia bem, era um animal muito forte. Logo desfez o abrigo e montou para continuar sua viagem.
A manhã foi tranqüila, nevou um pouco. No início da tarde, resolveu seguir um trecho a pé, a fim de poupar seu cavalo. Andou quase a tarde toda. Custou a perceber o cansaço, que aumentava cada vez mais. Apenas quando não conseguiu forças para montar, compreendeu o quanto estava cansado. Exausto, caiu no chão. O cavalo parou e empurrou repetidamente o corpo de Kyle com sua cabeça, fuçou seu rosto e relinchou.
Kyle estava desistindo, sua mente ia-se perdendo. Seu corpo não mais respondia, nem mesmo era capaz de senti-lo. Não haveria ninguém para salvá-lo. Escutou uma voz de criança.
– Kyle! Kyle!
Olhou para trás e não viu nada. Era uma tarde de verão e estava em um pomar, cheio de árvores frutíferas. Os galhos balançavam com a brisa leve, e o sol iluminava as folhas, que tinham um verde intenso. Frutas de diversas cores reluziam, vermelhas, roxas, amarelas.
Só então viu quem o chamava. Era Archibald. Mas ele não era o monge Naomir. Era Archie, um garoto que corria desviando-se habilidosamente dos galhos que estavam em toda a parte. Seus cabelos eram castanhos e longos, e seus olhos pareciam mais redondos e brilhantes. Estava eufórico.
– Kyle, vamos! Um dos guardas me viu, temos que fugir! – disse, enquanto corria, aproximando-se do amigo.
– Onde ele está? – perguntou Kyle, assustado.
Antes que o pequeno Archibald pudesse responder, ouviram uma voz ameaçadora:
– Garoto! Volte aqui, senão...
Kyle arregalou os olhos ao ver o soldado que corria atrás de Archibald. Rapidamente, já estava correndo também. Carregava em um dos braços um cesto de frutas roubadas do pomar do Duque. Archibald logo passou por Kyle e disse:
– Anda, Kyle, depressa!
Naqueles tempos, Archibald superava em muito Kyle: corria mais depressa, era maior e mais forte. Kyle era pequeno e franzino. Usava o cabelo curto, rente à cabeça, e sempre vestia camisa e calças cinzas.
Conseguiram fugir, sempre conseguiam. Depois, comiam as frutas... Às vezes, davam algumas para Gorum ou para Kiorina.
Aquelas seriam as últimas lembranças de Kyle. Lembraria de dias felizes e sem preocupação de sua infância.
Tudo ficou escuro. Escuro e frio.
Uma linda luz encheu todos os lugares do mundo. Uma luz dourada, sem comparação e sem fim. Nada podia ser visto, além de um intenso brilho. Kyle sentiu uma presença quente e reconfortante.
– Quem está aí? – perguntou, levantando-se. Girou, como se fosse cair. Mas não caiu. Não havia para onde cair. Estava desorientado. – Quem está aí? Onde estou?
Uma linda voz preencheu seus ouvidos.
– Calma, eu vim buscá-lo. Já é hora...
– Hora? De quê? Onde estou? Quem é você?
– Fique calmo, tudo vai dar certo. – disse a voz, que passava uma tranqüilidade infinita.
Kyle não sentia seu corpo. Sentia apenas que flutuava; era uma deliciosa sensação de liberdade. Não pensava em nenhum problema, eles simplesmente não existiam.
Toda essa tranqüilidade e paz foi de repente rompida por um terrível urro, que ecoou infinitamente e espalhou em Kyle uma sensação de horror incomparável. Nunca havia sentido tanto horror, tanto medo. A voz que falava com Kyle disse:
– Quem é você?
Silêncio.
– Não lhe desejo mal, apenas vá! – disse a doce voz.
Gargalhadas terríveis soaram.
– O quê? – disse a voz. – Não, não, você não deve fazer isso. Aaahhh!
A luz dourada se foi. Kyle sentiu um choque terrível, um peso tremendamente doloroso sobre suas costas, uma dor lancinante em sua espinha. Parecia que seus olhos saltariam. Despertou, sentindo um forte espasmo. Sem saber por que, gritou, com todas as suas forças:
– Lilaaahhh!
Ainda não era noite. Rolou agonizando e viu a silhueta de seu cavalo contra um céu avermelhado. Suas mãos estavam congelando, mal podia senti-las. O cavalo dava pinotes e relinchava. Kyle olhou a seu redor e seus olhos se cruzaram com o olhar frio de um lobo de pelagem escura, quase negra, que estava a meia distância. Se encararam por alguns instantes. O lobo deu as costas e se foi. Kyle não teve certeza se aquela imagem fora real. Não havia muito tempo para pensar naquilo.
Reuniu suas forças para ficar de joelhos. Cavou a neve à sua frente até encontrar terra. Pegou alguns gravetos, molhou-os com óleo e ateou fogo. Enquanto o fogo queimava, cavava mais a seu redor. Montou um abrigo bastante precário, se comparado ao que havia construído na noite anterior. Novamente entregou-se ao destino e adormeceu. Antes de dormir, imaginou se aquele lobo voltaria durante a noite ou se iria sonhar com aquela estranha luz dourada novamente.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top