Capítulo 34

CAPÍTULO 34

Dos cerca de trezentos cavalos que penetraram as muralhas internas de Grey, alguns foram alojados nos estábulos locais; outros esperavam a construção de um estábulo improvisado junto à muralha interna da área palaciana. As tropas recém-chegadas encontraram um cenário bastante diferente do que esperavam. Havia um trânsito relativamente livre entre a parte palaciana e o resto da cidade, mas toda entrada e saída na área central precisava ser justificada. Em geral, os dois portões maiores ficavam fechados, mas um terceiro era regularmente aberto.

Sempre havia muita gente em patrulhas ao longo da muralha externa inspecionando a movimentação dos bestiais. Temia-se que estivessem cavando um túnel para entrar na muralha e já havia uma paranóia tal que todos os turnos de patrulha estavam dobrados o tempo inteiro.

Outra expectativa que caiu foi a de encontrar tensões internas, racionamento ou falta de comida. Na verdade, a comida não estava sendo racionada, mas sua distribuição era organizada. A cidade contava com um imenso estoque de alimentos que seria suficiente para o inverno e a primavera. Com a chegada da cavalaria, a estimativa de duração da comida caiu um pouco.

A inspeção dos armazéns, na área palaciana, foi a única coisa que tirou a idéia da cabeça do General Graff de que deviam todos deixar Grey de imediato. Mesmo assim, sua insistência acabou por convencer todos de que seria prudente levar embora pelo menos as mulheres e as crianças. Resolveram a questão antes que pudessem mostrar-lhe os armazéns e acalmá-lo. Ao constatar que teriam suprimentos suficientes para fazer frente ao cerco, Graff soube que havia feito a coisa certa ao convencer os cidadãos de Grey a enviarem suas mulheres e crianças para uma região mais segura. No entanto, havia ainda uma questão: por que os mensageiros e batedores tinham fornecido informações tão erradas?

Gorum não estava para brincadeiras naquele momento. Tinha contas a acertar e estava preocupado com Kyle, o que, ele sabia, não iria resolver nada. Acreditava que Kyle se sairia bem pelo que pôde ver na ocasião em que as tropas deixaram a cidade.

– E então, cavaleiro Roy? O que acha que houve de errado? – demandou o gigante, puxando os fios de sua barba numa tentativa de disfarçar o incômodo que aquele cavaleiro produzia nele. Sendo Roy o responsável pela coordenação e recrutamento dos mensageiros, acreditava que lhe devia explicações.

O cavaleiro Roy percebeu uma leve hostilidade nas palavras de Gorum e hesitou um pouco em responder. Gorum fitava-o incessantemente. Por fim, ele declarou:

– Obviamente tivemos algum problema com nossos mensageiros...

– Você tem noção, cavaleiro Roy, da responsabilidade sua e de seu pessoal em uma ação como a que tivemos? – inquiriu Gorum, tentando moderar a hostilidade que desejava despejar sobre o companheiro de armas.

– Sim, tenho perfeito juízo de minhas responsabilidades. Já estou, pessoalmente, fazendo uma investigação junto aos mensageiros para descobrir o que houve. – garantiu firmemente e continuou: – Entendo sua preocupação, cavaleiro Gorum, e aprecio sua aplicação em, dada minha posição, vir tomar satisfações quanto ao ocorrido. No entanto, como previ, as ações estratégicas que tomamos teriam nos levado a uma vitória certa. Veja bem, não fosse essa inconsistência de informações e a insistência do conde em permanecermos, teríamos cumprido nossos objetivos gloriosamente! – disse Roy, num irritante tom de superioridade, puxando repetidamente uma das pontas de seu longo bigode.

– Eu diria que foi sorte! – desafiou Gorum.

– Sorte? Como sorte?

– Foi sorte que os bestiais não tenham resolvido enviar, por algum motivo misterioso, toda a sua força contra nossos homens. Foi muita sorte mesmo!

– Eu não concordo... E sabe o que mais? Você lutou na guerra vinte anos atrás, enfrentou os bestiais e valoriza isso muito mais do que deveria. Hoje você se considera um especialista em bestiais e em guerras.

Gorum apertou os olhos e imaginou suas mãos em torno do pescoço daquele cavaleiro; queria enforcá-lo ali mesmo. Roy continuou:

– É por isso, cavaleiro Gorum, por achar que já sabe tudo sobre o assunto e por tanto odiar os bestiais que você não põe sua cabeça para funcionar.

– Pois eu digo que você é um falador que ainda usa fraldas e nada sabe sobre as guerras de verdade nem tampouco sobre os bestiais!

A essa altura, já havia soldados, cavaleiros e curiosos acompanhando a discussão. Alguns homens riam, pois, mesmo sério, Gorum passava em suas palavras e atitudes certa graça verdadeira, que se juntava à sua raiva, produzindo um deboche da pior espécie.

O jovem cavaleiro Roy, que possuía um tremendo controle, não saindo de sua atitude superior, recusou-se a continuar com aquilo e terminou o assunto com um desafio:

– Vamos deixar que a guerra prossiga e então veremos quem está certo...

– É, vamos ver... Se você realmente tiver coragem de enfrentar os bestiais, talvez eu deixe de pensar que na minha frente há algo mais que um falastrão que ainda usa fraldas.

Após a discussão, acabaram por tomar cada um seu caminho.

**********

O general Graff subia a escadaria em espiral rumo a uma das torres do castelo do Conde de MontGrey, que o aguardava. Eram muitos lances e o general já não era tão jovem a ponto de suportar uma subida dessas, sem que se cansasse bastante. Pequenas janelas ao longo de todo o caminho proporcionavam uma iluminação fraca, porém suficiente. Não fosse o racionamento de madeira e óleo, haveria tochas acesas ao longo da escadaria. Ventava muito, principalmente na porção mais alta da torre. Em algumas das janelas, o vento entrava, trazendo flocos de neve e assobiando, som cujo eco percorria os corredores, dando a impressão de haver um coral de gritos agudos por todo o caminho, o que se intensificava à medida que o general subia.

No topo, dois sentinelas que guardavam a porta de onde estava o Conde, ao reconhecerem o general, abriram a porta e levantaram suas lanças, dando-lhe passagem.

Era um pequeno aposento, luxuosamente mobiliado e decorado. Havia uma cama, uma escrivaninha e quadros na parede. As janelas, uma interna, de vidro e madeira, outra externa, somente de madeira, encontravam-se fechadas, e cortinas escuras barravam o pouco de luz que ainda poderia adentrar aquele espaço. O conde estava de pé no centro da sala, que era iluminada por algumas velas e pelas brasas da lareira. O frio, lá, era apenas um pouco menos intenso que o da escadaria; era suportável.

O conde era um homem mais baixo e mais jovem que o general. Seu rosto era arredondado; usava bigode e cavanhaque. Seus cabelos eram curtos, negros e levemente encrespados. Vestia um conjunto vinho aveludado, uma roupa de casa. Na parede, estavam penduradas as placas de metal que compunham sua armadura e todos os seus acessórios. Ele se aproximou cuidadosamente do general e estendeu-lhe a mão. Cumprimentaram-se.

– Vejo que o senhor está mais calmo. – arriscou o general.

– Sim. Queira me desculpar pela maneira como falamos hoje de manhã. É que estou sob uma tremenda pressão.

– Não havia necessidade de desculpas, mas eu as aceito. – disse o general, que parecia agora mais calmo.

– General Graff, fico imaginando se posso confiar no senhor, pois, caso contrário, estarei perdido.

– Do que o senhor está falando?

– Escute aqui... – disse, sussurrando, e conduziu o general até a porta do outro lado do aposento.

– Não estou entendendo, senhor.

O conde pegou um grande casaco de grossas peles e vestiu-o. Abriu a porta, que tinha duas camadas. Ao abrir a segunda, o ar gelado penetrou a sala. Ele saiu e chamou o general para uma pequena sacada. A capa do general se debatia violentamente contra o forte vento que corria do lado de fora. O conde fechou a porta. A vista era magnífica. Podiam ver os campos e a cidade, que, coberta pela neve, em contraste com o mar que apresentava uma tonalidade cinza azulada, se perdia no horizonte.

– Acredito que eles possam ter um meio de nos escutar... disse o conde, um pouco mais alto.

– Eles quem? Do que o senhor está falando?

– Escute bem, general, existe alguma coisa acontecendo por trás dessa guerra, é um jogo político, eu sei...

– Não é sempre um jogo político? – disse o general, tentando trazer o conde, que agia de forma bastante estranha, à razão.

– Não, não estou falando sobre isso, general... É algo que percebi tempos atrás, antes do inverno passado. Acredito que essa guerra está sendo provocada por pessoas do reino de Lacoresh, que estão querendo tomar o poder. Pessoas...

– Continue!

– ... macabras!

– Pessoas macabras?

– Sim, pessoas que pertencem a uma espécie de seita, eu sei. Sabe-se de muita coisa quando se é um conde...

– Seita?

– Sim! Pessoas que se vestem de negro e praticam rituais de bruxaria, magia negra, fazem sacrifícios... – subitamente ficou pálido, com uma expressão de horror na face. – ... sacrifícios humanos!

Bastante surpreso, o general perguntou:

– Você tem certeza? Tem alguma prova?

O conde perdeu a compostura e agarrou os ombros do general.

– Tenho certeza! Ao serem informados de que eu sabia alguma coisa, um de seus membros me visitou, certa noite, quando passeava pelos bosques, e me propôs que eu fosse um de seus colaboradores. Fiquei assustado, tive medo de que me ferissem se eu recusasse. Eu não sabia quem eram nem de onde vinham, só sabia que existiam e que operavam o mal em minhas terras, principalmente na porção norte. Acabei concordando, de início...

– E então? – disse o general, bastante interessado.

– Então eles não se comunicaram por um bom tempo, o suficiente para me fazer duvidar da estória toda. Cheguei a pensar que aquilo havia sido um pesadelo. Recentemente, no entanto, me procuraram de novo. Pediram para que eu assinasse um documento, referente à carga de um navio, que dispensava a fiscalização em qualquer porto do reino, como se se tratasse de carga pessoal minha. Assinei, mas fiquei muito curioso. Eles sempre me diziam para não interferir e que, quando eles crescessem, eu teria uma posição privilegiada no grupo. Pedi a um dos meus melhores homens que investigasse a carga. Através de um Falchin, ele me enviou uma mensagem que parecia ter sido escrita às pressas, dizendo que o navio estava repleto de corpos de gente morta embalados em sacos. Ele foi pego e morto. Depois, um deles veio me procurar, dizendo que não haviam gostado da intromissão e que, caso isso acontecesse novamente, eu me arrependeria... Não quis mais colaborar. Contratei mais guardas e um mago de renome da Alta Escola para ser meu conselheiro. Achei que com isso não me incomodariam e, para não piorar minha situação, resolvi ficar em silêncio. Eles disseram que eram compreensivos e que eu tinha o direito de não colaborar, mas que, se eu falasse sobre eles para alguém, fariam mal à minha filha. Até agora, tenho guardado segredo.

O general desviou o olhar do conde e virou-se para a sacada. Pôs as mãos sobre a pedra, sentindo o frio através das luvas. Olhava para baixo e, próximo à muralha, via pequenos pontos escuros que se moviam; eram seus homens. Pensava nas implicações do que acabara de ouvir e sua expressão demonstrava tremenda preocupação. Lembrou-se de algumas conversas que tivera com os cavaleiros sobre detalhes estranhos do comportamento dos bestiais. Alguns de seus homens acreditavam em um envolvimento de outros reinos ou mesmo dos silfos do mar nessa guerra. Agora sentia o vento forte e frio que rasgava seu rosto e pensava sobre o assunto. Sentia naquele ar gelado cheiro de traição e conspiração. Alguma coisa precisava ser feita, mas o quê?

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