Capítulo 33

CAPÍTULO 33

Kyle conduzia seus homens pelas ruas de Grey. A cavalaria pesada havia alcançado o portão leste da segunda muralha, que ainda não fora aberto. Gorum parecia argumentar com os guardas da torre, sem sucesso. Para Kyle, ainda havia um grande percurso até chegar ao portão. A cavalaria fizera aquele caminho muito rapidamente, deixando a infantaria para trás. Adiante, havia um cruzamento de duas ruas largas, que o pelotão à frente de Kyle parecia hesitante em atravessar e ele logo descobriu o porquê: vinha das duas vias perpendiculares ao caminho que seguia algo que só podia ser descrito como um bolo de bestiais. Kyle observou, sem nada poder fazer, o pelotão que marchava à frente ser atacado por eles.

Kyle parou de avançar, indicando a seus homens fizessem o mesmo e instruindo-os a se posicionarem defensivamente e esperar os outros pelotões chegarem para dar apoio.

Logo os primeiros bestiais começaram enfrentar o Vinte e Seis. Depois de derrotar dois bestiais, Kyle notou que eles não estavam tão bem treinados nem armados como os que havia enfrentado em Shind. Logo ganhou mais confiança e, em vez de recuar, deu alguns passos à frente. Incentivava seus homens a fazerem o mesmo após derrotar cada bestial. Notou que podia derrotá-los com certa facilidade, a qual, no momento, não estava sendo partilhada por seus homens, que tiveram um treinamento muito menos severo e mais curto. Mesmo assim, acreditava que eles se sairiam bem.

O barulho era terrível, batida constante de metais, gritos, urros. Kyle sentia um calor intenso e parecia cozinhar dentro da armadura. As dores musculares do cansaço o castigavam, mas era necessário continuar, pois o número de bestiais que chegavam era incalculável. Viu atravessarem o céu, acima de sua cabeça, dezenas de flechas que caíam, vindas de onde pareciam brotar bestiais. Lembrou-se de que os homens do pelotão Nove poderiam estar ali ainda lutando, mas não podia fazer nada no momento, senão continuar a atravessar sua espada nas infelizes criaturas que cruzavam seu caminho.

Percebeu que cinco de seus homens haviam-se colocado junto a ele, formando um círculo em que cada um defendia as costas do outro. Havia perdido a conta de quantos bestiais derrubara. Eles eram completamente despreparados para um combate; bastava esperar que dessem o primeiro golpe afobado, defender-se com o escudo e atingi-los em algum ponto vital com a espada. O problema era que estava ficando cansado. O último bestial que enfrentara havia conseguido atingi-lo com um golpe pesado, do qual foi salvo pela armadura herdada de seu pai, que o defletiu.

Algo o animou: parecia que estavam alcançando alguns homens do pelotão Nove. Havia dois grupos dando combate aos bestiais, que vinham de todos os lados, além dos pelotões de infantaria média e pesada. Enquanto isso, o general Graff e os outros cavaleiros entravam na cidade pelo portão leste, acompanhados da cavalaria ligeira.

Um dos cavaleiros que cavalgava a seu lado chamou-o e disse:

– Os bestiais podem fechar o portão leste... O senhor está certo disso?

– Os bestiais irão fechar o portão! – respondeu o General, fechando a questão. Ele e a cavalaria avançavam pela avenida que levava ao portão leste da segunda muralha. Ao avistar a massa de bestiais desordenados combatendo suas tropas, comentou, em voz alta, com um cavaleiro com quem lutara na guerra de vinte anos atrás:

– Olhe só, estão usando nossas tropas para dar treinamento a seus novilhos.

– E também para cansar nossos homens...

Em pouco tempo, já estavam atravessando o aglomerado. Na porção anterior, uns poucos bestiais, que tinham conseguido passar pela infantaria, foram imediatamente alvejados por arqueiros posicionados em cima das casas, sem nem mesmo perceber de onde vieram os disparos. Ao ver o general e os outros atravessando as ruas, as tropas ganhavam nova energia e lutavam com maior ferocidade. A cavalaria ligeira havia passado pelo aglomerado; a vitória decerto estava garantida naquele segundo confronto.

O general chegou até o portão e ordenou a seus homens que o abrissem. Os guardas relutaram. Ele, afirmando sua posição, disse que assumiria a responsabilidade junto ao Conde, convencendo-os a abri-lo. Afinal, aquilo era uma operação militar e era ele o especialista, não o Conde. Assim que os portões foram abertos, toda a cavalaria entrou. Logo depois, os portões foram novamente fechados.

A infantaria nas ruas havia derrotado os bestiais, cuja quase totalidade foi morta, tendo fugido cidade afora uma pequena parte. Os pelotões organizavam-se em formação defensiva ao longo da via leste-oeste. Tiveram poucas baixas, sendo justamente o Nove o pelotão mais atingido. Nele, aproximadamente metade dos homens feneceu, inclusive o líder; dos remanescentes, poucos ficaram sem ferimentos. Os arqueiros ainda disparavam flechas nos poucos bestiais que estavam nos arredores. Havia tantos corpos deles na via, que era difícil andar sem pisá-los. Após o calor da batalha, sujos de sangue e cansados, os homens, para descansar, procuravam lugares dentro das casas, no topo das quais dezenas de arqueiros se distribuíam. Estabeleceram comunicação com os guardas que estavam nas pequenas torres ao lado do portão leste da segunda muralha e que ajudavam a vigiar alguma possível movimentação de bestiais.

Haveria algum tempo de calmaria até que o general e os outros se organizassem e trouxessem o pessoal de dentro das muralhas. Foi organizada uma expedição para levar os feridos mais graves para fora da cidade e trazer suprimentos, para o que contaram com a ajuda do pessoal de apoio, escudeiros, carregadores e algumas mulheres, dentre as quais as que insistiram em acompanhar seus homens na guerra e as meretrizes.

Tiveram um fator natural a seu favor: perto do meio-dia, o tempo se abriu. As nuvens cederam um pouco, dando lugar ao sol, cuja luz era suficiente para incomodar bastante os olhos dos bestiais. Já estavam no início da tarde e a proximidade da noite era muito preocupante. Haviam descansado e discutido os motivos da demora em sair da muralha, tendo levantado a hipótese de que dali ninguém mais sairia, o que não fazia muito sentido. Imaginavam que, mesmo que estivessem organizando o pessoal para uma retirada, não poderia demorar tanto. Com a chegada da noite, seriam perseguidos e forçados a lutar.

Finalmente, os portões se abriram, mas apenas havia mulheres e crianças. Foi dada a orientação de escoltá-las até Amin e retornar imediatamente. Logo formou-se um bolsão, e as tropas conduziram todas aquelas pessoas através do local de batalha. Saíram sem maiores problemas. Os bestiais não tentaram fechar o portão leste da muralha mais externa, como o general Graff havia previsto, e não se sabia porquê. De qualquer forma, aqueles homens estavam saindo da cidade sitiada com vida, resgatando centenas de mulheres e crianças. Assim que se afastaram o suficiente, sentiram a pura glória. O agradecimento que recebiam compensava toda dor e sofrimento por que passaram naquelas últimas semanas. Dois dias depois, chegaram até Amin e foram recebidos como heróis. Sabiam, porém, o alto preço que tiveram de pagar por isso...

**********

Após um merecido dia de descanso, os dezesseis cavaleiros que haviam voltado da campanha em Grey reuniram-se para discutir o que fariam. Com praticamente todo o pessoal de comando lá, o cavaleiro Kandel, um dos favoritos do Duque de Kamanesh, parecia ter tomado a frente do grupo. Cabelos longos e louros, não tinha barba e usava, atravessada na testa, uma tiara de prata com uma esmeralda no centro. Sua expressão era bastante séria; ele raramente sorria. Não era muito maduro, não tinha vivido mais que trinta anos. Ainda assim, possuía grande experiência.

Havia passado o dia conversando com mensageiros e viajantes. Procurava reunir informações sobre o andamento da guerra. No início da reunião realizada na fortaleza em construção, deu as boas-novas e passou as informações que recolhera. Era esperada para os próximos dias a chegada dos destacamentos vindos do Baronato de Whiteleaf. Estava confirmado que seriam dois e que um deles seria comandado pelo próprio Barão de Whiteleaf, o qual teria como destino a cidade de Xilos. O outro, comandado pelo jovem filho do barão, Sir Aaron, viria para Amin. Outra boa notícia era a preparação, nos estaleiros da capital, Lacoresh, de uma frota de navios, mas esse reforço somente ficaria pronto na metade da primavera e talvez nem viesse a ser usado.

As notícias trazidas pelos batedores que conseguiram voltar da região próxima a Grey eram realmente preocupantes: lá, o número de bestiais era superior a cinco mil e uma nova horda avistada dobraria essa quantidade.

Depois de expor as informações, Kandel perguntou aos cavaleiros se teriam alguma idéia de como resolver a situação. Nada de significativo foi colocado, apenas os empecilhos que teriam para furar o cerco novamente. Estavam ali os jovens comandantes de um significativo corpo de tropa, animados por uma vitória recente, mas impedidos de fazer alguma coisa.

Foi sugerido que atraíssem os bestiais para um campo aberto, onde teriam chances de vencê-los com uma melhor estratégia de combate. Atacá-los em um posição defensiva não funcionaria.

– Como? – exclamou o cavaleiro Kandel, batendo o punho cerrado contra a mesa, pois toda aquela conversa educada estava lhe dando nos nervos. – Como atraí-los?

– Na verdade, não temos como. – respondeu Kyle, levantando-se. – Não podemos, porque não sabemos nada sobre os bestiais! A única coisa que aprendemos foi a odiá-los e dizer que são selvagens e estúpidos!

Houve um murmúrio de desaprovação no local. Todos ficaram espantados com a atitude e as palavras de Kyle, que, de pé, enfrentava aqueles cavaleiros como sendo um deles, talvez pela primeira vez. Naquela manhã, ao acordar, ele se lembrou da conversa que tivera com Archibald sobre o destino e sobre uma série de dificuldades que vencera para estar ali, vivo, naquele momento. Tomou consciência de sua realidade: estava no meio de uma guerra! Ao pensar nisso, percebeu que não havia mais comandantes para lhe dizer o que fazer. O que faria, então? A questão do destino voltou à sua cabeça, tomando-a toda. Era hora de enfrentar seu destino, ser um grande cavaleiro, como seu pai fora, e fazer alguma diferença. Percebeu que isso era o que todos esperavam dele. Nada, no entanto, aconteceria como num passe de mágica, pois seu destino dependia de suas ações, mais que das ações dos outros.

– O que vocês sabem sobre os bestiais? – desafiou Kyle.

Todos se calaram. Parecia que tinham uma visão única: eram selvagens que mereciam seu ódio por ameaçarem a paz do reino, suas famílias, seus campos e lares. Um dos cavaleiros quebrou o silêncio:

– Blackwing está certo. Como podemos vencê-los, se não sabemos o que esperar deles?

– Sabemos que vêm dos pântanos cinzentos de Yersh... – arriscou um outro.

O cavaleiro Kandel, o mais velho e experiente dali, aproximou-se, com interesse, de Kyle, que disse:

– Hoje, ao acordar, fiquei pensando... esses bestiais simplesmente não podem ser tão estúpidos como imaginamos. Todos aqui recebemos o comando pelo menos uma vez. Comandar e coordenar tropas não é fácil, vocês sabem. É preciso inteligência para formar tropas e coordená-las. O que vemos? Dez mil bestiais em nossas terras, fazendo cerco a uma cidade... Se eles são estúpidos e conseguiram realizar isso tudo, então nós somos mais!

O que Kyle acabara de dizer não era nada agradável; alguns cavaleiros naturalmente não gostaram daquelas palavras nem da forma como foram pronunciadas. Kandel disse:

– Blackwing falou bem! Mas ele se engana... Nós não somos mais estúpidos que eles. Como sabem, antes de entrar para a cavalaria, estudei para ser sacerdote da Real Santa Igreja... Lá tive a oportunidade de ler muito. Durante meus estudos, li o que havia sobre a guerra de vinte anos atrás, pois interessava-me pela vida militar mais que pela religiosa. O que acontece agora é muito estranho... muito estranho mesmo. Nós vimos e combatemos bestiais, disso ninguém duvida, mas eles não estão se comportando como bestiais. Blackwing está certo! Já havia discutido isso em uma oportunidade com o general Graff. Para realizar tudo o que fizeram, foi preciso inteligência e coordenação. Isso nos faz perguntar: quem ou o que está coordenando os bestiais?

– Um feiticeiro poderoso! – Kyle arriscou, demonstrando confiança.

Todos olharam para ele, intrigados. Um dos cavaleiros logo disse:

– Como você sabe?

Kyle disse que era apenas um palpite, mas descreveu com detalhes seu encontro com os bestiais na floresta de Shind e a opinião de Archibald e Kiorina, mencionando-os como um monge Naomir e um aluno da Alta Escola dos Magos. Um dos cavaleiros zombou dele, dizendo sarcasticamente:

– Você não está se referindo àquela menininha ruiva, está Blackwing?

– Sim, estou, e quem é você para julgar o discernimento de uma feiticeira sobre magia? O mago conselheiro do Rei? – respondeu Kyle, com um olhar atravessado.

O cavaleiro tirou o sorriso do rosto e calou-se.

– Pode ser... – disse Kandel, em voz baixa.

– O quê? – perguntou um cavaleiro que estava perto deles.

– Poderia ser um plano dos silfos do mar para invadir nosso reino e tomar de volta as terras que um dia foram deles...

A maioria, sem entender o que o cavaleiro Kandel queria dizer, riu, espantada. Kyle e alguns outros seguiram o raciocínio.

– Poderiam estar oferecendo auxílio estratégico aos bestiais ou mesmo ações de bruxaria, magia negra!

Os cavaleiros que riram num primeiro momento pararam, exceto um, o que provocara Kyle momentos atrás. Ele passou dos risos às gargalhadas e se levantou.

– Magia negra? Ha, ha, ha! Só falta agora falar em fadas e elfos... – caminhou para a saída e acrescentou: – Quando vocês forem discutir uma estratégia para esmagar aqueles malditos, podem me chamar... – e saiu da sala, rindo.

– Não acredito... – disse um outro. – Todos sabem que os bestiais e os silfos se odeiam... São como presa e predador... Os silfos nunca se rebaixariam a ponto de negociar com os bestiais...

– Pode ser, mas parece que já chegamos a um consenso aqui. – disse Kandel. – Existe alguém por trás das ações dos bestiais e devemos derrotá-lo. Só precisamos descobrir quem ele é!

Kyle sentiu algo dentro de si, viu que suas ações, suas palavras tinham feito uma diferença. Havia quinze cavaleiros ao redor daquele mesa que mudaram de opinião em parte por causa de suas palavras, de sua decisão de dizer o que pensava, doesse a quem doesse. Não sabia o que fazer, mas enxergava o futuro com outros olhos.

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