Capítulo 32

CAPÍTULO 32

O clima era tenso. As tropas em formação já podiam ser vistas da cidade sitiada. Estando em um terreno ligeiramente acima do vale em que a cidade ficava, podiam ter dela uma visão completa: um aglomerado de construções simples, retangulares, acinzentadas, cobertas pela neve, dentre as quais se destacavam o castelo e a catedral, erguidos, lado a lado, dentro da muralha mais interna da cidade. Visto do alto, o contorno da muralha possuía um formato retangular distorcido, aproximando-se de um trapézio.

Outras construções que se diferenciavam eram os fortes, o farol e o porto, uma enseada natural, transformada num cais depois da construção da dupla e extensa muralha, uma junto à terra, outra paralela, saindo da ponta da enseada e cortando-a até a metade, formando uma espécie de lagoa semi-aberta, onde as embarcações atracavam.

Aparentemente, a chegada das tropas já havia sido notada tanto pelos bestiais, como pelos cidadãos de Grey. Por toda a extensão da cidade, podiam ser vistos pequenos pontos escuros contra o cenário branco em movimento. Os tambores dos bestiais começavam a soar, e viam-se grupos se formar em vários pontos da cidade. Não haveria tempo a perder, se quisessem evitar que os bestiais se organizassem. O general Graff, que integrava as forças de Grey antes da chegada dos reforços de Kamanesh, ordenou o avanço.

Não se havia formado o grupamento de cavalaria, como seria normal no caso de um combate em campos abertos. Se fosse o caso, Kyle não estaria no comando de seu pelotão. Foi formado apenas um pequeno grupo de cavalaria ligeira, de aproximadamente cem cavaleiros. Outros tantos se encontravam distribuídos em posições de comando ou em grupos menores de escolta.

A frente da marcha em direção à cidade era formada por cerca de quinhentos arqueiros, também equipados para atuar como homens de infantaria leve. Carregavam espadas curtas e vestiam armaduras feitas com várias camadas de couro curtido, bem mais leves que as de placas de metal, oferecendo uma proteção razoável. De qualquer forma, parecia que aquele não seria um confronto direto e selvagem de todas forças bestiais contra as forças humanas.

Marcharam até as proximidades da cidade, ainda fora da muralha mais externa, região conquistada pelos bestiais. Foi ordenada uma diminuição na velocidade de avanço, com os arqueiros à frente sem ter disparado uma flecha sequer, por falta de alvos. Logo após a ordem, saindo de dentro e de trás de diversas casas ao longo das ruas da região externa ao muro, dezenas, a princípio, e logo após centenas de bestiais, segurando grandes escudos de madeira, começaram uma corrida frenética em direção aos arqueiros, que pareciam vulneráveis naquela posição. Uma onda de gritos horrendos preencheu o local: era o terror do avanço dos bestiais, contra os quais foram disparadas tantas flechas, que enegreceram o céu. Muitos foram atingidos, mas a grande maioria seguia em seu avanço frenético.

O capitão Domer Falcus, que comandava a cavalaria ligeira, colocou-a em avanço. Rapidamente ela atravessou os grupos de infantaria média e pesada, que também avançavam, visando tomar a frente dos arqueiros.

Com os bestiais quase alcançando os arqueiros, a cavalaria ligeira tomou a frente em uma formação de cinco filas, de vinte cavaleiros cada, empunhando lanças. Passando uma após a outra, as filas atropelavam os bestiais. Os escudos de madeira, que ofereceram boa proteção contra as flechas, eram trespassados pelas fortes lanças dos cavaleiros. Após acertar os bestiais, cada fila de cavaleiros fazia uma curva ordenada, mantendo a formação e dividindo-se, intercaladamente, em um grupo à esquerda e outro à direita. Davam lugar às tropas de infantaria média e pesada, com suas espadas de aço, escudos de aproximadamente um metro, armaduras de cota de malha ou de placas. A infantaria, cujo número de homens era de quatro para cada bestial restante, não teve em dificuldade em liquidá-los rapidamente.

Houve um ligeiro recuo das tropas, as quais se reorganizaram para a próxima investida. Os poucos feridos eram retirados pelos escudeiros e carregadores, que vinham logo atrás. O local onde se travou o massacre de cerca de quatro centenas de bestiais transformou-se em um horrível campo de lama rosada, com bestiais abatidos aqui e ali se retorcendo, gemendo ou soltando gritos de maldição.

Alguns dos comandantes, cavalgando para uma clareira na parte central das tropas, juntaram-se para, rapidamente, discutir as próximas ações. Alguns batedores, aproveitando-se do caos da primeira batalha, tinham a missão de infiltrar-se em pontos estratégicos da cidade, que iam desde as fronteiras da muralha mais externa até, em alguns casos, atingir as muralhas mais internas e estabelecer contato com as forças militares sitiadas. Dali para frente, as lutas seriam mais localizadas e mais perigosas.

Rapidamente enviaram cinco pelotões mistos de infantaria média e arqueiros para tomar posições na parte externa da cidade. Na aproximação, pequenos combates foram travados com alguns poucos bestiais, que não haviam avançado com a grande massa. Logo, os arqueiros davam um jeito de posicionar-se no alto das casas daquela parte, geralmente pequenas e simples.

Os comandantes observavam a tomada da região, cerca de cinco quadras com aproximadamente três dúzias de casas. Sabiam que, atrás da muralha, devia haver muitos bestiais à espera de um ataque; só não sabiam quantos.

De cima da muralha, despontavam, aqui e ali, alguns bestiais que amaldiçoavam os atacantes e jogavam objetos, como lascas de madeira e pedras, algumas das quais muito grandes para serem lançadas tão longe.

Um jovem cavaleiro que estava próximo do pessoal de comando perguntou a seu superior:

– Senhor, estariam os bestiais se utilizando de algum mecanismo para arremessar tão longe aquelas pedras?

– Não sei, meu caro... – respondeu o capitão Domer Falcus entre os dentes. – Apenas sei que não são pedras. São cabeças humanas!

O jovem cavaleiro ficou irado; suas sobrancelhas se cerraram e a cólera tomou conta dele.

– Calma, agora. – disse o capitão, com voz profunda. – Você vai ter sua chance de apaziguar essa ira muito em breve. – o capitão ajeitou sobre a cabeça seu elmo com dezenas de chifres cravejados.

Enquanto isso, na retaguarda, os homens que haviam tomado parte daquele setor viam espantados o que o capitão não precisou ver de perto para identificar. Alguns, tomados de horror, vomitavam; outros começaram a disparar flechas contra a parte superior da muralha, sem encontrar alvos. O cavaleiro que comandava aqueles pelotões gritava:

– Não atirem! Guardem suas setas!

Só depois de comandar algumas vezes, os homens pararam de disparar.

Kyle recebeu a orientação para deixar seu cavalo e preparar-se para uma ação à pé junto com seus homens. Assim como ele, vários cavaleiros de segunda ordem desmontaram, cedendo seus cavalos a homens de infantaria, que estariam compondo um pelotão de cavalaria pesada. Ele recebeu instruções para avançar até o local tomado pelos pelotões dianteiros e aguardar. Notou que Gorum seria o líder desse novo grupo de cavalaria pesada que se agrupava naquele momento, composto por cerca de duzentos cavaleiros. Logo, chegaram às casas e foram dividindo o espaço de cobertura com os outros pelotões que tomavam todo aquele setor.

A pouca distância deles, estava o convidativo portão leste da cidade, passagem aberta, destruída pelos bestiais, que não podia ser fechada sem um bom esforço de engenharia.

Cada pelotão recebeu um nome e um número, para que a comunicação ficasse mais fácil. O de Kyle havia sido nomeado com o seu sobrenome e o número vinte e seis. Naquele momento, ele e seus homens eram apenas números e nomes na cabeça do pessoal do comando, em cujas decisões estavam depositadas suas vidas. Kyle encostou as costas no muro de uma casa, sentindo-se bastante apreensivo. Observava o pessoal da cavalaria pesada formar-se. Logo à frente deles, uma dezena de mensageiros atravessava o campo onde foi travada a primeira batalha. Corriam como loucos, pulando obstáculos, a maior parte dos quais, corpos de bestiais. Reparou que um dos mensageiros vinha em sua direção, e seu coração disparou. Estava prestes a receber as ordens que colocariam sua vida e a de seus homens sobre o desfiladeiro da morte. O mensageiro aproximou-se e disse:

– O pelotão Blackwing deve aguardar a passagem da cavalaria pesada e entrar logo em seguida. Deve atingir a muralha mais interna, próxima ao portão leste, da forma que o senhor acreditar ser a mais adequada.

– Muito bem. – disse Kyle.

O mensageiro logo seguiu seu caminho, dirigindo-se ao líder do próximo pelotão.

Kyle respirou fundo, procurando acalmar-se. Tinha de vencer o medo, o maior de toda a sua vida. Precisava dominá-lo imediatamente, precisava tirar as dúvidas de sua cabeça. Aquilo era uma loucura. Discutir planos, marchar e ficar em alerta não era nada se comparado àquilo. Fechou os olhos. O tempo parecia não passar. Lembrou-se de seu combate na floresta de Shind e do hálito terrível daquele bestial que fizera com que sua mão sangrasse. Apertou o punho, lembrando-se da luta e de como havia derrotado um bestial extremamente belicoso. Pensou em suas lições e nas histórias que Gorum lhe contava sobre a guerra. Deixou-se invadir pela confiança e, como se tivesse sido acertado por um raio, abriu os olhos e pôs-se de pé, encarando seus homens.

– Chegou a hora, bravos! – disse, com a voz tomada por uma confiança tremenda. – Quando eu comandar, vamos atravessar aquele portão e cruzar a cidade até a muralha interna.

Nesse momento, escutou atrás de si a cavalaria pesada avançando. Nem mesmo se virou e, em poucos instantes, o barulho já lhe invadia os ouvidos. Viu passando à sua esquerda dezenas e dezenas de cavalos e cavaleiros em uma marcha corajosa, rumo ao desconhecido.

Assim que o último cavalo passou, desembainhou a espada, apontou-a para o céu e gritou tão forte, que sua garganta doeu:

– Por Aianaron! Vamos, homens! – e se pôs a correr. Viu que, nesse momento, outros quatro pelotões fizeram o mesmo. Um, posicionado mais à frente, já estava prestes a atravessar o enorme portão leste.

Os bestiais pareciam não estar bem preparados para deter aquele grande bando de cavaleiros e suas lanças, que adentraram a cidade praticamente sem oposição. Os que assistiram à primeira batalha certamente pensaram que era uma idéia letal opor-se ao avanço da cavalaria e suas lanças. No encalço dos cavaleiros, os pelotões entraram, um após o outro.

Ao contrário do que se esperava, as tropas de infantaria não encontraram grande oposição ao passar pela muralha. Só mais à frente é que viram dezenas e dezenas de bestiais nos topos das casas, à beira da pista leste-oeste da cidade. Tanto a cavalaria como a infantaria foram alvejadas por toda a sorte de projéteis, incluindo pedras, algumas flechas e parte de móveis, principalmente cadeiras.

A cena era ridícula do ponto de vista dos humanos, mas parecia que os bestiais, com seu espírito mesquinho e sádico, divertiam-se bastante com a situação, praguejando, gritando e gargalhando, enquanto arremessavam de tudo sobre os humanos. Apesar de as tropas serem castigadas pela chuva de lixo, avançavam, com escudos sobre a cabeça, para a cidade sitiada.

A situação se inverteu com a entrada dos pelotões de arqueiros, que alvejavam os bestiais entretidos com aquele jogo. Uma boa quantidade deles sucumbiu; logo, muitos pararam de jogar objetos para procurar cobertura.

Até esse momento, o comando da operação de resgate demonstrava satisfação com o resultado. Enquanto mais da metade do pessoal de comando estava engajado no resgate propriamente dito, alguns deles permaneceram na retaguarda para melhor observar a movimentação e, se possível, organizar uma contra estratégia. Viram que, nas torres do castelo, agitavam-se bandeiras coloridas em reconhecimento ao ataque.

De uma das janelas, saiu, libertada, uma ave de rapina, que voou ao encontro do comando. Era um belo Falchin azulado. O general Graff esticou o braço para que a ave pousasse e pôde notar um broche amarrado a uma das patas do animal. Ele retirou o broche e contemplou sua bela pedra de um azul intenso. Segurou a jóia sobre a mão e apertou o olhar.

Aproximaram-se do general dois dos cavaleiros do Rei e um dos cavaleiros do Duque. Ele e o general, dentre os presentes, eram os únicos que haviam lutado na guerra, vinte anos atrás. O general possuía cabelos grisalhos, tendendo para o branco, pele bem vermelha, sem nenhum pelo, uma expressão severa e experiente. Vestia uma armadura de placas, que protegia o peito, as costas e um dos braços. Tinha presa às placas da armadura uma longa capa de um verde bem escuro, quase negro.

– Será algum tipo de mensagem mágica? – arriscou.

– Certo, meu caro Graff! – a voz foi reconhecida imediatamente como a do Conde de MontGrey.

– Senhor... – aguardou respeitosamente.

– Seu ataque obviamente não parece ter força suficiente para expulsar essas pragas de minha cidade!

– O senhor está correto. – respondeu friamente o general.

– Então, general, você pode me explicar a natureza desse ataque e o seu objetivo? – perguntou a voz demandante, que parecia vir de alguém mais jovem que o general.

– Resgatar os cidadãos de Grey, antes que seja tarde... – disse o general cuidadosamente.

– O quê? – veio um grito. – Você acredita que, depois de tudo isso, iremos simplesmente sair? Fugir? Como covardes?

– Senhor, procure entender... Com as forças de que dispomos, não é possív... – foi interrompido por mais um grito escandaloso.

– Escute aqui, general, se for fazer algo, faça direito, ouviu bem?

– Mas, meu senhor, e quanto às mulheres e crianças? – toda a angústia do general, que possuía família entre os que estavam na cidade, explicitou-se nessa frase.

– Eu não quero saber de queixas! Você vai ordenar a seus homens que tirem algum proveito desse ataque inútil, juntando suas forças às nossas para defender a cidade dessas criaturas estúpidas!

Os cavaleiros que estavam ali olharam para o general na sua frente, arregalando os olhos. Ele largou o broche no chão e pisou sobre ele, afundando-o na neve. O velho general olhou para os cavaleiros, montou em seu cavalo e disse:

– Vamos, temos que orientar nosso pessoal para tirar o povo de lá, nem que seja à força!

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