Capítulo 31

CAPÍTULO 31

Estava escuro e não conseguiam acender uma tocha, mesmo usando a magia de Kiorina. Teriam de se contentar com os relâmpagos para conseguir ver alguma coisa. Ainda não tinham saído do local da carnificina promovida por Mishtra. Uma pessoa com quem a silfa tivesse convivido por algum tempo, como Gorum, nunca poderia imaginar que ela era uma guerreira tão selvagem. Herdara todos os delicados trejeitos dos silfos, sendo como uma flor do deserto. Dentro dela, porém, havia algo muito parecido com a tempestade que estava chegando.

– Estou com uma estranha sensação... – disse Noran, com os olhos bem abertos, mas sem conseguir enxergar bem.

Mishtra concordou com um aceno. Virou-se lentamente para trás e, vendo algo assustador, pulou na direção de Noran. Estabeleceu contato mental e gritou "Noran!"

"O que houve?" – segurou-a, procurando acalmá-la.

"Ali! Ali!" – indicava com as mãos.

Mishtra não entendia bem, mas algumas vezes via coisas que aparentemente ninguém via. Isso foi muito forte quando ainda era uma criança bem pequena. Lourish, o ancião do Clã, que lhe ensinara a linguagem dos sinais, disse que coisas assim aconteciam às vezes com os jovens e que era normal. Acrescentou que os Nam-lu não podiam machucá-la e que, ao contrário, a maioria deles procuraria protegê-la.

Estava ali diante deles, somente visível aos olhos da silfa, uma horrenda criatura. Uma espécie de serpente que saiu da neve e se transformou num homem muito feio, com dentes pontiagudos, mãos enormes, unhas esbranquiçadas, longas como adagas, constituído de matéria semitransparente.

Noran sentiu uma presença vil, uma presença de morte muito poderosa e um padrão de pensamento descentralizado, com intenções de destruição. Para sua surpresa, começou a ver um fraco brilho azulado, algo como uma chama instável cintilando no ar, à meia distância, aproximando-se rapidamente. Kiorina sentiu um forte calafrio e coçou os olhos para ter certeza do que estava vendo diante de si.

– Estou vendo! – disse Noran, em voz alta.

Kiorina, antes de perder o controle, procurou concentrar-se e lembrar-se de tudo o que aprendera na Alta Escola dos Magos referente a espíritos e aparições. Sem pensar duas vezes, começou a preparar o mais forte encanto das magias do fogo que conhecia. Mishtra desembainhou sua lâmina sílfica e se preparou para a defesa. Noran procurava encontrar uma forma de estabelecer contato mental, para tentar algum ataque ou persuasão. A criatura flutuava na direção do grupo; quanto mais se aproximava, deixando ver melhor seu corpo desforme e repugnante, mais apavorava Mishtra. Kiorina o via como sendo apenas uma tripa de fogos azuis semitransparentes e tomou a frente do grupo. Quando criatura chegou perto dela, a ruiva liberou seu feitiço: uma enorme labareda na forma de um jato foi projetada de suas mãos tencionadas. O efeito, apesar de espetacular, fora bastante reduzido pelas condições frias do local.

Mishtra viu o rosto da criatura contorcendo-se em dor e escutou um grito horrível em sua mente. Noran captou o grito, mas o que viu, assim como Kiorina, foi apenas fogos azuis dispersando-se em volta do jato de chamas, formando uma espécie de aro turbulento. Kiorina sentiu suas pernas bambeando pelo esforço que havia feito e interrompeu seu fluxo. A silfa viu no olhar da criatura uma intensa cólera concentrada em Kiorina. Só então, percebeu uma tênue camada de energia avermelhada que circundava a garota, principalmente acima da cabeça e dos ombros.

Nesse momento, a silfa desejou, com todas as forças, soltar sua voz, mas quase nada saiu, apenas um assobio ralo que ela própria mal pôde ouvir. Desesperada, tentou gritar na mente de Kiorina um aviso de cuidado, que aparentemente não funcionou. A criatura, logo após seu aviso, cravou sua enormes unhas no tórax da garota. Kiorina soltou todo ar que tinha nos pulmões em um suspiro doloroso. Sentiu uma dor aguda dentro de si, como se uma dezena facas de fogo lhe houvessem penetrado em um só instante.

Noran procurava exaustivamente um ponto que pudesse ser considerado o centro nervoso daquele ser, mas não conseguia.

Mishtra, tomada de horror, pulou em direção à criatura. Segurando a espada sílfica com ambas as mãos, golpeou-a num arco vertical, que simplesmente atravessou o ar produzindo um assobio e terminou seu caminho na neve do chão.

Kiorina sentiu a dor percorrer todo o seu corpo; ao chegar em sua mente, paralisou seus pensamentos, impedindo que o encanto que convocava sob intensa dor se concretizasse. Finalmente, foi tomada de uma fraqueza sem igual, que resultou em seu desmaio.

Noran, ao vê-la caída, resolveu enviar uma série de ataques na direção da criatura. Fazendo grande esforço, emitia sons nasais, que mais pareciam uma canção repetitiva e sem palavras. Mishtra, no chão, observava com assombro uma concentração de energias, uma aura de um amarelo intenso, ao redor de todo o ser de Noran. Dessa energia, raios de luz amarela eram projetados e perfuravam a criatura, queimando algumas de suas partes. Das dezenas de raios que Noran enviava, porém, apenas uns poucos atingiam a criatura, que torcia seu corpo procurando escapar dos ataques do discípulo de Kivion. Mishtra então a viu, em agonia, mergulhar em direção ao solo, sumindo sob a neve. Olhava a cabeça de Noran, que, com dezenas de veias infladas, como raízes de uma árvore subindo-lhe as têmporas, parecia querer explodir. Finalmente ele cessou o ataque, fechou os olhos e colocou ambas as mãos sobre a cabeça. Sem poder usar sua telepatia, anunciou, em voz alta:

– Cuide-se, Mishtra! Ele ainda está aqui!

Ela pulou e olhou à sua volta. Nesse momento, viu atrás de Noran uma figura conhecida, uma enorme figura feminina, em cujo interior havia um intenso brilho branco, que não se projetava ao exterior. Essa silhueta de luz esplêndida aproximou-se de Noran e acariciou-lhe a cabeça. Ele então soltou um suspiro de relaxamento.

Mishtra olhava ao seu redor e notava que suas visões cada vez possuíam mais e mais detalhes. No lugar onde momentos atrás havia uma árvore seca e retorcida, viu uma bela árvore com um brilho verde amarelado, cheia de frutos que mais pareciam bolas de luz. Viu também muito longe um pastor e centenas de animais quadrúpedes, todos feitos de tênue luz. A voz com quem falara na noite anterior preencheu sua mente com doçura, dizendo:

– Cuide de meu Noran e seja forte, pois não tarda a chegar ajuda.

Só agora Mishtra compreendeu que aquela mulher de luz branca era a Nam-lu de Noran. Todos os silfos possuem Nam-lus que olham por eles. Esses seres habitam as árvores e é possível conversar com eles. Esse é um dos motivos pelos quais os silfos têm o dever de defender suas árvores contra parasitas ou qualquer outro tipo de ameaça. A Nam-lu de Noran sumiu da mesma forma que havia aparecido, e o coração de Mishtra novamente disparou.

A criatura apareceu abaixo de Noran e, com suas garras, agarrou-lhe as pernas. Noran sentiu uma contração nos músculos, seguida de forte dor. Olhou para baixo e pôde identificar a criatura: um verdadeiro predador, que, mesmo esburacado, avançou com uma mordida feroz na barriga de sua presa. A dor foi imensa, e uma reação parecia improvável. Uma nova mordida foi dirigida à garganta, deixando-o paralisado. Um grito estridente rompeu a noite. Com os pés movimentando-se como raios, um chute impediu a terceira mordida, dirigida à cabeça. Após uma acrobacia, o vulto negro que saíra do nada pousou no chão, com a leveza de uma pluma. A criatura soltou Noran para enfrentar esse novo inimigo.

A silfa fixou os olhos sobre a ajuda que a moça de luz branca mencionara. Era algo que, apesar de parecer físico, era, na verdade, constituído por uma energia luminosa, de cor indefinida.

A criatura flutuou na direção da silhueta humana em um ataque feroz com as garras. Ele, em um movimento sinuoso e coordenado, reagiu, enroscando seu braço no braço da criatura e, apoiando-se nela, criou um grande impulso, girando ao redor de si e desferindo-lhe um violento chute no rosto. Em seguida, com velocidade impressionante, atingiu-o ainda com uma série de socos.

Na visão da silfa, havia fagulhas de luz que saltavam em explosões todas as vezes que os punhos cerrados se encontravam, até que a criatura se desmanchou, como uma espessa calda de brilho azulado, penetrando na neve.

Noran estava um pouco tonto, mas conseguiu perceber que a presença vil havia desaparecido. Agradeceu ao estranho prontamente:

– Muito obrigado por nos ajudar! Se pudermos retribuir de alguma forma...

O homem aproximou-se, tirando do colete uma pedra brilhante. Largou-a no ar e ela permaneceu flutuando a seu lado.

– Parece que sua amiga precisa de ajuda. – declarou, revelando uma voz que soava como um sussurro, de tão rouca.

Logo aproximaram-se de Kiorina, que parecia recobrar a consciência.

– Ai, que dor de cabeça... – resmungava.

– Acho que ela vai ficar boa. – arriscou o estranho.

– Qual é o seu nome? – indagou Noran.

– Vekkardi. Perdoem a minha voz, mas com esse tempo e com o que tenho gritado nos últimos dias... – disse o estranho.

Iluminados pela luz, todos puderam se ver. Vekkardi era um homem jovem, branco, usava barba rala e tinha olhos e cabelos castanhos.

– Gritado? – indagou Noran.

– Estou procurando meu irmão, Rikkardi. Ele é muito jovem e impetuoso, apenas um rapazote metido a cavaleiro errante; um pouco magro, mas com a musculatura definida; cabelos negros e compridos; personalidade inconfundível. Se o virem, digam-lhe, por favor, para voltar para casa e que seu irmão o esteve procurando. Bem, isso é tudo... Seguirei meu caminho. Foi um prazer encontrá-los! – disse Vekkardi e se foi.

– Muito obrigado novamente! – disse Noran. – Se encontrarmos seu irmão, passaremos o recado.

Vekkardi virou-se e acenou. Guardou a pedra brilhante e sumiu na escuridão.

– Puxa, que noite! – exclamou Noran.

– Vamos logo, antes que essa tempestade resolva cair em nossas cabeças! – disse Kiorina.

Somente agora dando-se conta do ocorrido, Kiorina perguntou, dolorosamente:

– O que aconteceu? Quem era aquele homem?

Noran surpreendeu-se com as perguntas e imaginou que o ataque da criatura pudesse ter afetado a garota.

Mishtra parecia bastante incomodada e contatou Noran.

"Noran, por favor, ajude-me a parar de ver essas coisas..." – implorou a silfa.

Com duas demandas simultâneas, Noran disse:

– Vamos andando, Kiorina; quando estivermos em lugar seguro, falaremos sobre isso.

Kiorina ficou com a sensação de que não encontrariam um lugar seguro tão cedo.

Noran tocou a cabeça de Mishtra e pediu que fechasse os olhos e tentasse relaxar. Ela relutou um pouco, mas acabou conseguindo. Noran procurou apaziguar a forte energia da mente da silfa.

– Pode abrir.

Ao abrir os olhos, a silfa sentiu um tremendo alívio por notar que voltava a ver somente o que havia de normal no mundo.

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