Capítulo 29
CAPÍTULO 29
Outra manhã fria, principalmente nos corredores da Catedral de Kamanesh. Ainda cedo, foram celebradas as homenagens a Aianaron, deus da força e da coragem, o primogênito de Forlon e Ecta, cultos que passaram a ser diários, desde que fora declarada a guerra, semanas atrás. Nesses eventos, a catedral ficava sempre lotada, principalmente de mulheres e crianças que vinham pedir pelos familiares que estavam na guerra. Além das homenagens a Aianaron, também eram feitas homenagens a outros deuses, nos dias e horários tradicionais. Aqueles cultos extras traziam muito trabalho aos acólitos da Real Santa Igreja.
Archibald caminhava pelos corredores e preparava-se para sair. Apesar de estar bastante frio, aparentemente pouco se importava, vestindo apenas os mantos tradicionais dos monges Naomir, sem nenhuma roupa por baixo. Parecia ter perdido um pouco da sensibilidade após sua recuperação. Estava bom de novo e tinha uma dezena de tarefas todos os dias, às quais já se havia habituado. Nesse dia, iria quebrar a rotina, indo à Praça da Meia-Lua. Precisava comprar algumas garrafas de vinho, pois seus companheiros bebiam todas as noites para espantar o frio.
Caminhava pelas ruas com passos lentos e tranqüilos, agindo como alguém que tivesse todo o tempo do mundo à sua disposição. Apesar disso, rapidamente chegou à Praça. Havia bem menos barracas que o normal. Durante o inverno, alguns dos bens comercializados no mercado simplesmente não ficavam disponíveis. Avistou a barraca dos vinhos do outro lado da praça. Enquanto se dirigia a ela, recebeu um toque no ombro e virou-se. Viu um homem alto, que o olhava de cima a baixo. Sem reconhecê-lo, disse:
– Posso ajudá-lo em alguma coisa?
O homem pareceu olhá-lo com maior atenção. Fixou seus olhos azuis cristalinos no jovem monge e disse:
– Archibald?
– Sim... eu o conheço? – Archibald parecia intrigado. Quem seria esse grandalhão? Reparou sua pele vermelha e seu porte musculoso. Não podia imaginar quem fosse.
– Então você voltou do esconderijo, seu verme! – o grandalhão liberou um insulto direto, abrindo bem a boca para falar.
– Veja lá como fala, meu caro! Sou um monge Naomir!
– O verme está de volta e acha que é um monge Naomir, só porque se veste como um... ha, ha, ha! – deu uma gargalhada forçada, segurando a barriga e curvando-se para trás.
– Veja como fala! – ameaçou Archibald, apontando o dedo indicador para o rosto do gigante e sentindo uma irritação crescente.
– É melhor você abaixar esse dedo, verme, pois, senão, serei obrigado a quebrá-lo! – disse o grandalhão.
A essa altura, estavam ambos cercados por curiosos, que se mantinham a uma distância segura.
– Escute aqui, não vou tolerar sua insolência sem uma explicação! – disse o monge e continuou a apontar o dedo sem vacilar.
O grandalhão estava prestes atacar o dedo do monge, quando uma voz que veio de trás o parou.
– Pare com isso, Reno! Não vale a pena procurar briga com esse aí...
"Reno?" – pensou Archibald, e lentamente uma série de lembranças começaram a aparecer em sua mente. Lembrou-se de um Reno que conhecera, não era mais que um rapaz raquítico... mas, e os olhos? Seria o mesmo Reno?
– Mas, Barne, ele não pode ser um monge, não depois do que fez... – disse Reno, olhando para trás.
"Barne? Então só podia ser o Reno mesmo... mas o que eu fiz para esse Reno estar-me ameaçando assim?" – pensava Archibald, bastante confuso, e arriscou:
– Reno, o que houve? Por que você está tão irritado?
– Como é? – disse o rapaz, bastante irritado, parecendo não acreditar no que acabara de ouvir. – Seu verme nojento, não se faça de tolo ou eu vou acabar com você agora mesmo!
– O que você disse? Se me chamar de verme mais uma vez, vai ter encrenca, na certa! – disse Archibald, prestes a explodir, mas ainda mantendo o controle.
Antes que Reno respondesse, Barne aproximou-se e segurou-o pelo braço, dizendo:
– Deixe-o, Reno! Assim você só vai trazer mais desgraça para a nossa família!
"Família? Sim, eles são irmãos!" – pensou Archibald e constatou que, apesar da estatura bem diferente, os dois tinham os mesmos olhos azuis e fisionomia semelhante. Mais um detalhe lhe veio na memória e ele murmurou:
– Déria...
Reno escutou o nome de sua irmã. A essa altura, nem mesmo cinco Barnes o deteriam. Desferiu um soco contra o rosto de Archibald com tanta força, que o monge foi ao chão sem resistência, sendo sua queda amortecida pela neve. O gigante partiu para cima, decidido a acabar com ele de uma vez, mas seu irmão, prevendo o que aconteceria, pulou em suas costas, enforcando-o com toda a força. Enquanto os irmãos brigavam, Archibald, caído no chão, permanecia desmaiado, com o rosto na neve, que, absorvendo seu sangue, tornava-se rosada.
Reno girou e arremessou o irmão em cima de alguns curiosos. Virou-se para Archibald com o olhar em fúria. Colocou a mão dentro de seu casaco e, ao retirá-la, empunhava uma faca. Seriam os últimos instantes da vida de Archibald, não fosse a voz de comando que se interpôs entre o monge e o gigante enfurecido:
– Largue essa faca!
Reno colocou os olhos sobre um homem magro, de olhos fundos, que tinha uma besta em suas mãos alvejando-lhe a testa. Guardou a faca e saiu do lugar, puxando o irmão, que rapidamente se levantou na tentativa de evitar uma tragédia.
Ao recobrar a consciência, a primeira imagem que Archibald viu foi o rosto de Alonzo, o assessor de Atir, que lhe oferecia ajuda. Archibald apoiou-se em Alonzo e levantou-se, enquanto olhava as pessoas que o cercavam.
– Você escapou da morte, sabia? – informou Alonzo.
– Acho que os deuses não me queriam ainda... – disse o monge, sentindo a cabeça doer. Pensamentos e imagens sem sentido chegavam como uma forte tempestade.
– Você está bem? – perguntou o comerciante.
Archibald demorou um pouco e devolveu a pergunta, com as mãos na cabeça.
– Pareço bem?
– Não...
– O que houve?
– Um lenhador chamado Reno quase acabou com sua vida aqui mesmo no mercado!
– Reno? Ah, sim...
– Posso meter meu nariz onde não fui chamado e perguntar qual o motivo disso?
Archibald pensou um pouco e disse:
– Isso é muito estranho, eu não sei o motivo... – começou a caminhar, olhou para Alonzo e hesitou: – Talvez... talvez tenha sido algo que fiz com a irmã dele antes de ir para o mosteiro...
– Isso parece sério... Fico fora! – disse Alonzo, esquivando-se. – Vamos, o Sr. Atir deseja vê-lo.
– O Sr. Atir?
– Sim, não sabe quem é o Sr. Atir?
– É claro que sei! – disse, um pouco irritado.
– Ei, calma lá! Eu só imaginei que a pancada que você tomou pudesse ter afetado seu julgamento...
– Desculpe, mas, para falar a verdade, acho que meu julgamento já foi afetado de alguma forma que ainda não sei! – e pensou: "Mas começo a desconfiar..."
**********
Alonzo conduziu-o ao local onde estivera antes de sua viagem, no lado oeste da praça. Eram circunstâncias diferentes, então. O tempo estava mais quente, o mercado, mais cheio, sua cabeça, mais tranqüila e seu nariz certamente não doía como agora. Em vez de subir uma escadaria, como haviam feito antes, desceram. Havia um amplo salão, com lamparinas de óleo distribuídas pelas paredes, decorado com esculturas, pinturas e diversos tipos de vasos e enfeites. No centro, uma pesada mesa de madeira avermelhada e cadeiras estofadas com veludo vermelho, tudo feito com material muito requintado, que só vira antes em palácios ou casas de nobres. O local tinha um cheiro parecido com o da biblioteca do mosteiro. Lembrou-se de mestre Landerfalt, que quase sempre estava na biblioteca. Certamente, trancar-se em lugares que tinham cheiro de história antiga era um dos pontos em comum entre seu Mestre e Atir, bastante amigos.
Atir estava sentado ao lado da cabeceira, lendo um grosso livro, iluminado por um candelabro dourado de sete velas, ornamentado com delicadas formas ovais. Elevou seu olhar e mostrou-se surpreso.
– Oh! Archibald DeReifos! Que surpresa!
Archibald não entendeu a surpresa de Atir, já que ele o mandara buscar, e imaginou que deveria estar sendo educado. Mesmo assim, cumprimentou calorosamente comerciante, que disse, com sua característica voz grave:
– Sente-se, por favor, meu caro.
Alonzo retirou-se após uma breve troca de olhares com seu chefe.
– Minha chegada não é uma verdadeira surpresa, é? – disse Archibald.
– Pois sim, é uma surpresa! Ouvi dizer que estava bastante enfermo e que não deixaria seus aposentos antes do final do inverno! Ao que parece, foi apenas um boato, não?
– Não... quero dizer, sim. – disse Archibald, confuso.
– Pelo inchaço do seu rosto, imagino que esteve muito pior. – observou Atir.
– Não, na verdade não havia sofrido nada no rosto, isso é recente. Aconteceu há pouco, na feira. Um grandalhão resolveu implicar comigo e me acertou um belo soco entre os olhos... – contou, em tom de lamentação, enquanto massageava o nariz.
– Estranho alguém procurar confusão com um monge Naomir... Qual foi o desfecho disso?
– Não sei bem, fiquei inconsciente e parece que estou aqui graças a Alonzo.
– Entendo... provavelmente alguma de suas brigas antigas, não? Você era muito brigão antes de o levarem para o mosteiro... – explicou Atir.
– Você deve estar certo, mas não me recordo muito bem o que houve...
– É bom se cuidar. Inimigos do passado podem ser muito perigosos.
Archibald reparava que ele não usava seu turbante, como de costume; podia ver os cabelos muito curtos e grisalhos como a barba. Usava um interessante vidro sobre o olho esquerdo, ligado por uma corrente dourada a um brinco.
– Não esperava que viesse tão cedo; isso é ótimo! Havia deixado meus homens avisados. Pedi a eles que o trouxessem aqui, se o vissem nas redondezas. – explicou finalmente Atir.
Archibald aceitou a explicação, pois sabia do interesse do velho comerciante em vê-lo.
– Quer saber das novidades de Tisamir, não é? – o monge foi direto ao assunto, sem mais rodeios. Atir apenas acenou com a cabeça. – Fique tranqüilo, a gema foi entregue sem maiores problemas... – acrescentou e pôde perceber um sutil alívio por parte do comerciante.
– E então, ele disse alguma coisa? Como estava? – quis saber Atir, com uma curiosidade ávida, perdendo um pouco a postura neutra que geralmente mantinha no tom de voz em assuntos comerciais.
– Pareceu-me bem, apesar de um tanto idoso. Acredito que sofria de dores da velhice e não estava com um humor muito bom... – relatou o jovem.
– Isso parece normal... O que ele disse sobre a gema?
– Não disse nada, mas sussurrou umas palavras e deixou escapar uma série de assobios estranhos ao examinar a pedra.
– O que mais?
– Ele disse que ia trabalhar nela junto com os anões e que ela demoraria um ano ou dois para ficar pronta.
– Um ano ou dois? – sua voz saiu alta, como se ele tivesse sido insultado. Levantou-se e repetiu, esbravejando: – Um ano ou dois?
– Foi o que ele disse... um ano ou dois. – repetiu o jovem, quase dolorosamente.
O homem começou a andar de um lado a outro, e Archibald notou que ele havia engordado um pouco. Resmungava para si vários insultos, que Archibald mal podia entender, captando apenas frases como "velho maldito!", além de diversos palavrões.
– Sr. Atir. – chamou Archibald modestamente; sem resposta, insistiu: – Sr. Atir. – nada; foi então mais enfático: – Sr. Atir!
O homem parou entre um passo e outro, com o rosto avermelhado, e a lente pendurada pela corrente que esticava sua orelha balançando de um lado a outro.
– Ah, sim... – disse, tentando acalmar-se. – Por favor, me desculpe.
Archibald acenou com a cabeça, hesitou e acrescentou:
– Isso se encontrar os ingredientes corretos... pois, se não, talvez demore três ou quatro anos...
– Ingredientes corretos? Três ou quatro anos!? – gritou o há pouco controlado Sr. Atir.
Archibald sentia-se terrível por ter sido a pessoa encarregada de dar a ele notícias que, agora, descobria serem muito ruins. Ao contrário do que esperava, o comerciante acalmou-se, respirou fundo e disse:
– Muitíssimo obrigado, jovem Archibald. Faça o favor de me deixar sozinho agora. Em breve, entrarei em contato para conversarmos com mais calma.
O monge quase não disse nada e saiu dali tão rápida e silenciosamente, que mal se notou. Ainda subindo as escadas, escutou gritos abafados:
– Três ou quatro anos? Quem aquele velho acha que é? Maldito salafrário!
Ao sair, deparou-se com Alonzo e mais alguns empregados da casa Atir. Um comentou ironicamente:
– Trouxe boas notícias para o patrão, não foi?
– Ele não está nada calmo. Se fosse vocês, não falaria com ele hoje. – disse Archibald.
Antes que respondessem, ouviu-se um urro, vindo de baixo.
– Alonzo!
Alonzo olhou para Archibald e disse, lamentando-se:
– Eu gostaria de ter essa opção, meu caro. Cuide-se!
– Boa sorte! – disse Archibald, que apertou um pouco os olhos ao receber a iluminação do dia no rosto, e saiu do estabelecimento.
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