Capítulo 28

CAPÍTULO 28

Nevava muito e só isso já era desvantagem suficiente. Os bestiais, que possuíam pêlo grosso, eram mais resistentes ao frio que os humanos. Também tinham uma capacidade de visão que, embora pobre em dias de muita luz, era muito boa em ocasiões sombrias e à noite. Além disso, as tropas de Lacoresh perdiam a vantagem de usar armas de ataque à distância, pois era mais difícil visualizar e mirar o inimigo.

As tropas de Kamanesh haviam-se aproximado de Grey há alguns dias. Montaram um acampamento em forma de estrela, com os líderes e principais tropas no centro e seis pelotões encarregados de fazer a patrulha onde seriam as pontas. O pelotão de Kyle encontrava-se mais ao sul, e Grey ficava a apenas um dia a sudoeste, sendo assim possível que seu pelotão se envolvesse em algum confronto com os bestiais.

Todos esperavam uma decisão dos seus superiores, reunidos há dois dias, desde o encontro com o pessoal de MontGrey que estava fora do cerco. Nesse tempo, alguns dos soldados das tropas de MontGrey com experiência de batalha com os bestiais juntaram-se aos das tropas vindas de Kamanesh. Espalharam-se rapidamente histórias das lutas ocorridas, dentre as quais a de que o legendário e misterioso Cavaleiro Vermelho, que lutara na guerra dos bestiais vinte anos atrás, foi visto ajudando em uma das batalhas de defesa dos fortes que fazem fronteira com os pântanos de Yersh.

Kyle, cujos lábios estavam rachados pelo frio, tinha a mente dominada pela responsabilidade que tinha com seus superiores e seus homens. Vestia a armadura de placas de aço que um dia havia pertencido a seu pai, com uma grande ave de rapina em alto relevo no seu peitoral. Esse brasão era uma das últimas lembranças da família Blackwing, que, no passado, antes do estabelecimento da dinastia dos Corélius, pertencera à alta nobreza, tendo, inclusive, um barão. No início da dinastia dos Corélius, a família Blackwing passou aos poucos para posições de influência junto aos militares e cavaleiros. Por baixo da armadura, Kyle vestia uma camada extra de peles macias e, por cima, uma grossa capa negra que também pertencera a seu pai, reformada na tecelagem do pai de Kiorina, Gálius. Para proteger as mãos, luvas de couro aveludadas, que chegavam aos cotovelos. Na cabeça, um capuz muito macio de pele de coelho e o elmo semi-aberto, pois os fechados o sufocavam. Sentia o corpo pesado; imaginava se seria pelo cansaço ou pelo excesso de peso que carregava em função do frio, o que era o mais provável. Não importava. Era preciso permanecer alerta, pois aquilo não era treinamento, e estavam todos em posição de risco. O tempo parecia não passar, sendo cada instante um teste para sua paciência. Com a chegada da noite, concluiu que havia sido mais um dia de tédio e apreensão. Aquilo o irritava, mas ele procurava se controlar para não passar sua irritação aos homens. Sua maior preocupação era não deixar que eles fossem dominados pelo temor. Por isso, conversava constantemente com eles sobre sua experiência com os bestiais. Contou mais de uma vez a luta que tivera recentemente na floresta de Shind e mostrava sempre a cicatriz na palma da mão direita, feita pela própria espada ao aparar o golpe de um forte bestial. Além disso, costumava falar das lutas que Gorum lhe contara inúmeras vezes, nunca se esquecendo de incrementar os casos com as piadas de seu protetor, que, contadas por ele, não tinham muita graça, mas divertiam assim mesmo. Kyle notava que, aos poucos, crescia a confiança do grupo nele. Se, no início, seus soldados esperavam um sujeito arrogante e um guerreiro medíocre, no comando apenas por ser filho de um herói de guerra, viam agora que se tratava de um homem simples, que falava a mesma língua deles, e corajoso, ao contrário da maioria dos cavaleiros com quem tiveram contato anteriormente.

Kyle olhava o céu e pedia a Forlon que trouxesse a primavera mais cedo naquele ano. Observava as várias tonalidades de cinza, bem claro no horizonte e escuro, muito escuro no alto do céu. Caíam lentamente pequenos flocos de neve, que iam cobrindo seus homens de branco. As árvores, bem distantes umas das outras, também estavam cobertas, mas ainda era possível ver alguns tons escuros e verdes nas partes inferiores dos galhos e folhas. Kyle escutou vozes que falavam alto atrás de si; virou-se e viu a bandeira de um mensageiro montado. Caminhou em direção a ele, aguardou que desmontasse, cumprimentou-o e indicou o caminho até sua barraca. Disse:

– Fique à vontade.

– Obrigado, senhor... – disse o mensageiro, nada mais que um rapazote, sem armadura, carregando apenas um espadim barato.

Kyle, vendo o cansaço do rapaz, ofereceu-lhe um gole de vinho. Enquanto ele bebia, Kyle comandou:

– Pode transmitir a mensagem.

– Mensagem do comando: reúna seus homens e prepare-se para a marcha e o combate, pois entraremos em ação brevemente. Dados da situação: capital do condado sob cerco; parte da cidade tomada por bestiais, principalmente o porto e áreas externas; porção resistente: a muralha da parte mais interna da cidade e o castelo. Há duas frentes de defesa: uma externa ao castelo, composta por poucos militares, muitos camponeses e cidadãos comuns, para a qual os suprimentos estão-se acabando; a outra, composta por militares do alto escalão e cavaleiros, está dentro das muralhas que cercam o castelo. Fator agravante: o pessoal que está fora das muralhas do castelo acredita que dentro haja comida em excesso. Existe a possibilidade de conflitos internos, caso acabe a comida do pessoal externo ao castelo. Objetivo: resgatar os nobres e cidadãos da cidade, para o que será necessário flanquear um dos acessos até a muralha externa e garantir um corredor para a fuga. Essas são as informações básicas; mais detalhes poderão ser discutidos no ponto de encontro imediatamente fora de Grey, quando as tropas de Kamanesh irão juntar-se aos combatentes de um dos fortes da fronteira dos pântanos de Yersh, que já deixaram suas posições para trazer apoio a esta operação.

Kyle ficou pensativo por alguns instantes, tentando assimilar todas aquelas informações. Disse:

– Isso é tudo?

– Não, senhor. O cavaleiro Gorum pediu-me para trazer-lhe isto. – disse, retirando um papel dobrado de dentro de sua túnica amarrotada.

Kyle abriu o papel e leu rapidamente, pois não eram mais que dois pares de linhas. O rapaz esperou por uma possível réplica.

– Muito bem, pode ir. Se encontrar o cavaleiro Gorum, diga a ele que recebi sua mensagem e que conversaremos em breve.

O rapaz levantou a lona e saiu da barraca, deixando Kyle sozinho. Ele pensou por alguns minutos, andando curvado de um lado a outro no pequeno espaço que a barraca oferecia. Tomou um bom gole de vinho e saiu com decisão em seus passos. Iria reunir seu pelotão imediatamente e repassar as instruções recebidas.

Quando saiu da barraca, ventava e nevava um pouco mais. Movidos pela curiosidade, muitos soldados estavam por perto; juntá-los todos foi mais rápido do que se poderia imaginar.

– Desarmem o acampamento, homens! Vamos finalmente entrar em ação!

Antes que as perguntas iniciassem, adicionou:

– Temos uma missão de resgate. Iremos abrir uma brecha nas tropas dos bestiais, penetrar em Grey e salvar as pessoas que lá estão.

Esperou para ver a reação do pelotão, que não foi muito boa.

– O que vocês acham?

Houve hesitação, mas um dos homens acabou dizendo:

– Parece arriscado...

– Você tem razão. – respondeu Kyle. – Mas temos de pensar que teremos a oportunidade de nos arriscar com um propósito definido!

– Qual? – alguém perguntou.

– Lutar para ajudar no salvamento dos cidadãos de Grey, que estão cercados e com fome! Isso é melhor do que encontrar com um grupo qualquer de bestiais ou começar um luta sem objetivos. Demos sorte de nossa primeira batalha ter um objetivo definido e de ele ser salvar os cidadãos de Grey.

De forma geral, os homens concordaram com as palavras de seu líder, nem havia como discordar, mas isso não lhes tirou o medo do primeiro confronto.

– Vamos, então! – finalizou Kyle.

**********

No dia seguinte, todas as tropas já reunidas se preparavam para o combate. Estavam divididas em grupos mesmo antes de entrar em marcha, no dia anterior, da qual, neste momento, descansavam. Kyle não parava de pensar na última conversa que tivera com Gorum. Pensava no tom de voz seríssimo e preocupado do seu tutor e na desconfiança dele com relação às decisões dos cavaleiros do rei e do general Graff e, principalmente, às considerações feitas pelo cavaleiro Roy. Gorum lhe dissera que Roy falava dos soldados como sendo completamente dispensáveis, e que os planos somente levavam em consideração o cumprimento do objetivo, custasse o que custasse. Apesar de Gorum não ser um grande estrategista, ele sabia que algumas das considerações estratégicas não funcionariam. Até colocou seu ponto de vista, mas fora suplantado por Roy, que possuía uma capacidade de distorção e persuasão dos fatos que suplantava sua argumentação. Além disso, sua opinião não era levada muito a sério pelos jovens, que viam nele um grande piadista, mas um guerreiro ultrapassado.

Aquilo tudo deixava Kyle extremamente preocupado. Como iria encarar seus homens e comandá-los em uma ação que, segundo o que Gorum, era extremamente perigosa e na qual seriam assumidos riscos desnecessários? Tudo parecia tão absurdo, que Kyle chegou a desconfiar de que Gorum pudesse estar exagerando, ou mesmo, que estivesse enganado. As dúvidas eram tantas, que acabou se decidindo por procurar o cavaleiro Roy e falar pessoalmente com ele.

Percorreu as tropas até o local onde estava o pessoal do comando. Observou seus bem cuidados cavalos sendo equipados por armaduras pelos pagens e escudeiros que ali estavam. Observou, a meia distância, o cavaleiro Roy, vestido em uma armadura de placas pintadas com um azul bastante escuro, quase negro. Imediatamente, pôs-se em sua direção e, ao aproximar-se, ele o reconheceu.

– Cavaleiro Blackwing! – cumprimentou Roy amigavelmente.

– Cavaleiro Roy! – respondeu Kyle educadamente.

Roy estava sem elmo, e Kyle pôde então observar alguns detalhes em seu rosto: a pele era muito branca e cheia de marcas abaixo dos olhos; usava um bigode curto o suficiente para não cobrir os lábios, mas que descia pelos cantos da boca até a altura do queixo; o cabelo, bastante fino, era comprido e amarrado atrás da cabeça, algo incomum.

– Seus homens estão preparados? – perguntou, bastante sério, quase friamente.

– Sim, senhor, apesar de um pouco apreensivos...

– É normal.

– Um pouco ousada nossa ação, não acha?

– É verdade... um pouco.

– Andei pensando na estratégia... será que não estaremos correndo alguns riscos desnecessários?

– Você acha? Quer partilhar seu ponto de vista?

Kyle surpreendeu-se, pois, pelo que Gorum havia-lhe dito, um comentário assim poderia causar uma reação ruim no cavaleiro. Prosseguiu:

– Pensei que mobilizar todas as nossas forças contra um inimigo sobre o qual não temos certeza da quantidade ou disposição... – disse Kyle, muito pouco à vontade.

– Isso seria um exagero?

– É o que acho.

– Vamos voltar ao início, então! Você mencionou riscos desnecessários, não foi?

– S... sim...

– Em primeiro lugar, os riscos não são desnecessários, pelo contrário! Há muita gente naquela cidade que precisa da nossa ajuda. A reserva de suprimentos deles não deve estar nada boa; portanto, se não agirmos logo, poderemos perdê-los para os bestiais, concorda?

– Concordo.

– Em segundo lugar, temos uma força incrível reunida aqui, sabia? Estamos fazendo um ataque focado e rápido. Por mais que existam bestiais lá, para fazer um cerco, precisam estar distribuídos. Se um ataque de toda a nossa força em um pequeno ponto não for capaz de furar o bloqueio, o que seria capaz?

– Não sei...

– Em terceiro lugar, os bestiais estão com as áreas externas da cidade tomadas e adentrar uma delas seria difícil. Acontece que eles são péssimos estrategistas. A melhor maneira de tirarem proveito de uma situação como essa seria usar a cobertura que têm e disparar flechas para conter nosso avanço. No entanto, eles não gostam de usar arcos e flechas e os poucos que o fazem têm mira ruim!

– O senhor tem razão... – sem querer dar-se por derrotado, entretanto, Kyle continuou: – E quanto à legião que foi avistada há dois dias, vinda dos pântanos?

O cavaleiro olhou para ele com desconfiança e apertou o olhar. Disse:

– Certamente você esteve conversando com o cavaleiro Gorum, não esteve?

– Estive... – disse Kyle, percebendo que havia passado uma informação que não deveria.

– Está aí então a fonte de sua preocupação...

Kyle percebeu que ele tanto poderia estar falando de Gorum, como também da legião. De qualquer forma, concordou.

– Veja bem, meu caro Kyle, sei que o cavaleiro Gorum é seu tutor e que você tem por ele o maior respeito, mas, pode acreditar, ele já está ficando velho, e os velhos tendem a ter idéias retrógradas... Entendi muito bem a preocupação que ele tem, mas o que devemos fazer? Ser prudentes e deixar que mais uma legião junte-se ao cerco? Deixar morrer a última esperança dos cidadãos de Grey? Estamos em um momento decisivo! A vez de seu tutor fazer história já passou, agora é a nossa vez! Quanto aos riscos, eles são completamente necessários! O que acha disso tudo, meu jovem ?

– Acho que o senhor está certo, talvez Gorum esteja lutando uma outra guerra, e estamos aqui para lutar a nossa! – disse decididamente.

– Bravo! – disse o cavaleiro sorrindo e estendendo as mãos para cumprimentar o jovem. Acrescentou: – Boa sorte, cavaleiro Blackwing! E transmita essa confiança a seus homens. Todos precisamos deles nessa batalha. Dê o seu melhor!

– Que os deuses nos acompanhem! – disse Kyle, despedindo-se.

Por um momento, ele ficou tranqüilo, mas logo voltou a ter dúvida sobre algo que não perguntara ao cavaleiro Roy: por que o cerco durava tanto, já que, para os bestiais, as cidades não tinham significado algum? Eles não arrasaram, queimaram e destruíram as partes tomadas da cidade? Por que estão sendo tão pouco selvagens? De qualquer forma, isso não mudava o fato de que existiam pessoas presas na cidade que precisavam ser resgatadas e, para isso, daria seu máximo, como o cavaleiro Roy lhe pedira há pouco.

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