Capítulo 26
CAPÍTULO 26
Devido ao bom conhecimento das rotas pelos comerciantes, Kiorina, Noran e Mishtra fizeram uma jornada tranqüila até Xilos. Estava previsto que encontrariam poucos, talvez nenhum bestial no caminho, já que a maior parte deles estava compondo o cerco a Grey. Não tiveram tanta sorte, no entanto, e encontraram um pequeno grupo no meio da jornada, numa região desabitada de MontGrey. Os arqueiros que compunham a caravana conseguiram eliminar alguns e espantar o restante. Aproveitaram-se de um ponto fraco dos bestiais: sua falta de habilidade com armas de ataque à distância. No combate corpo-a-corpo, porém, as criaturas eram oponentes terríveis, por sua boa técnica aliada a uma ferocidade espantosa.
A cidade de Xilos era pequena e ficava na base da cordilheira de Thai. Quase toda a população trabalhava ao norte, nas minas, principal fonte de renda da cidade. Das minas de Xilos eram extraídos metais como o ferro e o cobre, largamente utilizados no reino de Lacoresh. É dito que lá, ocasionalmente, são feitos contatos com os anões que habitam a cordilheira, inclusive com alguns casos, raros na verdade, de colaboração. Dizem até que toda a estrutura das minas foi construída pelos anões no passado, que depois as abandonaram.
Por ser uma cidade relativamente rica, uma muralha de pedra foi construída há vinte anos, durante a guerra contra os bestiais. Ela, no entanto, cresceu desde então, sendo hoje protegida apenas a porção interna da cidade, local onde ficam as famílias mais ricas. Com as notícias de uma nova guerra, iniciou-se a construção de outra muralha, que, a princípio, seria de madeira e convertida em pedra quando possível.
A oeste de Xilos, por toda a extensão que faz fronteira com os pântanos cinzentos de Yersh, existiam seis fortes, construídos após a antiga guerra para defender o Condado de novos ataques. Nessa nova investida, os bestiais tomaram e destruíram um desses fortes, abrindo passagem para o território na região litorânea. Avançaram diretamente para a capital, Grey, provocando muita destruição em seu caminho. Outros fortes, próximos a Grey, também foram atacados, porém não foram tomados, o que garantiu que a região de Xilos sofresse menor impacto e continuasse a ter uma situação de relativa segurança, aguardando reforços. Já era esperada para breve a chegada das tropas que viriam do baronato de WhiteLeaf. Segundo boatos, as tropas de WhiteLeaf tomariam Xilos como sua base.
– Que bom que chegamos a um lugar seguro! – disse Kiorina, aliviada.
Mishtra concordou com um gesto, e Noran pareceu não ouvir. Estavam diante do portão principal da cidade, um grande arco da altura de quatro homens. A muralha era bastante alta e construída com uma rocha cinzenta da mesma cor das montanhas que ficavam ao norte. De Xilos era possível avistar a grande montanha cinzenta de cimo sempre branco, que dera nome ao Condado. Era tão mais alta que as montanhas que a envolviam, que parecia não fazer parte delas. Seu formato podia ser reconhecido mesmo por quem nunca foi até a região, pois fora bastante retratada por pintores que apreciavam, principalmente, o ângulo do qual sua dupla crista se mostrava emparelhada.
Era cedo, e a maioria dos habitantes já estava trabalhando nas minas. A cidade parecia calma para seu tamanho. Passaram-se alguns dias desde a última vez que nevou. A neve que ainda estava à vista era rala e, nas ruas, havia virado lama.
Atravessaram o portão, despedindo-se do pessoal da caravana, que iria direto ao mercado, fazer negócios. Os três seguiram para um hotel tradicional da cidade; estavam exaustos, precisavam descansar, exceto, talvez, Mishtra, que não demonstrava cansaço algum.
– Ufa! Estamos bem, mas eu não consigo parar de pensar em como estarão Kyle e Gorum, se eles já lutaram... se...
– Vamos, Kiorina! Como já lhe disse, não adianta se preocupar. Essa ansiedade não lhe fará bem. O melhor agora é descansarmos e aguardar notícias.
– É... você deve estar certo. – disse a moça, apesar de não conseguir fazer o que ele dizia.
Noran também não dizia nada, mas se lamentava ao sentir a angústia de Kiorina aumentar. Finalmente, em silêncio, chegaram no hotel, uma grande casa de pedra, cuja fachada possuía detalhes em madeira. O local era muito limpo. Pediram dois quartos, ficando Noran só e as duas, juntas. Dormiram o dia todo, somente se levantando para cear.
À noite, a cidade era outra, com as tavernas cheias de gente e apresentações de música, dança ou teatro. Saíram para conhecer a vida noturna e chegaram a questionar como era possível que, durante uma guerra, houvesse tantos festejos. Explicaram a eles que aquilo não correspondia à metade do que estaria acontecendo numa época de paz. Logo, Mishtra cansou-se de toda aquela confusão e retornou ao hotel; tinha muita dificuldade em interagir com os humanos, seus costumes e, principalmente, sua movimentação excessiva.
Kiorina e Noran foram para uma taberna, freqüentada por famílias nobres, oficiais militares e cavaleiros. Desejavam informar-se sobre o andamento da guerra. Lá havia um conjunto completo de músicos que tocavam canções alegres. Muito vinho era servido; todos pareciam muito animados. O local tinha dois andares e era bastante amplo; dezenas de lustres, repletos de velas, tornavam o local bem iluminado.
Kiorina usava um vestido muito fino, feito na confecção de seu pai. Ele chamava quase tanta atenção quanto seu corte de cabelo, parecido com o de um homem, incomum para as mulheres dali.
Noran sentou-se e pediu vinho. Usava uma roupa semelhante àquela com que viajara, mas estava limpa. Sobre a testa, uma faixa branca escondia suas marcas, não despertando curiosidade. Kiorina observava tudo à sua volta; parecia estranho, mas era a primeira vez que estava por conta própria em uma taberna, sem a companhia de seu pai ou um de seus homens de confiança. Somente nesse momento percebeu que gozava de uma liberdade que nunca antes havia experimentado. Estava sozinha. Bem, havia Noran, mas ele não era do tipo controlador, não interferiria, e ela também não havia dado a ele essa liberdade, afinal, sabia se cuidar. Depois de pensar um pouco, também pediu vinho.
Um pouco mais tarde, os músicos começaram a tocar músicas dançantes e foi aberto um espaço. Logo, casais começaram a se formar e dançaram. Um homem vestido com uma túnica azul aproximou-se da mesa do par. Ele tinha cabelos negros, barba e bigode curtos e um olhar intrigante. Possuía o sotaque característico da região e falava como um nobre. Disse:
– Com sua licença. Permitam que me apresente. Meu nome é Laern Tiorish, sou sobrinho do senhor desta cidade, o marquês de Tiorish.
Noran se levantou e disse:
– Sou Noran, de Tisamir, e esta é Kiorina de Lars, de Kamanesh.
– É um prazer! – disse Laern, cumprimentando Noran; depois, tomou a mão de Kiorina, beijou-a e disse: – Encantado...
A moça apenas sorriu.
– Diga-me, o que a traz de tão longe e em tempos tão conturbados? – continuou ele, direcionado a conversa para Kiorina.
– Por favor, queira sentar-se. – interrompeu Noran.
Ele agradeceu, e todos se sentaram.
– Então, o que a trouxe a Xilos numa ocasião como esta? – insistiu Laern.
– Viemos a serviço do Duque. – disse Kiorina.
– Seria perguntar demais do que se trata?
– De forma alguma. Viemos investigar o nascimento de uma criança, possivelmente doente. – disse Noran.
– Doente? Que tipo de doença? – disse, parecendo preocupado.
– De um tipo que ainda se desconhece. – rebateu Noran.
– E é contagiosa? Vocês vieram dar cabo da criança?
– Não sabemos ainda se há risco de contágio, mas não viemos tirar sua vida.
– Não vamos discutir isso agora, certo? – interrompeu Kiorina.
– Certo. – disse Laern. – Estive observado vocês desde que entraram, sabia que tinham algo de especial.
Noran pensou: "Eu percebi" e olhou fundo nos olhos de Laern; algo nesse sujeito o incomodava.
– Como o quê? – disse Kiorina.
– Um estilo bastante apurado. Seu vestido, por exemplo, não é como os que são usados aqui. É muito bonito.
Kiorina sorriu novamente e bebeu mais um gole de vinho. Deu-se uma pausa na música, mas os músicos logo se recompuseram.
– Srta. De Lars, vai começar a coletiva. A senhorita me dá a honra desta dança?
Kiorina levantou-se, estendeu o braço para Laern e disse:
– Por favor, me chame de Kiorina apenas.
Ao saírem, ele lançou um olhar a Noran, que ficou ainda mais intrigado. Os pares se posicionaram, cerca de quinze, e os músicos começaram a tocar. Enquanto a dança progredia, Noran terminava mais um copo de vinho.
Intrigado com Laern, Noran fixou o olhar no sujeito e iniciou uma busca em sua mente. Já na superfície de seus pensamentos, o que viu o deixou enojado. Ele planejava todo o tipo de sujeiras. Começou a observar como ia pensando no corpo da jovem e como planejava os movimento de suas mãos para que elas tocassem a garota, aproveitando-se de sua embriaguez. Aquilo o irritou a tal ponto que, quebrando seu próprio tabu, começou a varrer as camadas internas da mente de Laern. Surpreendeu-se muito com o que viu, chegando a cair da cadeira. Logo levantou-se e dirigiu-se, cambaleando, à saída. Kiorina quis ir em seu auxílio, mas Laern segurou-a, dizendo:
– Ei, calma, seu amigo está bêbado. Não precisamos estragar nossa dança por causa disso.
– Mas ele precisa de minha ajuda! – disse Kiorina, tentando desvencilhar-se.
– Não se preocupe, minha cara. – fez um sinal para um homem que estava próximo à porta. – Um de meus empregados vai cuidar dele e levá-lo em segurança para o hotel.
Kiorina teve dúvida. Laern insistiu:
– Vamos dançar, você me pareceu muito tensa desde que a vi entrar. Tudo o que precisa e merece é se divertir um pouco.
Enquanto isso, do lado de fora, Noran tentava utilizar uma técnica que seu mestre havia lhe ensinado para controlar as ações involuntárias de seu corpo, como diminuir o batimento do coração, simulando a morte, para vomitar. A embriaguez porém não permitia a concentração necessária à execução de tão difícil tarefa. Resolveu apelar para o método natural e enfiou o dedo na garganta. Vomitou bastante. Mal acabara, observou um homem que se aproximava. Pressentindo o perigo, não se deixou impressionar por sua oferta amigável de ajuda e percorreu seus pensamentos superficiais. Percebeu coisas como:
– Vai ser fácil... ele não é forte... está bêbado... uma punhalada na garganta e adeus... quem sabe tem algum dinheiro...
– Como é seu nome? – perguntou Noran.
– Meu nome é... aahhh...
O homem caiu como uma árvore cortada, sob o olhar concentrado de Noran, que se levantou e voltou ao salão. Ficou imaginando se vomitar adiantaria para eliminar os efeitos do veneno que bebera. Ao entrar na taverna, procurou Kiorina. Localizou-a em uma mesa perto da sacada, no segundo andar. A mão direita dela estava contida nas duas de Laern, que lhe sussurrava coisas ao ouvido. Ela parecia envolvida pelas palavras do homem e sorria bastante. Noran olhou fixamente o casal por alguns instantes e paralisou Laern. Sem perder tempo, disse, em pensamento: "Kiorina, escute com atenção!" Ela se assustou, mas localizou Noran com o olhar praticamente no mesmo instante. "Esse homem é um mentiroso, ele mandou que colocassem veneno na minha bebida e agora quer seduzi-la e matá-la."
Kiorina recebeu aquela mensagem mais rapidamente que o normal, já que era uma comunicação direta com pensamentos. Apesar de estar um pouco embriagada, compreendeu o recado e pensou: "Mas como? O que está havendo?"
"O que está havendo é algum tipo de complô contra nós. Agora mesmo, lá fora, dominei um homem que tinha a intenção de matar-me. Vamos, venha imediatamente!"
Kiorina levantou-se e se despediu de Laern, que se encontrava paralisado por Noran. Ela teve um pouco de dificuldade para descer as escadas, mas logo se encontrou com Noran e ambos saíram às pressas em direção ao hotel. Ao chegar, correram para o quarto de Mishtra; a porta aberta e não havia ninguém.
– Eles a levaram! – desesperou-se Kiorina.
– Calma, não esteja tão certa.
– Vamos falar com as autoridades imediatamente. Aquele Laern me paga!
– Calma, Kiorina, nós não temos nenhuma evidência concreta para ligá-lo ao des... ao... – Noran parou colocando a mão sobre a barriga, fez uma careta de dor e caminhou até a cama, caindo de lado nela.
– Noran! Noran! – Kiorina correu para acudi-lo.
Com os olhos entreabertos, ele disse:
– Traga ajuda... argh...
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