Capítulo 25

CAPÍTULO 25

Os poucos dias de marcha ao lado das tropas de Kamanesh foram mais tranqüilos que o esperado e teriam sido mais, não fosse a neve e o tempo ruim. Amin, a pequena vila onde chegaram, sem entrar em combate com um bestial sequer, ficava no coração do condado de MontGrey e vivia da criação de animais. Encontrava-se praticamente vazia, pois a maioria dos habitantes havia deixado suas casas e buscado refúgio no baronato de WhiteLeaf, ao norte. Isso ocorrera semanas antes, após um ataque dos bestiais que deixou muitos mortos e destruiu boa parte das construções da vila. Permaneceram lá apenas os donos de alguns estabelecimentos, como o taberneiro e o ferreiro, algumas mulheres fiéis a seus esposos ou amantes, que se recusaram a fugir para WhiteLeaf, além, é claro, de mulheres da noite, que ficaram para fazer companhia às tropas que ali estavam ou passariam. Também ficaram alguns homens ligados aos militares e os que desejavam lutar na guerra. Os rebanhos que ficavam nas imediações foram, em sua maioria, capturados pelos bestiais, para alimento. O local encontrava-se desolado.

Muito rapidamente levantaram um forte, e Amin tornou-se uma base de treinamento, para onde eram enviados homens das vilas menores vizinhas. Além de treinar, os homens saíam em patrulhas pelas redondezas em busca de animais soltos, que eram trazidos para a vila a fim de se criar um estoque de suprimentos.

As tropas de Kamanesh apenas passariam a noite em Amin e, pela manhã, sairiam em direção a Grey, a capital do condado que se encontrava sob cerco. Haviam chegado lá no meio da tarde e demoraram um pouco até se estabelecer. Logo foram determinados turnos de patrulhas e foi permitido aos homens diversão e descontração até a metade da noite.

Somente durante essa folga Kyle pôde reunir-se com Kiorina e os outros. Não estiveram juntos antes, devido a uma rígida divisão de grupamentos necessária ao bom andamento da viagem.

Kiorina estava sentada do lado de fora da barraca em que passariam a noite, vestia seu casco de pele de urso e preparava o fogo para cozinhar, tarefa que seria difícil sem o uso da magia. Ao ver seu amigo se aproximar, levantou-se veloz, batendo no casaco, e disse:

– Kyle?! Kyle, eu pensei que não o veria mais!

– Por que você diz isso? – disse ele aproximando-se e dando um abraço na amiga.

– Como por quê? Eu tentei falar com você, mas os tenentes responsáveis pela organização não me deixaram ir até o seu grupamento. A formação das tropas não devia ser quebrada! Estamos em guerra! Alterar a formação podia colocar todos em perigo! Não podemos...

– Ei, ei... já entendi... Eles estavam apenas cumprindo ordens! Procure ficar calma, certo? – disse o cavaleiro, que vestia sua armadura completa, a mesma que um dia havia sido de seu pai, e, por cima dela, uma grossa capa escura, de pele.

– Olá, Kyle! Como estão as coisas? – disse Noran, ao sair da barraca. Também vestia roupas de inverno: uma túnica bege, capuz e luvas.

– Por enquanto, tudo está calmo, mas isso não deve durar muito.

Noran apenas sinalizou com a cabeça e observou bem à sua volta. Ele usava uma faixa de tecido bege amarrada na testa, a fim de não chamar a atenção para suas marcas, o que costumava fazer em algumas ocasiões. Dezenas de barracas erguiam-se nas redondezas, onde havia centenas de pessoas que passariam mais uma noite fria e desconfortável fora de seus lares. Ficar no meio de um ambiente carregado de tanta tensão trazia pensamentos bastante negativos à sua mente. Passava boa parte do tempo tentando, não ceder a eles, controlar-se.

– Ei, Noran, algo errado? – perguntou Kyle, observando sua expressão carregada.

– Não, apenas um desconforto, acredito que provocado pela viagem.

– E Gorum? – perguntou Kiorina.

– Ah, sim, ele logo estará aqui. Tinha assuntos a resolver.

– Então, ele virá? – disse Noran, com um leve sorriso.

Kyle indicou que sim e completou:

– Temos conversado bastante esses dias; ele tem-me falado muito sobre a guerra de vinte anos atrás e sobre os bestiais.

– Com certeza, ele é um dos homens que mais entendem do assunto em todo o reino. – afirmou Noran, sobriamente.

Falaram por algum tempo sobre as tropas, os cavaleiros, o capitão Falcus e a guerra de vinte anos atrás, que nenhum deles havia presenciado, a não ser Mishtra. A silfa estava dentro da barraca, recostada e provavelmente dormindo, coisa da qual eles nunca tinham certeza.

– Hoje iremos nos separar. Ao amanhecer, quando as tropas partirem para Grey, nós seguiremos para Xilos. – disse Noran, trazendo à tona o assunto que todos pareciam evitar.

Kiorina olhou para baixo. Kyle suspirou e apenas conseguiu dizer:

– É...

A essa altura, o sol já havia se posto. Uma fogueira, feita num buraco cavado no chão, iluminava o rosto dos três.

– Bem, acredito que Gorum vai acabar não aparecendo... todos tiraram uma folga, mas, ao que parece, os comandantes não têm muito tempo para isso. – disse Noran, vendo que ninguém se animava a falar.

Nesse momento, Mishtra saiu da barraca. Vestia pouca roupa, para o frio que fazia, o que causou surpresa em Kyle, mas não em Kiorina e Noran, que já se estavam habituando às peculiaridades do comportamento da silfa. Ela olhou nos olhos de Kyle e o cumprimentou com um gesto. Agachou-se junto ao fogo e pegou um pouco de comida. Logo virou-se e dirigiu-se à barraca novamente.

– Ela não está muito amigável hoje... – disse Kyle baixinho.

– É provável que tenha escutado o que disse, meu caro. Acredito que isso seja natural e tenha relação com as maneiras dos silfos.

– Bem, está ficando tarde, preciso voltar para meu grupamento. – disse Kyle.

– Tão cedo? – contestou Kiorina, como que pedindo a ele que ficasse mais.

Noran levantou-se, despediu-se e se dirigiu à barraca. Antes de entrar, olhou para Kyle e enviou um pensamento a ele: "Pode contar comigo, eu tomarei conta dela."

Kyle ficou um pouco surpreso com aquilo e dispersou-se por uns momentos. Quando se deu conta, Kiorina havia se aproximado bastante. Ainda estava um pouco atordoado pela surpresa da comunicação inesperada. Não fez movimento contrário. Ela se aproximou mais e o beijou por alguns instantes. Logo se afastaram. Kiorina então disse:

– É para dar boa sorte.

Kyle ficou sem ação. Respondeu:

– Boa sorte também, e tome cuidado.

Ela sorriu e entrou na barraca.

Quando virou-se para ir embora, Kyle viu que Gorum estava parado logo adiante, com um largo e incômodo sorriso lhe cobrindo toda a face. Kyle aproximou-se do gigante, lastimando-se pelo que iria acontecer. Gorum pegou-o inesperadamente, colocou-o sobre o ombro e começou a carregá-lo, praticamente contra a vontade de Kyle.

– Ha, ha, ha! Você não perde tempo, hein, garoto? Você tem que tomar cuidado, sabia? Ela é muito jovem e, além disso, é uma moça de família!

– Não, Gorum, não é o que você está pensando... – dizia Kyle, tentando não sorrir.

– Sei, como sei também que os bestiais são ótimos estrategistas...

– É sério! Não é nada disso!

– Então por que você não está falando sério?

– Porque é difícil falar sério com você. Especialmente quando estou sendo carregado em suas costas!

– Muito bem. – disse Gorum, enquanto colocava Kyle no chão. – Olhe na minha cara e me diga que aquilo não foi um beijo.

– Bem... eh... na verdade, foi...

– Foi?

– Foi...

– Então, foi um beijo ruim...

– Não...

– Então?

– Então o quê?

– Os pombinhos se amam!

– Ah, pare com isso... Não dá para conversar com você.

Continuaram a caminhar e discutir praticamente a noite toda. Por mais que Kyle tentasse convencer Gorum de que não amava a garota e tinha sido pego de surpresa, ele não acreditava em uma palavra sequer, o que acabou por criar uma certa irritação em Kyle. Só mais tarde, quando se recolheu, pôde pensar melhor no assunto. Ficou imaginando se Noran não teria alguma coisa a ver com o ocorrido. Considerou a hipótese por um tempo, mas logo a descartou, pois acreditava que ele não interferiria numa coisa dessas. Depois lembrou-se de como Noran o havia manipulado para que dormisse na vila dos silfos, razão por que não pôde ajudar seu amigo Archibald, quando ele precisou. Ficou pensando em Noran e em Kiorina. Chegou a considerar que pensar demais nela podia ser alguma influência dele. Por fim, ficou cada vez mais desconfiado e inseguro com relação ao estrangeiro e ao bem-estar da ruiva. Dormiu.

No dia seguinte, as demandas que sua posição exigia fez com que praticamente se esquecesse do ocorrido, ocupando-se de comandar seus homens e prepará-los para o combate, que sentia cada vez mais próximo.

Kiorina, Noran e Mishtra juntaram-se a uma pequena caravana de comerciantes razoavelmente armados, que, nesses tempos de guerra, buscavam lucros mais acentuados no comércio de todo o tipo de bens, especialmente aqueles que fossem escasseando, além de aproveitarem para levar e trazer mensagens pagas.

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