Capítulo 24
CAPÍTULO 24
O sol, apesar de estar, na maior parte do tempo, atrás de nuvens cinzentas, trazidas por um forte vento no início da manhã, já havia chegado ao ponto mais alto do céu; mesmo assim, fazia frio.
O rufar dos tambores desorganizados misturava-se ao murmúrio da multidão de soldados que estavam no grande pátio externo do castelo do Duque de Kamanesh. Cavaleiros que vieram reunir-se com o Duque Dwain e seus cavaleiros de primeira ordem transitavam à frente de pequenas concentrações de soldados e gritavam instruções para que se organizassem.
Havia homens carregando grandes bandeiras coloridas, atadas a longas lanças. Os cavalos, bastante limpos e escovados, receberam mantas e fitas coloridas que amarravam seus rabos, deixando-os empinados. As armaduras dos cavaleiros que os montavam reluziam. Não fosse a guerra, quem visse a cena pensaria que tratava de uma grande festa.
Aos poucos, o caos foi dando lugar à ordem, e todos aqueles homens, centenas e centenas, começaram a parecer uma tropa organizada. Finalmente, um homem vestido com um traje extravagante deu um sinal e, imediatamente, o chefe da banda e os doze homens que carregavam bumbos e taróis começaram a tocá-los vigorosamente. Fez-se silêncio absoluto para ouvi-los.
Passando pelo grande arco do castelo, entrou no pátio o Duque, em sua montaria, seguido de uma dezena de cavaleiros, dentre os quais estavam seus principais homens e quatro dos famigerados cavaleiros do Rei.
Os tambores cessaram. O duque comandava seu cavalo para girar, avançar em uma direção e novamente dirigir-se à direção oposta, criando um tipo de movimentação bastante tensa. Todos o observavam com atenção e podiam ver que ele dominava perfeitamente os movimentos de sua montaria. Finalmente parou e disse bem alto:
– Homens! Hoje, quando acordei, fiquei pensando... o que vou falar a todos aqueles bravos guerreiros, que estão deixando seus lares e suas famílias para ir a uma guerra? Por que temos que ir? Por que nos alistamos? Vamos por nossas famílias e pelas famílias de nossos amigos, por nossos parentes da cidade vizinha, dos campos ou mesmo de uma cidade distante? Não! Vamos para lutar pelo conjunto de todas as famílias de todas as cidades, que chamamos nosso reino. Vamos por nosso bom Rei, que cuida de todos nós. Essa seria a razão principal, se estivéssemos em guerra com outro reino. Mas não é o caso, meus caros companheiros! Este não é o caso! A guerra de que falamos é contra os bestiais, criaturas nojentas e irracionais, que matariam seus próprios pais; criaturas tão vis, que não entendem o conceito de família, tão pouco de reino. Esses seres sujos e brutos são uma ameaça a nós, a nossas famílias. Precisamos eliminá-los, mandá-los de volta a seu imundo pântano de uma vez por todas! – fez uma pausa e observou a reação, satisfatória, dos homens. Tocou o cavalo e galopou à frente das tropas. Parou e perguntou: – Quantos de vocês têm parentes no condado de MontGrey? Levantem as mãos!
Uns poucos levantaram as mãos.
– Bom. Vocês que levantaram as mãos são muito importantes, sabem por quê? Porque quando as coisas ficarem difíceis na guerra, vocês terão motivos mais concretos para odiarem aqueles bastardos! E irão motivar seus colegas que estiverem pensando em voltar para casa. Escutem com cuidado os que levantaram as mãos: vocês serão os que irão lembrar a seus companheiros casados, que estarão pensando em suas casas, que, se eles não lutarem, se não lutarem realmente, pode ser que, quando voltarem, não encontrem mais seus lares, nem suas esposas, nem seus filhos e filhas, pois, se vocês falharem em resgatar seus companheiros de MontGrey e depois em defender nossa Kamanesh, pode ser que tudo se perca. Quantos de vocês perderam algum parente, um pai, uma mãe, um avô, um tio na guerra contra os bestiais vinte anos atrás?
Dessa vez, a grande maioria dos soldados e mesmo os cavaleiros levantaram as mãos, inclusive o próprio duque, que esperou que eles as abaixassem e continuou, com sua mão direita levantada:
– Eu também, meus companheiros, perdi pessoas queridas para os malditos bestiais, inclusive meu pai, o bom Duque Edwain. Portanto, fiquem sabendo que, agora, todos vocês terão a chance de suas vidas. A chance de vingar seus parentes e de livrar nossa terra dessa corja peluda e fedorenta, os malditos bestiais!
Terminou o discurso já gritando, com a voz cheia de ira e emoção, sentimentos transmitidos à tropa com um efeito surpreendente. Todos gritavam e batiam os pés no chão, fazendo um barulho que era possível de se escutar até na cidade. Isso durou um tempo razoável, até que o Duque levantou ambos os braços e, aos poucos, fez-se silêncio novamente.
– Boa sorte, homens! E que Aianaron e os deuses os acompanhem!
Os cavaleiros que comandavam os pequenos grupamentos ordenaram a marcha, e os homens começaram a deixar o pátio. Da sacada do castelo, os nobres, finamente vestidos, observavam aquele aglomerado de homens sedentos de sangue, marchando e cantando animadamente em direção ao condado de MontGrey. Via-se todo tipo de reação, de indiferença a orgulho. Um fato, no entanto, era inegável: o Duque, habilidoso e carismático, havia conseguido animar os homens que partiam para a guerra.
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A cidade estava na expectativa, desde que ouvira os gritos das tropas vindas do castelo. Havia muita gente nas ruas, janelas e sacadas das principais vias de Kamanesh. Esperavam a passagem das tropas que marchariam pelas ruas antes de partir.
No terraço da oficina de Gorum, estavam Kiorina, Noran e Mishtra. Os três, naquela manhã, haviam feito os preparativos finais para sua jornada em direção à cidade de Xilos, no sopé das montanhas, na porção norte do condado de MontGrey. Iriam aproveitar a marcha das tropas para fazer parte da viagem com um pouco mais de segurança. Assim que passassem por Amin, seguiriam sozinhos. Decidiram ver tudo do terraço da oficina de Gorum e só depois sair, apesar de, com isso, terem que correr um pouco mais depois da passagem das tropas pela cidade.
Não demorou e puderam avistar as tropas descendo a colina que leva ao castelo. Ao vê-las, puderam ouvir, ao longe ainda, o som dos tambores e dos chifres metálicos que eram soprados. Não eram instrumentos refinados, como os que os bardos tocavam nas tabernas, ou os dos músicos da corte nos bailes da nobreza, mas produziam melodias simples e peculiares, muitas vezes acompanhadas do coro de vozes dos soldados.
Aos poucos, começaram a ouvir o que os soldados estavam cantando:
Pelo duque,
Pelo Rei,
Eu lutarei!
Com fervor,
Minha vida darei,
Se necessário for!
Pelo duque,
Pelo Rei,
Eu vencerei,
Com espada,
Bestiais eu matarei!
Liberdade ao condado de MontGrey!
A melodia era bem animada, mas Noran imediatamente a detestou! Na verdade, detestava o que estava acontecendo! O fluxo dos sentimentos de ódio e medo coletivos era tão forte e penetrante, que faziam com que ele tivesse que levantar um escudo mental, esforçando-se para que aqueles pensamentos confusos e destrutivos não o atingissem. Apesar disso tudo, nada deixava transparecer.
Agora os soldados já estavam perto o suficiente, e os olhos de Kiorina brilhavam ao observá-los. Ela estava entusiasmadíssima com a beleza da parada. Outros aspectos, como os riscos e o sofrimento que viriam, haviam-lhe escapado naquele momento. Seus olhos se voltavam para os cavalos com belos ornamentos vermelhos e laranjas, as bandeiras coloridas, seus brasões e as reluzentes armaduras dos cavaleiros.
– Olha, Mishtra! Olha, Noran! É o Kyle, ali! – teve que gritar para ser ouvida. Acenava e pulava como uma louca.
Mishtra inclinou-se levemente para melhor observar e acenou com a cabeça para Kiorina. A silfa estava extremamente impressionada com a parada, não só por seu aspecto formal, mas principalmente pela atmosfera que a cercava. Criava dentro de si um sentimento estranho e novo, que não conhecia bem, mas relacionava com uma agonia ligeira ou mesmo um tipo de loucura, um frenesi. Kiorina gritava e acenava:
– Kyle! Kyle! Aqui em cima!
Só depois de algumas repetições, Kyle olhou para a oficina, viu os três no terraço e acenou. Os três acenaram de volta, cada qual com sua peculiaridade. Kiorina pulava e balançava ambos os braços, Mishtra girava graciosamente uma das mãos, e Noran ergueu a mão discretamente, deixando-a espalmada e parada.
Logo, as tropas foram passando. Centenas de pessoas nas ruas acenavam, uns choravam, outros sorriam, curiosos de outras regiões observavam, criminosos aproveitavam a confusão para roubar o que pudessem, e ambulantes se aproveitavam da ocasião para vender comida.
Ao se aproximarem da Santa Catedral, começaram a soar os sinos. As portas estavam abertas, e dezenas de acólitos seguravam cajados ornados com motivos religiosos e os apontavam para o céu, fazendo preces e abençoando as tropas que ali passavam. No alto da escadaria, o sumo sacerdote da Real Santa Igreja, bispo Marco, vestido com um luxuoso traje laranja de fina seda, comandava os acólitos e os sacerdotes, que ficavam ao seu redor e pediam por seus homens que estavam prestes a ingressar numa campanha de guerra.
Do alto de uma das janelas laterais da Catedral, Archibald DeReifos observava aquela movimentação e fazia preces aos deuses, principalmente a Uráphenes, o deus da sabedoria, para que guiasse as decisões dos líderes.
Finalmente, as tropas passaram pela cidade e reuniram-se, no lado de fora, com a parte menos respeitável dos combatentes, as tropas mercenárias, nas quais podia-se ver, talvez, o dobro de homens, sujos e sem uniformes, que seriam comandados pelo capitão da guarda, Domer Falcus, conhecido apenas como capitão Falcus. Ele usava o característico capacete de capitão da guarda de Kamanesh, redondo, com dois chifres de metal na parte lateral, e rodeado de espinhos que, como os chifres, apontavam para o alto. Montava um cavalo de guerra muito forte, com as patas bastante peludas. Aproximou-se dos cavaleiros que lideravam as tropas oficiais e os cumprimentou. Os líderes se reuniram, ordenando antes a saída de formação dos homens das tropas, até que viessem outras ordens.
Chegaram as carroças que levariam os suprimentos e os acompanhantes civis que seguiriam com as tropas na sua jornada ao condado de MontGrey, dentre os quais Noran, Mishtra e Kiorina. Após algum tempo, os cavaleiros foram notificados de que todos os que eram esperados já haviam chegado. Foi então ordenada nova formação das tropas, para a partida definitiva.
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